26 Fevereiro 2014
"Ele não vai sair da placa para torturar as pessoas. Logo não há razão para se preocuparem em mudar o nome do meu endereço". A declaração do advogado Roberto Marques de Carvalho Koszt, 62, revela a resistência da maioria dos moradores da Rua Doutor Sérgio Fleury, na Vila Leopoldina, zona oeste da capital paulista, ao projeto do vereador Orlando Silva (PCdoB) de renomear o logradouro para Frei Tito, em homenagem ao frade cearense torturado nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) por se opor ao regime militar (1964-1985). Sob o comando do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, o Dops se tornou em um centro de tortura nos anos de chumbo.
A reportagem é de Fernando Taquari e Guilherme Serodio, publicada no jornal Valor, 25-02-2014.
"Além disso, não vejo razão para homenagear alguém do Norte", diz Koszt. "E se for para trocar, que seja por um político ou uma figura de São Paulo", complementa o advogado, morador da rua há 22 anos. A iniciativa de deputados e vereadores Brasil afora em apresentar projetos para alterar logradouros públicos com nomes de violadores dos direitos humanos tem esbarrado na oposição dos próprios parlamentares e de muitos residentes que temem eventuais transtornos com a troca. Com o objetivo de convencer os moradores a modificar a nomenclatura da rua para Frei Tito, representantes da Secretaria Municipal de Direitos Humanos foram até o local três vezes no segundo semestre de 2013.
Com um telão, repassaram a história do delegado e do frade. A visita, contudo, não foi suficiente para sensibilizar os vizinhos. A maioria dos 31 moradores da rua, pequena e sem saída, votou contra a proposta sob a justificativa de que a troca poderia provocar problemas com os serviços de correspondência e a escritura do imóvel. "Isso sem contar que há os dois lados da história sobre Frei Tito", diz Camila Francisca, dona de casa de 29 anos, ao lembrar que o frade foi acusado pela ditadura de pertencer à Ação Libertadora Nacional-ALN, organização de luta armada fundada por Carlos Marighella. "Não queremos mudar para colocar outro nome triste", corrobora a doméstica Raquel das Graças Lúcio, moradora da rua há 14 anos.
Os três moradores da vila ainda são unânimes em afirmar que os parlamentares deveriam concentrar os esforços em serviços básicos, como educação e saúde, e não em batismos de ruas. Uma lei sancionada pelo prefeito paulistano, Fernando Haddad (PT), em abril de 2013, visa facilitar a renomeação. A lei permite aos moradores de um determinado bairro fazer um abaixo-assinado para trocar o nome da rua quando se tratar de uma homenagem a um violador dos direitos humanos. São necessários dois terços dos residentes para concretizar a renomeação.
Desde que a lei entrou em vigor, porém, não houve nenhum pedido com essa finalidade, de acordo com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos. Para a prefeitura, a lei ainda é desconhecida de boa parte da população, o que justificaria a inexistência de abaixo-assinados.
"Nunca ouvi falar dessa lei sem importância", diz Alice de Oliveira Castilho, 58, moradora da Rua Henning Boilesen, no Jaguaré, perto da divisa com Osasco (SP). "É a primeira vez que ouço falar dessa possibilidade. Sou indiferente à troca", complementa o vizinho, José de Ataíde, 72.
Aposentados, os dois tampouco conheciam a história de Boilesen que, além de financiar a Operação Bandeirante (Oban), que viria a ser o embrião dos Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações-Coordenação de Defesa Interna), tinha o hábito de assistir às sessões de tortura. Presidente do grupo Ultragás, Boilesen foi assassinado por militantes de esquerda em 1971.
A renomeação de logradouros públicos que prestam homenagem a pessoas vinculadas à ditadura também enfrenta a resistência de vereadores e deputados. Nos últimos dez anos, foram apresentados 13 projetos com esse viés na Câmara Municipal de São Paulo (nove) e na Assembleia Legislativa do Estado (quatro). Desses, seis foram arquivados e quatro estão esquecidos nas comissões temáticas. Três foram aprovados.
Só em relação ao Elevado Costa e Silva, uma homenagem ao segundo presidente da ditadura militar, Arthur da Costa e Silva, são quatro propostas, sendo uma ainda em tramitação. O vereador Nabil Bonduki (PT) quer mudar o nome do elevado para Minhocão, como é conhecido popularmente. "Nome de rua deveria ser uma homenagem para quem prestou serviços relevantes para a sociedade. Os torturadores com certeza não prestaram", afirma.
A lista de propostas ainda deve crescer nos próximos meses. A pedido da Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, a biblioteca da Câmara realiza um levantamento nas ruas da capital paulista para identificar homenagens, monumentos e logradouros públicos com nomes de torturadores. Até agora, foram identificados 15 endereços e 11 condecorações, entre títulos e medalhas.
"Concluído esse processo, vou apresentar um projeto, como vereador, para alterar o nome de todas essas ruas, além de cassar essas homenagens que denigrem a imagem da cidade", ressalta o presidente da comissão, vereador Gilberto Natalini (PV). Em Campinas, no interior paulista, a Câmara local já proibiu que vias públicas do município recebam o nome de pessoas que cometeram crimes de lesa humanidade.
O sucesso das iniciativas, por outro lado, depende muito do apoio do Executivo. Duas mudanças no Estado ocorreram justamente por empenho da prefeitura e do governo. Em 2010, na gestão de José Serra (PSDB), a administração estadual defendeu o projeto do deputado Milton Flávio (PSDB) para rebatizar a estrada SSP-332, que liga Campinas a Conchal, de Zeferino Vaz, que foi médico, um dos artífices da construção da Unicamp. A rodovia homenageava antes o general linha dura Milton Tavares de Souza, comandante do Centro de Informações do Exército (CIE) durante a ditadura militar.
O general também teve o nome retirado de um viaduto que interliga a Avenida Governador Carvalho Pinto, na Penha, à Avenida Educador Paulo Freire e à Rodovia Fernão Dias, na Vila Maria, na zona norte. De autoria de Serra, então prefeito em 2006, o projeto só foi aprovado em 2011, no governo de Gilberto Kassab (PSD), que solicitou a votação à base aliada para agradar ao PCdoB depois de o partido aderir ao governo. Hoje, o viaduto leva o nome de Domingos Franciulli Netto, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), morto em 2005.
Iniciativas similares também ocorrem em outros Estados e enfrentam os mesmos desafios. A avenida que leva o nome do general Souza em Niterói, no Rio, está no alvo da comissão municipal. "Queremos mudar o nome para Fernando Santa Cruz, um estudante de direito desaparecido da UFF", diz Renato Almada, sub-secretário da prefeitura de Niterói.
No Rio, o caso mais emblemático é o da ponte que liga o Rio a Niterói e carrega o nome de Costa e Silva. Há dois anos circula no Congresso uma proposta de lei pedindo a troca do nome para Ponte Herbert de Souza, em memória do sociólogo Betinho, exilado em 1971, durante o governo Emílio Garrastazu Médici. Foi Médici quem inaugurou a ponte em março de 1974, onze dias antes de deixar o poder. "Obras perenes com esses nomes são elogio ao regime", diz o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ), co-autor do projeto ao lado de outros dez deputados.
Apesar do envolvimento de vários parlamentares, o projeto não convenceu os pares no Congresso. O deputado Mário Negromonte (PP-BA) deu parecer contrário à mudança na Comissão de Ação e Transporte, argumentando que Costa e Silva fez parte da história militar do Brasil. Para ele, a mudança de nome "não deve parecer ato de revanchismo ou confrontação ideológica". O projeto está parado há seis meses na Comissão de Educação. Nem a visita do filho de Betinho comoveu o relator, Sérgio de Oliveira (PSC-PR).
Há duas semanas uma nova proposta de mudança do nome da ponte foi levantada pelo Ministério Público Federal do Rio. A sugestão visa, primeiro, a retirada do nome atual, dado por lei federal de 1974, e depois, um debate público para definir novo nome. "É preciso que se entenda que há uma obrigação internacional de punir certos crimes", diz Sérgio Suiama, procurador da República e membro do Grupo de Trabalho Justiça de Transição do MP.
O procurador se refere à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, que condenou, em 2010, o Brasil a investigar e punir casos relacionados a graves violações de direitos humanos durante o regime. "Buscamos não a imposição de um nome específico, mas a substituição do nome de uma figura vinculada à tortura e à repressão por conta do AI-5", diz sobre Costa e Silva.
Diante das dificuldades em mapear as ruas de todo o Estado, a Comissão da Verdade do Rio Grande do Sul conta com o apoio e a parceria de comitês criados para auxiliar no trabalho de resgate à memória e à verdade. O Comitê Carlos de Ré, de Porto Alegre, quer aproveitar o cinquentenário do golpe este ano para apresentar, por meio do vereador Carlos Ruas (PSOL), projeto para renomear a Avenida Castelo Branco, uma das principais de Porto Alegre, para Democracia ou Legalidade, em homenagem aos gaúchos que participaram do Movimento da Legalidade, liderado por Leonel Brizola. Proposta semelhante, entretanto, já foi rejeitada pelos parlamentares em 2011.
Em Campo Grande (MS), a prefeitura trabalha para alterar gradativamente o nome de logradouros que fazem homenagens a torturadores, segundo lei sancionada pelo prefeito Alcides Bernal (PP). A ideia é que os nomes sejam substituídos pelos das vítimas. No alvo estão as avenidas senador Filinto Muller e Ernesto Geisel.
No Recife, projeto em tramitação da vereadora licenciada Marília Arraes (PSB) tem o mesmo objetivo mas recebeu parecer contrário da Comissão de Educação e pode nem mesmo chegar ao plenário.
A Comissão Estadual do Rio, por sua vez, também está empenhada em alterar o nome de escolas que celebram presidentes da ditadura. Levantamento realizado pela entidade identificou sete colégios municipais e estaduais. Uma delas, a Escola Estadual Presidente Costa e Silva, em Nova Iguaçu, teve o nome mudado no fim do ano passado. Agora homenageia Abdias Nascimento, ex-senador e ativista do movimento negro. "A mudança de nomes de escolas tem caráter pedagógico e deve ser priorizada", afirma Wadih Damous, presidente da comissão estadual.
A ideia de renomear, em geral, conta com o apoio dos docentes, como no caso da Escola Municipal presidente Artur da Costa e Silva, em Botafogo. "Tinha que mudar isso. Como aquela estrada que vai para a Região dos Lagos, Mário Covas. O que Mário Covas teve a ver com a história do Rio? Mesmo do Brasil?", diz, um professor, que não quis se identificar, ao juntar no mesmo barco o segundo presidente do regime militar e o ex-governador paulista que lutou pela redemocratização.
Em Salvador, na Bahia, a iniciativa partiu dos próprios estudantes. Pais, alunos e professores realizaram votação para trocar o nome do colégio que homenageava Médici. O nome escolhido foi Carlos Marighella, que recebeu 406 votos, contra 128 do geógrafo baiano Milton Santos (1926-2001).
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Moradores resistem a trocar nomes da ditadura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU