24 Março 2014
O Papa Francisco captou a atenção do mundo dentro de poucas horas após sua eleição através de seus lampejos de humildade, e este feito não é mera Relações Públicas, algo de fachada. Na Argentina, o religioso era conhecido como o “bispo das vilas’”, em referência às grandes favelas que cercam Buenos Aires, tudo porque ele tinha um especial amor pelos pobres.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por The Boston Globe, 22-03-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
No entanto, jamais se pode esquecer que por debaixo desta exterioridade simples encontra-se a mente de um brilhante político jesuíta. Alguns argentinos acreditam que ele possa, de fato, rivalizar com Juan e Evita Perón pelo título de melhor conjunto de instintos políticos que país já produziu.
Tal inteligência ficou à mostra novamente no sábado, quando Francisco relacionou os primeiros membros de uma comissão vaticana para fazer frente na luta contra o abuso sexual por parte do clero.
Apesar das críticas geralmente elogiosas que Francisco recebeu ao longo de seu primeiro ano, houve duas correntes de avaliações negativas que poderiam se transformar em problemas sérios para o pontífice:
1) Os críticos dizem que ele não se envolveu nos escândalos de abuso clerical da Igreja com o mesmo vigor que aplicou a outros problemas. Um grupo de defesa americano recentemente levantou questões sobre sua resposta a cinco casos de abuso na Argentina, enquanto seus comentários, feitos numa recente entrevista a um jornal italiano, lembrou alguns analistas da retórica defensiva empregada por funcionários da Igreja no início da crise.
2) Francisco vem repetidamente pedindo por papéis mais importantes para as mulheres na Igreja, mas até agora ele tem sido mais operativo quanto às portas que continuam fechadas e menos em relação àquelas que poderiam ser abertas: por exemplo, deu um duro “não” às mulheres ordenadas e outro “não” às mulheres cardeais. Quando ele criou um novo conselho fiscal poderoso para o Vaticano, não incluiu uma única mulher entre seus membros leigos.
De uma só vez, neste sábado Francisco deu um significativo passo em direção a estas duas objeções.
Quanto ao abuso, Francisco sinalizou o seu compromisso de realizar reformas nomeando o cardeal Sean P. O’Malley, de Boston, como parte da equipe. Embora os críticos possam levantar objeções sobre alguns aspectos do histórico de O’Malley, nenhum bispo americano tem uma experiência maior de recuperação a partir dos escândalos sexuais, e poucos prelados são mais identificados com a imprensa do que ele no que diz respeito à prestação de contas e transparência.
Em outras palavras, O’Malley traz credibilidade instantânea ao que se está fazendo.
Francisco também mostrou sensibilidade ao garantir que uma vítima fosse parte da equipe, neste caso uma famosa ativista irlandesa dos direitos das vítimas chamada Marie Collins. Entre outras coisas, Collins é conhecida por ter estar próxima ao arcebispo de Dublin, Dom Diarmuid Martin, o qual, como O’Malley, é um prelado famoso no mundo por tomar posturas firmes em favor honestidade envolvendo os escândalos sexuais.
Pessoas ligadas ao assunto observarão que Francisco incluiu um jesuíta, o Pe. Humberto Miguel Yáñez, para fazer parte do organismo. Este dirige a faculdade de Teologia Moral da Universidade Gregoriana de Roma, administrada pelos jesuítas. Yáñez é um protegido do Papa Francisco, tendo sido recebido dentro da ordem jesuíta pelo próprio Jorge Mario Bergoglio na década de 1970 e estudado sob o olhar do futuro papa.
Uma forma em que Francisco sinaliza o seu interesse pessoal num projeto é nomeando uma pessoa próxima para compor a dada equipe, como foi feito recentemente ao nomear um de seus secretários particulares, o maltês Alfred Xureb, para o novo ministério de finanças do Vaticano. A nomeação de Yáñez será considerada da mesma forma: como um sinal de que esta comissão é importante.
Quanto às mulheres, Francisco parece dizer que quer elas desempenhando papéis significativos de liderança em cada espaço que não exija ser sacerdote. Até hoje, no entanto, o pontífice não havia dado nenhum exemplo de quais seriam estes papéis.
Agora ele certamente nos brindou com um caso: dos cinco leigos que Francisco incluiu entre os líderes da nova comissão antiabuso, quatro são mulheres. O resultado é que metade dos membros da comissão é formado por elas.
Além de Collins, as outras participantes são Hanna Suchocka, que trabalhou como primeira ministra da Polônia entre 1992 e 1993 e que foi embaixadora no Vaticano durante cinco governos de seu país; Catherine Bonnet, uma reconhecida psicóloga infantil da França que tem escrito, extensivamente, sobre o trauma infligido em crianças pelo abuso sexual e exploração; e Baroness Sheila Hollins, presidente da Associação Médica Britânica e especialista bastante consultada sobre assuntos envolvendo o desenvolvimento da criança.
Está claro que a escolha destas mulheres não se deu apenas de fachada. Elas são defensoras e especialistas talentosas, com grande experiência tanto nos círculos seculares quanto na Igreja. Em princípio, o papa as incluiu por causa de suas qualificações pessoais, mas ele não pode ficar cego ao fato de que isso também se soma à sua promessa de aumentar o papel da mulher na instituição.
Convenhamos, nomear pessoas para uma comissão não é, em si, fazer reforma alguma. Está para se comprovar ainda se este grupo pode, com sucesso, ficar atento às forças que se encontram obstruídas na Igreja, ou mesmo se pode ajudar o papa a responsabilizar bispos e outros líderes católicos caso venham a falhar em suas jurisdições.
Se a comissão acabar sendo um fracasso, o anúncio de sábado não será suficiente para salvar o papa da desilusão que irá se instalar.
Por enquanto, a programação revelada pelo pontífice não só se soma a uma afirmação clara de seriedade sobre a questão dos abusos, mas também mostra um toque político hábil.
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No próximo sábado, o presidente Obama deve se encontrar com o Papa Francisco, sendo seguido por Vladimir Putin, François Hollande e os demais políticos ávidos por uma foto ao lado do líder espiritual mais querido do mundo.
Em geral, seria um engano esperar que algo dramático venha a ocorrer. Eventos assim tendem a ser coreografados em grande parte, e ambos os lados geralmente sentem a necessidade de apresentar um rosto feliz independentemente do que venha a acontecer.
Dito isso, há, no entanto, algo em jogo. Apresento aqui algumas observações a título de contextualização.
Em primeiro lugar, de um ponto de vista estritamente político, Obama precisa deste encontro mais do que Francisco.
O papa está nas alturas, com aproximadamente o dobro de aprovação em relação ao presidente, e enquanto Francisco apenas comemorou o seu primeiro aniversário no cargo, Obama se encontra na fase do “legado” de uma presidência na qual tem que refletir sobre como a história irá lembrá-lo. Construir uma parceria com o religioso para servir aos pobres do mundo certamente se apresenta como uma possibilidade atraente nesse sentido.
Numa relação de curto prazo, Obama também precisa pensar sobre as eleições intercalares. Neste momento, os republicanos visam manter o controle da Câmara e tomar de volta o Senado.
Resulta disso que, se houver concessões a serem feitas, elas estarão a cargo de Obama.
Em segundo lugar, o encontro poderá influenciar a trajetória do descontentamento católico conservador para com Francisco, dependendo de como ele e seus assessores lidarem com a questão delicada do impasse entre a Casa Branca e os bispos americanos sobre o artigos que tratam dos métodos contraceptivos impostos como parte da iniciativa de reforma do sistema de saúde do presidente.
A Suprema Corte dos EUA está pronta para ouvir os argumentos, na terça-feira, de dois casos que desafiam tais artigos da lei, ambos movidos por empresas privadas cujos proprietários apresentam objeções com base na religião.
Alguns católicos contrários ao aborto nos EUA já estão desconfiados com as declarações repetitivas do papa de que ele não pretende falar muito sobre aborto, casamento homoafetivo e controle de natalidade, porque as posições da Igreja são bem conhecidas. Isso é parte de uma inquietação mais ampla entre alguns católicos que se queixam que o prestígio do papa nos círculos seculares está vindo na mesma proporção em que se está suavizando quando o assunto é o ensino, a doutrina.
Se Francisco não irá pressionar Obama quanto aos artigo sobre a contracepção, ou ao menos não irá trazê-lo à tona, isso poderia prejudicar ainda mais sua imagem entre alguns católicos.
Quando Obama visitou Bento XVI em 2009, este encontrou uma forma criativa para enfatizar a lacuna entre a Igreja e o governo americano relativo à bioética. No final do encontro, Bento deu a Obama um exemplar do documento, de 2008, publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé chamado “Dignitas Personae”, que apresenta as bases filosóficas e teológicas para a posição antiabortiva. Foi uma jogada inteligente, porque o papa não precisou dizer nada na verdade.
As pessoas ficarão atentas para ver se Francisco encontrará uma maneira semelhante de levantar as questões de bioética nesta oportunidade.
Em terceiro lugar, a cultura de guerra não é o único lugar onde o papa e o presidente podem estar em desacordo. O Vaticano e a Casa Branca também têm uma diferença de opinião sobre a Síria, com a posição vaticana no presente papado estando mais próxima à da Rússia e China do que à dos Estados Unidos.
Em poucas palavras, o governo Obama quer claramente que o presidente Bashar al-Assad deixe o poder, e há pouco tempo estava à beira de empregar força para fazer isso acontecer. O Vaticano é muito mais relutante sobre alguma troca de regime aqui, inspirando-se na minoria cristã do país, que teme piorar as coisas para si após a retirada de Assad.
Neste contexto, Francisco tem uma chance para gastar um pouco de seu capital político e ver se ele pode pressionar Obama a ouvir o que os cristãos sírios estão dizendo.
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Agora é cardeal versus cardeal na questão de se permitir aos católicos divorciados e recasados sem anulação – declaração de um tribunal eclesiástico de que o primeiro casamento foi inválido – receberem os sacramentos.
A primeira rodada deste caso ocorreu em janeiro, quando o cardeal hondurenho Oscar Rodriguez Maradiaga, coordenador do “G8” (grupo formado por oito cardeais conselheiros do papa), se dirigiu ao cardeal alemão Gerhard Müller, o czar doutrinal do papa.
Müller publicou um artigo em que parecia fechar a porta para qualquer mudança, o que levou Rodriguez Maradiaga a se dirigir a ele durante uma entrevista a um jornal alemão.
“Eu digo, meu irmão, o mundo não é assim, e você deveria ser um pouquinho flexível quando ouve outras vozes”, falou o prelado hondurenho.
Agora, temos mais fogo cruzado entre dois princípios da Igreja, embora neste caso a repreensão pública esteja vindo de alguém que defende a disciplina tradicional: o cardeal Carlo Caffarra, de Bolonha, amplamente visto como um forte conservador e um dos principais assessores do Papa João Paulo II sobre bioética e questões relacionadas ao casamento e à família.
Nesta semana, Caffarra concedeu uma longa entrevista ao jornal italiano “Il Foglio”, na qual lhe pedem para responder a uma conferência feita pelo cardeal alemão Walter Kasper durante uma sessão recente de dois dias com a presença de todos os cardeais do mundo junto do Papa Francisco. Nesta fala, que foi chamada “de abertura”, Kasper lançou a ideia de readmissão de pessoas divorciadas e recasadas à comunhão após um período de penitência.
Perguntado sobre esta ideia, sem rodeios Caffarra disse que ela falha em responder a uma pergunta “muito simples”, qual seja: “E quanto ao primeiro casamento?”
“A solução proposta leva a se pensar que o primeiro casamento continua sendo válido, e que há uma segunda forma de viver juntos que a Igreja, de alguma maneira, legitima”, afirmou o religioso. “Isso significaria haver um exercício da sexualidade humana fora do casamento que a Igreja considere legítima. Se assim fosse, a própria base da doutrina da Igreja estaria sendo negada”.
Caffarra deixou implícito que uma medida como essa teria desdobramentos radicais: “A esta altura, por que não aprovar a coabitação?”, falou. “Por que não as relações entre homossexuais?”
O Papa João Paulo II, segundo Caffarra, considerava como “definitivo” o ensino de um casamento celebrado e consumado de forma válida, ou seja, isso está fora de qualquer questionamento. Nesse sentido, falou Caffarra, permitir católicos divorciados e casados novamente a receberem a comunhão não seria apenas uma mudança na prática, mas na doutrina.
“Estamos lidando inevitavelmente com uma questão doutrinária aqui”, acrescentou. “Isso é certamente contrário à vontade do Senhor. Não há dúvidas”.
Tanto Kasper quanto Caffarra estão mais próximos do fim de suas carreiras do que do começo, mas ambos ainda exercem considerável influência. O impasse deles contribui para as impressões de que pode ser muito difícil para o iminente Sínodo dos Bispos, em outubro, dedicado à família, encontrar consenso quanto aos divorciados e recasados.
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Uma das figuras mais heroicas na história católica recente morreu esta semana. Dom Joseph Fan Zhongliang, de Xangai, passou 20 anos num campo de trabalho prisional, de 1958 a 1978, por sua recusa teimosa em renunciar sua lealdade ao Bispo de Roma, e enfrentou várias formas de assédio e intimidação durante o resto de sua vida.
Morreu esta semana aos 95 anos, ainda sem o reconhecimento das autoridades chineses como sendo um bispo católico legítimo. Houve pressão sobre os fiéis locais para realizarem seu funeral sem muito destaque; caso contrário, ou correriam o risco de serem detidos.
No momento, a pessoa que Roma considera como o sucessor de Fan em Xangai, Dom Thaddeus Ma Daqin, está sob prisão domiciliar e tem pouco contato com o mundo exterior. Como Fan, Ma recusou a aceitar as condições postas pela Associação Patriótica Católica Chinesa, organismo imposto pelo Estado que se intitula como uma igreja católica autônoma, mas que de fato está sob o domínio do Estado.
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Francisco mostra instintos políticos ao nomear comissão antiabuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU