24 Setembro 2014
No momento em que Brasil e Bolívia se preparam para negociar a renovação do contrato de fornecimento de gás, o embaixador boliviano em Brasília, Jerjes Justiniano, parte para o ataque contra a estatal brasileira Petrobras. O atual contrato vence em 2019.
A entrevista é de Fabio Murakawa, publicada pelo jornal Valor, 23-09-2014.
Para ele, a Petrobras, não é uma estatal brasileira, mas uma multinacional "com capitais norte-americanos" que sabe onde há gás na Bolívia, mas não quer dizer ao governo, que estatizou ativos do setor de hidrocarbonetos em 2006.
Enquanto a indústria paulista, maior consumidora do gás boliviano, pressiona por condições mais favoráveis - uma vez que as reservas bolivianas estão em declínio e o Brasil poderá num futuro próximo ter maior produção de gás - Justiniano defende um valor mais alto, nos moldes de um contrato temporário para alimentar a usina térmica de Cuiabá, assinado recentemente entre os dois países.
O embaixador fala ainda sobre a mudança na relação com o Brasil, que ficou "mais formal" no governo Dilma Rousseff em relação ao que era sob "o companheiro Luiz Inácio Lula da Silva".
Eis a entrevista.
Em que estágio se encontram as negociações para a renovação do contrato de gás?
O contrato vence em 2019. Foram produzidos contratos intermediários, especiais. Há um mês, a Petrobras e a YPBF [estatal boliviana] assinaram um novo contrato para alimentar a usina Mario Covas, em Cuiabá. Esse contrato tem dois anos de duração. É um contrato adicional que a qualquer momento pode ser interrompido. Foi estabelecido um volume de venda de gás e um preço sobre essa venda. Se a YPFB mantém ou aumenta o volume, tem um prêmio, uma porcentagem que a Petrobras reconhece como prêmio. Esses termos são interessantes porque, no caso de a Bolívia não poder cumprir, por compromisso, por problemas de ordens naturais, tampouco a será punida. E isso é um bom presságio.
O sr. acha que o próximo contrato terá um modelo similar?
Eu creio que sim. Creio que o próximo contrato, a ser assinado em 2019, tem que ter essa característica, porque o Brasil precisa de mais gás. Está sendo discutido. Estão nas conversas preliminares. Ainda que o pré-sal tenha tudo o que tenha, [o Brasil] sempre estará comprando gás da Bolívia, porque seu centro de maior produção agrícola e industrial está perto da Bolívia. Mais de 50% do gás consumido pela indústria de São Paulo vem da Bolívia. O Brasil sempre vai precisar comprar gás.
As reservas na Bolívia estão declinando. Supõe-se que haja mais gás, mas ninguém sabe onde está. A Bolívia pode garantir que terá gás para fornecer ao Brasil nos próximos 20 anos?
À época do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada [antes da estatização de ativos do setor, em 2006], falava-se que as reservas eram de 11,5 TCF [trilhões de pés cúbicos]. Ou seja, era uma reserva espetacular. Resulta que agora se fala que há reservas de 7 TCF, 6,5 TCF. O que isso significa? Isso desapareceu? Ou é uma manobra das multinacionais? Sabemos que existe gás. Mas não temos a informação, porque essa informação quem tem são as empresas privadas que, ao serem nacionalizadas, levaram a informação. O gás desapareceu porque nós não temos a informação? Não.
O sr. crê que a Petrobras sabe onde há gás na Bolívia?
Claro que sabe! Como não vai saber? Vários ex-executivos da YPFB trabalham na Petrobras. [Antes da estatização], a YPFB era uma empresa exitosa, que tinha os melhores técnicos em matéria de hidrocarbonetos. O que fizeram esses técnicos? Foram para as empresas privadas. E quem captou a maior quantidade, obviamente, foi a Petrobras. Porque tem mais interesse, mais exploração.
Um detalhe importante: a Petrobras tinha um negócio com a Bolívia que era 50%/50%. Quando Sánchez de Lozada ditou a lei posterior a esse negócio, a Petrobras unilateralmente decidiu incorporar-se a essa lei, que estabelecia uma palavrinha. Dizia "os petróleos novos" serão cotados em 18% [o imposto cobrado sobre o gás seria de 18%]. E a Petrobras já vinha explorando petróleos antigos havia mais de cinco anos. Por isso, quando o companheiro Lula perguntou ao companheiro Evo "por que você entrou na Petrobras?", Evo disse que foi por isso. E Lula entendeu. A imensa maioria não entende, porque não sabe.
Quem não sabe o quê?
Você, por exemplo, não sabe. Você está convencido de que a Petrobras é uma empresa brasileira, certo? Assim como 99,9% dos brasileiros consideram que a Petrobras é uma empresa estatal brasileira. Eu digo que é mentira. A Petrobras é uma empresa privada, com capitais norte-americanos. Só 30% é do governo brasileiro. A Petrobras é uma empresa privada e não tem nada a ver com o governo brasileiro.
Supondo que a Petrobras saiba onde há gás, isso não pode ter uma solução entre os presidentes?
Não, sob uma premissa. Eu não posso supor. Você pode supor, porque você é jornalista. Eu sou o embaixador da Bolívia. O que eu digo é oficial. O que eu me pergunto é se desapareceu o gás que estava lá. Eu não sei se evaporou. Porque diziam que tinha uma certa quantidade de gás e hoje há outra quantidade? Porque agora há um governo nacionalista? Porque há um governo que demandou a propriedade dos hidrocarbonetos? Então, é um problema de jogo e das multinacionais. E, companheiro, as multinacionais são muito poderosas. Se você publica uma coisa que não lhes convém, uma multinacional compra o seu jornal. Só para te demitir.
Como o sr. qualifica as relações entre Bolívia e Brasil sob Dilma e Evo Morales, em comparação ao que eram sob Lula?
Eu não quero aqui imiscuir-me em questões internas do Brasil, muito menos agora que estamos nesse período pré-eleitoral. Só quero fazer uma avaliação. São dois estilos diferentes. O senhor Lula tinha uma política e um estilo de fazer política. A senhora Dilma pode seguir a mesma filosofia, mas tem outro estilo, outra forma de encarar as coisas. Essa é a diferença. No mais, as relações seguem sendo boas.
Qual é a diferença entre os estilos de Dilma e Lula?
O estilo de Lula era pessoal, muito pessoal. O estilo da sra. Dilma é muito técnico. Lula tinha um problema com a Bolívia, pegava um telefone e falava: "Oi, Evo, o que está acontecendo?". A sra. Dilma, não. Utiliza os canais diplomáticos, utiliza os canais formais. Meu presidente se deu muito bem com o seu presidente [Lula] quando estavam os dois no cargo porque têm esse estilo de governar direto, são homens diretos, de ação direta, de homens que pegam o telefone e se falam, de homens que se comunicam, de homens que consideram a amizade como um passo fundamental. O Brasil e a Bolívia foram muito mais fortes quando estavam ambos os presidentes, pela amizade entre eles. Não quer dizer que tenham deixado de ser amigos. Só que são dois estilos diferentes.
Um pouco mais frio?
Eu diria mais formal. Além disso, houve incidentes, que levaram a sra. Dilma a posições bem difíceis. Após a fuga do senador [Roger] Pinto, por exemplo, da Embaixada do Brasil até o território brasileiro, a Bolívia perguntou ao Brasil: "O que acontece? Queremos uma investigação, por favor". E até agora não nos deram.
Que tipo de explicação vocês querem?
Por que um funcionário utilizou o veículo da embaixada? Era uma política oficial? E a melhor explicação que nos deu a sra. Dilma foi a sacudida de política interna que ela fez. Mas não se esqueça de que a crise ocasionou a mudança do chanceler. Isso é suficiente para nós.
Uma mudança no Brasil para um governo mais à direita preocupa a Bolívia?
Sem dúvida, uma mudança rumo à direita nos governos da América Latina nos preocuparia ao Estado e à Bolívia em termos gerais. O Brasil é um parceiro muito importante. Mas, neste momento, uma opinião do embaixador compromete a política externa do meu país. Eu não tenho o que dizer.
A candidata Marina Silva preocupa a Bolívia?
Não sei. Não quero comentar sobre isso. É um problema interno do Brasil.
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Embaixador da Bolívia critica a "multinacional" Petrobras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU