17 Outubro 2014
Abertura, reviravolta, novidade. O Sínodo sobre a família encontra o favor da maioria dos meios de comunicação que farejaram algo no ar, depois das palavras de segunda-feira do cardeal Erdö e de ilustres coirmãos (um dentre todos, Schönborn). Isso apesar de todos os padres sinodais terem reiterado que a doutrina não está em discussão, que a questão é pastoral e como tal deve ser tratada, no depositum fidei não se toa etc. Mas a vontade de uma Igreja aberta, no ritmo dos tempos, é mais forte do que tudo, e as distinções do padre Lombardi têm o efeito contrário.
A reportagem é de Marco Burini, publicada no jornal Il Foglio, 16-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um teólogo como Andrea Grillo, que não teve medo até de pôr em discussão a própria indissolubilidade matrimonial, aprecia as palavras de Erdö. Capta nelas um "olhar diferente", uma mudança de tom, de linguagem e de estilo.
Uma "virada decisiva – mas impensada e quase impensável até poucos meses atrás – que corresponde à 'mudança de paradigma' que o Concílio Vaticano II já tinha inaugurado, há mais de 50 anos".
Tento incitá-lo principalmente sobre a doutrina: ela não continua sendo talvez um fantasma agitado, sofrido e removido por ambos os lados, os progressistas não menos do que os tradicionalistas? No fundo, renunciamos a (re)pensar a fé e nos contentamos em atualizar, em fazer manutenção.
"É preciso especificar cuidadosamente as palavras que se utilizam e o seu significado", responde-me o teólogo de Sant'Anselmo. "A doutrina cristã não é tecnicamente imutável, com exceção de casos muito raros. A Palavra de Deus, ao invés, o é. Mas, entre palavra e doutrina, há mediações delicadas que não podem ser tratadas de modo áspero. Parecia ser uma 'negação da doutrina cristã' a afirmação da 'liberdade de consciência' do fim do século XVIII e início do século XIX. Hoje, depois do Vaticano II, aprendemos – às nossas custas e com grande esforço e nem todos – que a liberdade de consciência é parte preciosa da doutrina cristã. Da mesma forma, podemos pensar que a Palavra de Jesus sobre o 'não separar' deve se identificar, necessariamente, com a doutrina da indissolubilidade elaborada na Idade Média e até mesmo com a sua disciplina canônica. Isso, porém, não é depositum fidei, mas a tradução e aplicação medieval do depositum. Hoje, é possível traduzir de forma diferente tanto a disciplina quanto a doutrina. A força da Palavra de Deus está justamente em poder dar origem a compreensões e práticas que, com o tempo, entendem melhor o Evangelho."
A referência ao último Concílio é pertinente. Mas justamente: não passou tempo demais para que se possa simplesmente esperar uma aplicação dele? E, nesse meio tempo, já não perdemos algo? E aqui cito o teólogo Salmann, mestre de Grillo (também um pouco meu) que, em uma reflexão publicada por este jornal no dia 2 de fevereiro de 2013, pouco antes que chegasse o ciclone Bergoglio, foi ao cerne da questão: "Com o Vaticano II, pela primeira vez, o ethos torna-se critério da religião: os direitos humanos, o olhar do outro. Mas, depois, como evitar que a ética se torne o dogma (o que, na práxis, sugnifica que tudo depende da gentileza do papa)? A graça foi substituída pelo compromisso, descoordenado, dos adeptos aos trabalhos. Até o pelagianismo tem o seu preço... O mistério se faz comunicativo, convidativo: o que fazemos agora com a crueza do abismo, da culpa, da morte? Dessas coisas, hoje, só filmes e romances falam".
Segundo o beneditino alemão, em suma, o problema da Igreja pós-conciliar é "uma modernidade realizada, mas não refletida".
De acordo com Grillo, no entanto, "não passou tempo demais. É verdade, o Concílio Vaticano II tem mais de 50 anos e é fruto de um clima cultural e eclesial muito diferente do nosso, mas ele intuiu com grande lucidez que o paradigma tridentino, com toda a sua oficialidade objetiva, já estava sujeito a uma erosão irreparável. Não correspondia mais, há pelo menos um século, à realidade do mundo e da própria Igreja. Deformava a própria Igreja que a estava vivendo, obrigando-a, involuntariamente na origem, a uma colocação puramente reativa e desconfiada em relação ao mundo e à história".
No entanto, o rio que a Igreja está atravessando é traiçoeiro, porque, no momento em que se abre ao mundo, é preciso considerar o risco. O risco verdadeiro, que não é a perda de um fetiche (a Doutrina, os Valores), mas, como sempre, da realidade. Ou, melhor, da contingência, como Salmann a chama. Uma contingência que não suporta ênfases de tipo algum, muito menos a sancionada pela opinião pública.
Justamente nessa direção ia o comentário de Vito Mancuso, na terça-feira no jornal La Repubblica, que, depois de apreciar a mudança de ritmo do Sínodo, encerrava com uma crítica a Igreja ainda prisioneira de um "documento deletério", a Humanae vitae. Por isso, concluía Mancuso, "a esse Sínodo e a essa Igreja, hoje, não se pode pedir mais".
Da série: coitadinhos, se esforçam para se atualizar, para estar no mesmo ritmo, demos-lhes tempo, e talvez o São Francisco de Buenos Aires faça um milagre... A arrogância dos progressistas não é menos irritante do que a dos nostálgicos.
"Recuperar a relação com a contingência é uma verdadeira prioridade e, para realizá-la, é preciso sair das contraposições insensatas entre doutrina e pastoral", destaca Grillo. "Usar a doutrina para se imunizar da realidade e a pastoral para perder orientação são estratégias sem futuro. Tranquilizam as partes contrapostas, mas são igualmente desorientadas e desorientantes. Referir-se ao Concílio sem fazer dele um ídolo significa sair da ideia de aplicá-lo e optar por pôr-se a caminho. O Concílio não é outra doutrina, mas um estilo particular de 'traduzir' a doutrina. A pastoral das famílias é a que mais diretamente põe em crise uma leitura tridentina da doutrina. Por isso, é um tema muito delicado, mas decisivo, em vista de uma forma renovada de testemunho da fé em Cristo".
Talvez seja a hora das perguntas mais do que das respostas.
Segundo Grillo, a questão crucial é esta: "Como podemos anunciar o Evangelho da família em um mundo em que a liberdade de consciência deve ser aceita como conteúdo precioso de toda comunidade e de toda comunhão? Ou, invertendo: como anunciar uma comunhão e uma comunidade que saibam se ajoelhar diante de cada indivíduo como diante de algo sagrado? Parece-me que a Relatio post disceptationem de Erdö pôs-se a trabalhar com grande força nessa direção. Para mim, ela poderá sugerir ideias, soluções e iniciativas que poderão ir muito além daquilo que, no momento, já nos parece demais!".
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Relatório sinodal: um ponto de virada no rastro do Vaticano II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU