06 Junho 2014
"Normalmente, o governo teria respondido aos manifestantes com os chavões habituais de estar no controle da situação, e as coisas teriam continuado como de costume, o que significaria que as abduções seriam gradualmente esquecidas por todos, exceto parentes e amigos das vítimas. Mas a indignação forneceu aos nigerianos o estímulo necessário para dar um basta", escreve Adewale Maja-Pearce, escritor e crítico anglo-nigeriano, em artigo publicado pelo jornal americano The New York Times e reproduzido pelo portal de notícias UOL, 05-06-2014.
Eis o artigo.
Há uma enorme mudança política fermentando na Nigéria, alimentada pelas manifestações furiosas com o fracasso do governo em resgatar mais de 200 meninas sequestradas por militantes islâmicos – e os esforços desajeitados do governo para abafar esses protestos.
Desde que as meninas foram levadas pelos insurgentes do Boko Haram da escola delas em Chibok, no Estado de Borno, no nordeste, em 14 de abril, um grupo de várias centenas de manifestantes acampou na Fonte da Unidade, em um parque no centro de Abuja, a capital, se recusando a sair até que "nossas meninas sejam trazidas de volta".
Centenas de protestos também foram realizados em Lagos, Kaduna, Lokoja e outras cidades por toda a Nigéria, todos unidos pelo hashtag "#BringBackOurGirls" ou "tragam nossas meninas de volta". Os protestos têm sido pacíficos, ao menos por parte dos manifestantes. Apesar de ser de amplo conhecimento que o governo adoraria acabar com eles, as autoridades têm relutado em enviar a polícia, devido à enorme atenção internacional que as abduções receberam.
Em vez disso, na semana passada, o governo optou por contratar uma multidão para realizar um contraprotesto. Segundo Jibrin Ibrahim, um organizador das manifestações em apoio ao retorno das meninas, os manifestantes começaram a perceber milhares de contramanifestantes se reunindo perto do parque, em 26 de maio. Usando um slogan atual entre os fundamentalistas cristãos, eles cantavam, "fogo do Espírito Santo, persiga o Boko Haram", enquanto se dirigiam aos manifestantes, alertando para que deixassem o governo em paz e voltassem sua ira contra os insurgentes islâmicos.
No dia seguinte, os contramanifestantes apareceram em número ainda maior, muitos deles transportados em dezenas de ônibus do governo, disseram testemunhas. No outro dia, eles voltaram. Dessa vez a multidão incluía centenas de homens jovens em motos, que as aceleravam "para abafar nossas vozes", disse Ibrahim. Ele então descreveu o que ocorreu em seguida: "Eles primeiro saíram à procura das equipes de televisão nacionais e estrangeiras, destruindo suas câmeras com porretes, e os câmeras fugiram temendo por suas vidas. Então vieram contra nós, tomando à força telefones e bolsas de nossas mulheres. Nós todos permanecemos no lugar".
Apesar do caos, ele disse, os manifestantes permaneceram calmos e o incidente terminou sem fatalidades.
Há pouca dúvida de que muitos dos contraprotestos foram organizados a mando do presidente Goodluck Jonathan –o "Cable", um site de notícias, noticiou que "um ônibus de campanha exibindo fotos do presidente Goodluck Jonathan e do vice-presidente Namadi Sambo circulava pelo local". Além disso, a rígida estrutura de comando do governo torna provável que a polícia tenha sido ordenada a não interferir com os contramanifestantes.
Esse não foi o caso uma semana antes, quando a polícia tentou, sem sucesso, remover os manifestantes "#BringBackOurGirls". "Eu não vou a lugar nenhum", teria dito um dos líderes, Oby Ezekwesili, um ex-ministro da Educação e ex-vice-presidente do Banco Mundial para a África, aos policiais. "Meus direitos não serão violados."
Mas na segunda-feira, o comissário de polícia para Abuja, Joseph Mbu, proibiu todos os protestos a respeito das meninas abduzidas. "Eu não posso cruzar os braços e assistir essa anarquia", ele disse aos repórteres, acrescentando que as autoridades receberam informação de que "em breve, elementos perigosos se juntarão aos grupos sob o disfarce de protesto, e detonarão explosivos visando embaraçar o governo".
Ezekwesili condenou a proibição como uma violação das garantias constitucionais a "nossos direitos de liberdade de expressão, associação e assembleia pacífica", e disse que os manifestantes a contestarão na Justiça. Na então, na terça-feira, o inspetor geral da polícia, Mohammed Abubakar, rescindiu a ordem de Mbu, apesar de ter pedido aos manifestantes que "sejam cautelosos".
Indignação
Até certo ponto, a confusão é compreensível. Afinal, trata-se de um novo território, tanto para o governo quanto para os cidadãos comuns. Normalmente, o governo teria respondido aos manifestantes com os chavões habituais de estar no controle da situação, e as coisas teriam continuado como de costume, o que significaria que as abduções seriam gradualmente esquecidas por todos, exceto parentes e amigos das vítimas. Mas a indignação forneceu aos nigerianos o estímulo necessário para dar um basta. Quando mais ruidosos os protestos, mas tolos parecem os esforços para suprimi-los.
Foram necessárias quase três semanas para o presidente convocar uma coletiva de imprensa para reconhecer o fracasso de seu governo em resgatar as meninas. A maioria dos nigerianos ficou aliviada quando ele finalmente aceitou ajuda militar estrangeira, mas o desdém pela soberania de nosso país foi perturbador. Se tudo isso custará a Jonathan um segundo mandato nas eleições do ano que vem, ainda não se sabe.
Enquanto isso, nós sabemos que as forças armadas estão mal equipadas em relação ao poder de fogo superior dos insurgentes – apesar do orçamento imenso de segurança, atualmente em cerca de US$ 5,8 bilhões, grande parte é saqueado na fonte. Apenas um exemplo: em 2006, as forças armadas compraram vários drones (aeronaves não tripuladas) de uma empresa israelense, a Aeronautics Defense Systems, cada um a um preço estimado entre US$ 15 milhões e US$ 17 milhões. Eles poderiam ser usados na busca pelas meninas abduzidas, mas todos estão inoperantes por falta de manutenção.
A inépcia oficial não se aplica apenas ao quadro maior. Não muito depois dos contramanifestantes deixarem o parque, muitos deles se queixavam do não pagamento pelo governo dos US$ 25 que foram prometidos a eles por cada dia que participassem. "Receber o dinheiro é um processo muito difícil, porque muitos de nós estão se acotovelando para receber o pagamento pelo nosso trabalho", um deles disse a um repórter.
De novo, trata-se de uma história familiar. Talvez mesmo aqueles dispostos a aceitar um trabalho ocasional como fantoches do governo estejam lentamente acordando de um sono que já durou demais. A campanha "#BringBackOurGirls" pode apenas sinalizar o fim deste estado das coisas debilitante. No mínimo, o Boko Haram nos mostrou a impotência das forças combinadas do Estado que antes nos amedrontavam.
A pergunta é: para onde vamos a partir daqui?
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Nigéria contrata manifestantes para abafar protesto sobre jovens sequestradas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU