17 Março 2014
Sai um problema, entra outro. O deputado federal Paulo Quartiero (DEM/RR) não parece nada feliz quando começa a falar sobre os novos "ruídos" que vêm ocorrendo com comunidades tradicionais na Ilha de Marajó, para onde transferiu sua produção de arroz após ser obrigado pelo Supremo Tribunal Federal a sair da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Se antes eram os indígenas, agora quem tira o humor do congressista gaúcho são os quilombolas. "Ou um bando de gente que fica dizendo agora que é quilombola", diz.
A reportagem é de Bettina Barros, publicado pelo jornal Valor, 14-03-2014.
Desde que transferiu a sua produção para Marajó, há quatro anos, Quartiero vem sendo alvo novamente de "perseguições de gente que não quer ver o progresso do Brasil". Ele se diz cansado de ter de lidar com "vigaristas" de toda a sorte - ambientalistas, padres católicos, representantes do Ministério Público e comunidades locais.
"Sabe o que estamos fazendo de errado ali? Estamos produzindo alimentos, olha só que crime. Estamos trazendo emprego e desenvolvimento a um dos lugares com IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] mais baixos do país. Mas tem gente que não quer ver o Brasil crescer", afirma Quartiero, durante entrevista por telefone de seu gabinete, em Brasília, antes de viajar ao Pará para apresentar sua propriedade rural à reportagem do Valor.
Contra ele está uma disputa fundiária agora com descendentes de escravos e também acusações de ordem ambiental, como o plantio sem estudos de impacto ao ambiente e a contaminação de rios.
Fazendeiro eleito deputado federal por Roraima em 2010, resultado de sua ascensão como principal liderança no conflito com os indígenas, Quartiero diz que foi o primeiro de uma série de arrozeiros de Roraima que seriam bem-vindos pelo governo do Pará, em sua tentativa de atrair investidores para dinamizar a economia marajoara. Mas essas "chateações", reclama, acabaram atrasando os planos. Além dele, apenas um outro produtor, de Mato Grosso, instalou-se na ilha para investir em arrozais.
"Não fui eu quem procurou a Ilha de Marajó - fui procurado".
Na verdade, foi um casamento de interesses dos dois lados. As características de Marajó correspondiam à necessidade de novas áreas aptas à rizicultura. Para o Pará, os arrozeiros poderiam ser a luz no fim do túnel para a recuperação de uma economia em franca decadência desde a saída dos jesuítas da região, ainda no século XVII.
Quartiero enxergou na maior ilha do arquipélago um potencial real de negócio. Retirado de Roraima pelo STF, foi atraído ao município de Cachoeira do Arari pelo baixo preço baixo da terra, pelo clima apropriado e pela abundância de água doce - essa parte da ilha é famosa pelos campos naturalmente alagados pelos rios que a cortam.
O arroz "Acostumado", marca de Quartiero, também teria demanda garantida. Praticamente todo o cereal consumido no Pará vem do Rio Grande do Sul, terra natal do deputado e do braço da sua família que administra a Camil, a maior beneficiadora de arroz do país.
Quatro safras depois, Quartiero tem no encalço uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal do Pará e descendentes de escravos de 14 áreas quilombolas reivindicando territórios seus e outros estratégicos na ilha, o que esvaziaria a formação do polo rizicultor de 300 mil hectares rascunhado pela Federação de Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa).
Segundo o MPF, um Estudo de Impacto Ambiental deveria ter sido apresentado para o empreendimento de Quartiero. "É uma atividade de alto impacto, sem dúvida", diz o procurador Bruno Valente, referindo-se ao uso de agrotóxicos e à captação de água extensivos - o deputado obteve outorga para a abertura de um "braço" do rio Arari dentro de sua propriedade e 20 quilômetros de canais de irrigação. "Não concordamos com os estudos simples que foram entregues para a obtenção de licença". Paralelamente, o MPF acompanha acusações de pulverizações aéreas de agrotóxicos que estariam atingindo os habitantes da cidade.
Os conflitos tendem a ser mais tensos porque a propriedade de Quartiero, de 12 mil hectares, circunda completamente - ou "sitia", na versão dos locais - Cachoeira do Arari. A cidade gira em torno da comunidade quilombola de Gurupá, com cerca de 300 famílias. Até a chegada dos arrozais, a população transitava livremente pela área e pescava nos rios da propriedade. A fazenda pertencia a uma família influente de Belém, que tentou por alguns anos a pecuária, se desinteressou e semi-abandonou a área, como outros tantos latifúndios em Marajó.
Quartiero mudou esse quadro. Além de cercar a área, limitando o vaivém dos locais, a comunidade ficou encurralada pelo arrozal.
"Trouxemos todas as cercas de Roraima. Eles [os índios] não queriam a terra? Deixamos só a terra", diz Renato Quartiero, filho de 30 anos do deputado e administrador da fazenda. Ele dirige a caminhonete enquanto são realizados trabalhos como a abertura de um braço do rio Arari para permitir o plantio, canais de irrigação, estradas etc. No banco de trás, seu pai explica: "Está vendo? Não tem desmatamento nenhum. Aqui não tem floresta", afirma ele, referindo-se aos campos naturais de Marajó. "É tudo coisa de ambientalista. Esses mesmos vigaristas que vêm falar em aquecimento global", diz.
Entre um e outro arrozal desponta a cidade. "Esta aqui é Cachoeira do Arari. Eles reclamam que não têm para onde crescer. Então estamos separando 27 hectares para fazer um loteamento de casas e vender para a população. Assim eles param de encher o saco".
Uma estrada de 35 quilômetros liga as lavouras ao porto privativo construído para escoar a produção até Itacoaciara, distrito de Belém onde o cereal é processado e embalado. Este ano, os Quartiero esperam colher 360 mil sacas de 50 quilos nos três mil hectares plantados. O ideal é chegar a 8,5 mil hectares de arroz para fazer valer investimentos declarados de R$ 35 milhões na propriedade. Mas aí surge um novo problema: outra comunidade quilombola reivindica a terra onde o porto está.
Quartiero nega essa e todas as outras acusações que lhes são feitas. A seu favor, nada foi comprovado contra ele até o momento.
Questionada, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará (Sema), que autorizou o empreendimento, explica que as licenças foram emitidas no governo anterior, de Ana Julia Carepa (PT). Para tentar apaziguar os ânimos, o órgão, hoje subordinado ao PSDB, pretende requerer um documento mais brando que o Estudo de Impacto Ambiental. "O empreendimento já está aí. Agora tentaremos um caminho para adequar a situação", afirmou Hildemberg Cruz, secretário-adjunto da Sema. O Ministério Público não concorda e reitera: não haverá aumento de plantio sem a necessidade de estudo ambiental.
O receio dos quilombolas é de que a vinda de mais produtores impulsione o polo rizicultor em terras sob contestação. Há, hoje, 16 comunidades quilombolas em Marajó pleiteando com o Incra regularização - a emissão do chamado Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, ou RTID.
A sobreposição de interesses acontece também em Salvaterra, município a quase 100 km de Cachoeira do Arari mas estrategicamente localizado ao lado do principal porto que serve à ilha. José Marques, produtor do Mato Grosso, está lá. Começou a plantar este ano sua primeira safra de arroz sequeiro, muito utilizado para abertura de áreas no Cerrado, bioma que predomina nessa parte da ilha. Marques chegou pelo preço da terra e "limpou" 1.250 hectares de uma propriedade de 3.700.
"Há grandes questões pendentes no desenvolvimento da rizicultura em Marajó, mas o foco principal é o fundiário. E o mais sério é que a parte afetada não participa desses discussões", diz João Meireles, presidente da ONG Peabiru, uma das mais atuantes em Marajó.
Estima-se que aproximadamente 45% da população de Salvaterra seja quilombola, com comunidades que variam de 80 a duas mil pessoas. Duas acaloradas audiências públicas foram realizadas em Belém em 2013 para discutir o cultivo na ilha. Em agosto, o líder quilombola Teodoro Lalor foi assassinado a facadas em Belém. Ele era um dos principais críticos à ocupação de Marajó. A polícia do Pará concluiu se tratar de crime passional.
"Eles têm a gente como empecilho. Para eles, somos ambientalistas. Na verdade, somos só pobres, com direito a esta terra, e sem os meios que eles têm de se fazer ouvir", diz Haroldo Conceição, vice-presidente da Associação Quilombola de Bacabal, que há 14 anos aguarda a certificação do Incra.
Para o bispo Dom Azcona, da prelazia de Marajó, ao contrário do que afirma o governo - que o arroz é uma saída histórica para o desenvolvimento da ilha -, a cultura é uma saída apenas para fazendeiros e arrozeiros, não para a comunidade. Na última audiência pública, citando documento enviado por seu colega da Igreja de Roraima, o bispo Azcona afirmou que havia "cerca de 40 processos [criminais ] sobre o mesmo grupo que agora planeja plantar arroz no Marajó".
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Crônica de mais um conflito anunciado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU