24 Fevereiro 2014
Na Igreja de cinco séculos atrás, às vésperas da tempestade da Reforma protestante, estava claro quais eram as elites legitimadas a enviar memorandos ao papa para a reforma de uma Igreja corrupta. Na Igreja de hoje, é evidente a passagem epocal de um certo tipo de Igreja a outro.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Saint Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio HuffingtonPost.it, 20-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Meio milênio atrás, em 1513, dois monges camaldolenses, Quirini e Giustiniani, enviaram ao papa do Renascimento, Leão X, o célebre Libellus ad Leonem X. Nesse memorando de reforma, os dois monges pertencentes à elite da Igreja e da sociedade italiana, apresentaram ao papa (durante a celebração do irrelevante Concílio Lateranense V) o plano mais radical de mudanças – culturais e institucionais – jamais visto pelo catolicismo antes do impacto da Reforma Protestante.
Cinco séculos depois, entre 2013 e 2014, o Papa Francisco está tentando impedir que o impacto sobre a estrutura da Igreja Católica de um golpe mortal, que não seria tão barulhento quanto o da Reforma dos reformadores do século XVI, mas um golpe abafado, surdo: o da irrelevância da Igreja e do catolicismo no mundo contemporâneo.
O Papa Francisco acostumou-nos aos ritmos acelerados. Esta semana e a próxima provavelmente serão decisivas para compreender a trajetória reformadora do pontificado do Papa Francisco: a reunião do conselho dos oito cardeais; o consistório extraordinário que precede a cerimônia de criação dos novos cardeais; as reuniões do papa com a comissão referente sobre a organização da estrutura econômico- administrativa da Santa Sé e com a comissão competente pelo IOR.
Na próxima semana, a agenda vaticana prevê a reunião conjunta com os cardeais membros do Conselho para o estudo dos problemas organizacionais e econômicos da Santa Sé (o chamado "Conselho dos 15") e a reunião da Secretaria do Sínodo.
Nestes dias, portanto, estão se concretizando, em seguida, os dois desafios do Papa Francisco. O primeiro desafio é o de uma reforma administrativa e institucional da Cúria Romana e de algumas de suas instituições. A questão da instituição financeira é somente uma parte da eterna questão institucional do catolicismo romano. O memorando (até agora secreto) apresentado pelos cardeais ao papa poderia se referir à estrutura mais geral do governo central da Igreja, a Cúria Romana, um organismo que, desde a sua fundação, no fim do século XVI, foi apenas retocada e nunca realmente reformada (em 1908, em 1967 e em 1988).
Sobre esse tema, o Papa Francisco recebeu um mandato do conclave e até agora agiu de modo cauteloso dentro da Cúria (renovando o mandato de muitos cardeais e bispos nomeados pelo antecessor) e corajoso fora da Cúria (especialmente com a criação do Conselho dos oito cardeais). Esse Conselho dos oito se reúne regularmente e continuará a fazê-lo, com duas sessões no fim de abril e no início de julho. Resta saber o que o Papa Francisco fará com a diversidade de opiniões representada dentro do grupo dos oito (por exemplo, entre um ultraconservador como o australiano Pell e um alemão pragmático como Marx).
Ainda mais importante é o papel do Papa Francisco diante do segundo desafio, o do Sínodo de outubro de 2014 sobre as questões da família (e da moral matrimonial, sexual e da disciplina dos sacramentos), sobre os quais o Papa Francisco não recebeu um mandato do conclave, mas age sob uma espécie de "mandato popular" ou "pastoral". Aqui também os cardeais que tomaram a palavra até agora mostraram uma diversidade de opiniões; os leigos que se manifestaram graças ao questionário pré-sinodal em grande parte confirmaram o abismo entre a vida real das famílias dos católicos e as situações assépticas da moral oficial; os bispos disseram (exceto raros casos) pouco ou nada, em testemunho da crise de liderança do episcopado católico no Ocidente.
Na Igreja de cinco séculos atrás, às vésperas da tempestade da Reforma protestante, estava claro quais eram as elites legitimadas a enviar memorandos ao papa para a reforma de uma Igreja profundamente corrupta. Na Igreja de hoje, ainda não chegamos às reuniões dos cardeais em streaming, mas é evidente a passagem epocal de um certo tipo de Igreja para outro: da Cúria Romana dos italianos à de uma Igreja global; de uma Igreja centralista e uma Igreja que se agarra a um organismo novo de nomeação papal como o "Conselho dos oito"; de uma Igreja dominada pelos bispos a uma Igreja em que, aparentemente, a grande maioria dos bispos não têm nada a dizer; de uma Igreja do fluxo de notícias controlado pela máquina vaticana e os seus correspondentes a uma Igreja do news cicle 24 por dia.
Em tudo isso, o principal agente de mudança é hoje o ícone da tradição católica, o papado, o símbolo da continuidade com a tradição. É um dos paradoxos do pontificado de Francisco, o fio sutil sobre o qual caminha não só o Papa Bergoglio, mas também toda a Igreja.
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''Libellus ad Franciscum'': os cardeais e a reforma papal. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU