19 Setembro 2014
Localizado em Queimados, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o Conjunto Habitacional Valdariosa, do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, compõe um universo de grande complexidade. Os moradores são pessoas vindas de diversos locais do Rio de Janeiro, retiradas de suas casas por motivos também variados, como áreas de risco, desapropriação para realização de empreendimentos da prefeitura, entre outros. Um emaranhado de histórias e vivências que, de súbito, foram postas a conviver no mesmo espaço, divididas em 25 blocos, cada um com 20 apartamentos.
Na tentativa de diagnosticar os principais problemas e apontar caminhos, a Caixa Econômica Federal, responsável pelo financiamento do conjunto Valdariosa, buscou três entidades: o Ibase, o Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (IETS) e o Metrópole Projetos Urbanos (MPU). Coordenador do projeto, o pesquisador do IETS Paulo Magalhães, sociólogo com grande vivência no tema, já tem algumas conclusões sobre o duríssimo cotidiano do lugar com quase cinco mil pessoas instaladas.
A entrevista é de Rogério Daflon, publicada pelo Canal Ibase, 17-09-2014.
Nesta entrevista, Magalhães explica por que ali o sonho da casa própria tende a virar ilusão. Embora, no caso do Valdariosa, os imóveis tenham sido subsidiados integralmente pela Caixa (como ocorre para quem tem renda mensal de zero a três salários mínimos), as dificuldades dos moradores para viver no local são muitas. As condições sociais dramáticas favorecem a entrada da milícia no dia a dia dos moradores. Mais de 50% deles, lamenta Magalhães, já viram pessoas armadas no espaço do condomínio, onde já se percebe indícios de prostituição infantil e adulta. Como se verá nas respostas do coordenador do IETS, as mazelas do Valdariosa tocam numa ferida aberta desde os anos 1930, quando ocorreram as primeiras tentativas de se fazer uma política habitacional no país, um desafio longe de ser vencido.
Eis a entrevista.
Como foi a adaptação das famílias ao conjunto Valdariosa?
A passagem da informalidade, num contexto no qual a família vivia numa casa unifamiliar e em áreas onde as taxas não eram pagas, à moradia formal, em que há cobrança de taxas como luz e gás, se revela um salto gigantesco sob o ponto de vista da sustentabilidade financeira da unidade doméstica. A renda das famílias remanejadas diminui não só em função dessas novas despesas. Postas na formalidade sem qualquer mediação, as famílias sofrem consequências que já detectamos em Valdariosa, por intermédio de pesquisas qualitativas e quantitativas. Para analisá-las, é preciso, contudo, se ater ao desenho da política habitacional. Levando-se em conta os interesses de produção de unidades habitacionais do governo federal e o das construtoras, o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) optou pelo sistema de condomínio na faixa de baixa renda. E as empreiteiras diminuem seus custos ao levantar prédios em áreas com infraestrutura deficiente. Neste conjunto, em Queimados, os edifícios foram erguidos numa área sem qualquer vocação para vetor de crescimento da cidade. Trata-se de uma área à margem da Rodovia Presidente Dutra, mas sem um acesso eficiente a essa via. Ali, o terreno ainda é alagadiço. Diante da falta de estrutura e das novas taxas, a conclusão central é que, com pessoas vindas de lugares os mais distantes e longe de seus antigos centros de trabalho, não há sustentabilidade econômica do morador.
Como é o perfil dos moradores e das moradoras?
A heterogeneidade é muito grande. Mas pode-se dizer que, no conjunto, há moradores que vêm de áreas de risco, de população de rua, de aluguel em favela ou aluguel na área formal de baixa renda. Eles vieram de diferentes localidades, onde havia fortes marcas de identidade. Não à toa, o impacto social é enorme. Quem mora no entorno ainda os vê de forma estigmatizada. Olham o conjunto como se fosse, nas palavras de muitos, um “favelão”, já que ali há famílias de favelas como o Alemão, Manguinhos e a Maré, por exemplo. Isso se soma ao fato de que, junto com o Valdariosa, não foi instalada a infraestrutura necessária para receber estas pessoas na região.
Poderia especificar melhor a questão da infraestrutura?
Não há creche pública, o morador leva duas horas para chegar à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) mais próxima, não há ensino de primeiro grau, só uma escola estadual de ensino médio. As pesquisas detectaram que a grande queixa do morador é relacionada à segurança. Todos têm medo de morar ali. É medo um do outro e de pessoas armadas que entram no condomínio. Algumas delas sequer se identificam, outras se identificam como policiais e violam direitos humanos do morador. A sensação é de que a milícia quer dominar aquele espaço. Com tal quadro, pessoas já começam a vender seus imóveis ilegalmente. A transação é ilegal porque, no caso de famílias entre zero a três salários, o registro de imóvel só é realizado após cinco anos. Há também quem já esteja alugando ilegalmente. Para completar essa crise endógena, há uma inadimplência de 50% dos moradores quanto à taxa condominial, que custa R$ 43,00. Isso é um exemplo da complexidade dessa faixa de zero a três salários.
Quais as consequências dessa crise endógena?
A pior é que, como essa política habitacional produz habitação, mas não consegue produzir a manutenção desse morador, acaba beneficiando grupos com faixa de renda maior, pois já ocorre um processo de gentrificação, mesmo que de forma ilegal. É preciso enfrentar esse dilema, pois grupos paralelos já se aproximam do Valdariosa. Assim, vemos ali um ciclo não virtuoso. Sob o ambiente de tensão, algumas famílias não conseguem mais viver ali e vão procurar outro lugar. E, como já adquiriram um imóvel pela Caixa, não têm mais o direito de pleitear outro.
Que medidas seriam necessárias para evitar esse caos?
Os moradores precisariam de uma assessoria técnica que pudessem ajustá-los a uma nova condição de moradia. E, é claro, tem de haver outros tipos de incentivo. Mas é preciso enfatizar que privatizar o custo da manutenção de moradia é uma tirania para quem ganha de zero a três salários. As despesas relacionadas à vida em condomínio não se coaduna com a baixa renda. Até porque o morador foi remanejado de uma área em que havia uma economia local e ele já estava adaptado a ela. Ocorre que boa parte dos moradores pega duas conduções para chegar ao antigo trabalho. Ou seja, mais aumento de despesa. Tenho conversado com a Caixa Econômica Federal e deixo claro que não dá para construir prédios e alocar quase cinco mil pessoas e dizer “virem-se”. Desse jeito, elas realizam o sonho da casa própria, mas, como não têm como mantê-la, o sonho se dilui. Administrar 500 unidades é um grande desafio. E, com a inadimplência na taxa condominial, o síndico perde legitimidade. Há, com isso, uma crise de governança. O programa Minha Casa, Minha Vida só exige a presença de síndicos e lhes dá uma cartilha. E eles não têm formação para isso. Nos condomínios de classe média, há sempre um sindicato e uma empresa administradora contratada. Nesses de baixa renda do MCMV, o síndico não conta com qualquer assessoria técnica. É preciso repensar a moradia popular, desde a localização desses conjuntos, para que esse tipo de projeto se torne sustentável.
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Valdariosa, uma ferida na política habitacional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU