25 Março 2014
"O golpe de Estado me acompanha até hoje, 50 anos depois, como ferida e como espanto. Já bem antes daquele 1º de abril de 1964, escrevi sobre seus passos, tentando penetrar na conspiração que se fazia quase à luz do dia", escreve Flávio Tavares, Jornalista e ex-militante, em artigo publicado por Carta Capital, 21-03-2014.
Eis o artigo.
O golpe de Estado me acompanha até hoje, 50 anos depois, como ferida e como espanto. Já bem antes daquele 1º de abril de 1964, escrevi sobre seus passos, tentando penetrar na conspiração que se fazia quase à luz do dia. Eu era o comentarista político, em Brasília, da Última Hora, a única publicação da grande imprensa que não pedia a derrubada do presidente da República. Mesmo editado em cinco capitais (Rio, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife) era um jornal solitário e isto nos obrigava a ser observadores atentos e pluralistas.
O Congresso ainda tinha prestígio e poder, era o núcleo da política, e lá convivi com golpistas e anti-golpistas. Também as Forças Armadas tinham prestígio, num tempo em que se debatiam as “reformas de base” que, a partir da reforma agrária, construiriam o futuro. Ou que significavam um inferno que faria do Brasil “uma nova China comunista”, como o embaixador dos Estados Unidos sussurrava aos ouvidos de políticos e militares.
Desde a posse de João Goulart, em 1961, a extrema direita pregava o golpe que o IPES (organizado pelo coronel Golbery Couto de Silva em plena paranoia anticomunista da Guerra Fria) difundia como “salvação nacional”. Por isto, quando o general Mourão Filho rebelou-se em Minas, não me espantei. Desde os anos 1950, meia dúzia de rebeliões tinham sido dominadas pelos mecanismos da democracia. Espantei-me, porém, e me desnorteei como jornalista político ao presenciar o ardil com que o senador Auro Moura Andrade transformou o Congresso em cúmplice do golpe militar. Na madrugada de 2 de abril de 1964, numa sessão de apenas três minutos, o presidente do Congresso – sem debate ou votação – declarou “vaga” a presidência da República, após ler um ofício em que João Goulart comunicava que viajava a Porto Alegre, com os ministros, para lá instalar o governo. Encerrou a sessão, desligou os microfones e, entre gritos de protestos e de vitória, saiu para dar posse ao novo “presidente provisório” no Palácio do Planalto.
A cilada fora perfeita, mas fora uma cilada. A missão do Congresso não era dar guarida ao golpe, mas à Constituição. A minha geração, formada na crença da liberdade, do pluralismo e debate, sentia-se esbofeteada, como escrevi em meu livro “Memórias do Esquecimento”, ao narrar o horror dos porões da ditadura que se estabeleceu depois, numa bofetada ainda mais dolorida.
Dias depois, a imposição do Ato Institucional começou a “legalizar” a ditadura, com cassações de mandatos, suspensões de direitos políticos ou expulsões das Forças Armadas. E aí o golpe mudou nossas vidas. Ao punir, o Ato Institucional oficializou o medo e destruiu os valores morais na política. Surgiram os “vira-casacas”, fiéis ao novo poder e mais realistas que o rei!
Lembro-me do deputado Oliveira Brito, do PSD da Bahia, que fora ministro de Minas e Energia de João Goulart, discursando em apoio ao golpe, para assegurar a condição de eterno pedinte no gabinete presidencial. Multiplicaram-se os aduladores. Brotaram alcaguetes e delatores por todos os lados. E o Congresso (castrado com as cassações de mandatos) “legalizou” o marechal Castello Branco como presidente da República. Em voz alta, os parlamentares gritaram o voto, à vista dos que cassavam e prendiam.
Ninguém ousava falar em ditadura, e meu espanto cresceu. Dois meses após o golpe, fiz 30 anos e me senti um velho, despedaçado por viver num país em que tudo passava a ser vigiado, controlado, reprimido. A Universidade de Brasília, criada para ser modelo de pesquisa na ciência e inovação nas artes, foi invadida - a biblioteca destruída, alunos e professores presos ou expulsos.
A intolerância e a desconfiança substituíram o livre debate. Nas universidades, o novo regime exercitou velhas práticas medievais de perseguição. A fúria varreu até o Instituto Osvaldo Cruz, no Rio, dedicado apenas à pesquisa médica, demitindo “cientistas comunistas”.
A quartelada adotou o nome de “Revolução” e a imprensa cúmplice a chamou assim. Em minha coluna na Última Hora, usei a expressão “Movimento de 1º de Abril” (e não “Revolução de 31 de Março”) e o gabinete do ministro da Guerra me chamou a atenção. No calendário popular, 1º de Abril era o “dia dos tolos”, data de mentiras e trotes e “aquilo era ofensivo”.
A grande simulação se estabelecia pouco a pouco: tínhamos uma ditadura com Parlamento em que se discutia o corriqueiro, nunca temas de fundo, como os direitos e as liberdade públicas. Só agora, ao ter em mãos os documentos de Washington sobre o apoio dos EUA à conspiração e ao golpe de 1964, fui entender a mútua sedução de cinismo político entre os quartéis e o Congresso.
Um precisava do outro para sobreviver, sem que a opinião pública norte-americana percebesse que seu governo apoiara e financiara a instituição de uma ditadura. A simulação tomou conta do país. O “Pra frente, Brasil” da propaganda oficial escondia os porões em que a tortura se tornou um método de interrogatório, em que se consentia até o assassinato.
O medo fez o Brasil se calar. O “puxa-saquismo” instalou-se como norma de conduta social. Só os áulicos tinham vez. Mais do que a repressão e a tortura, O legado perverso do golpe de 1964 foi ter mudado o comportamento social, fazendo do oportunismo um estilo de vida. Por acaso, não é o que perdura até hoje na política?
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Golpe de 1964. O legado perverso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU