11 Dezembro 2013
Revisão de certos "costumes", abertura de debates ontem bloqueados, luta contra o clericalismo: o primeiro grande texto do Papa Francisco confirma a sua vontade reformadora que não vai agradar a muitos.
A reportagem é de Philippe Clanché, publicada no sítio da revista francesa Témoignage Chrétien, 09-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um documento de Roma que fala de alegria. Já tínhamos lido algo parecido depois do Concílio Vaticano II e da Gaudium et spes? A exortação Evangelii gaudium (a alegria do evangelho), o primeiro grande texto magisterial inteiramente rotulado com a marca "Papa Francisco", expressa muito bem a imagem do novo papa.
O seu antecessor usava mais facilmente a referência à verdade do que a invocação à alegria. Este texto segue o Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização, que ocorreu em outubro de 2012, durante as últimas semanas do pontificado de Bento XVI. No entanto, essa exortação não é, ao menos em seu título oficial, "pós-sinodal".
Outra coisa muito significativa, o termo "nova evangelização", tão caro a diversos movimentos eclesiais, muito em voga nas últimas décadas, desapareceu do vocabulário papal. Nesse documento em que há um pouco de tudo e em que o papa se permite usar frequentemente a primeira pessoa do singular, o Papa Francisco teoriza as suas prioridades em âmbito eclesial, já apresentadas várias vezes (em particular, na sua entrevista para as revistas jesuítas).
Citando o Vaticano II, "existe uma ordem ou 'hierarquia' das verdades da doutrina católica". E acrescenta: "Isso é válido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral" (§ 36). Como há 50 anos, é possível falar na Igreja Católica!
Tomás de Aquino
Homem prático, o papa dá exemplos de modos de agir e de falar que os pastores devem evitar, como por exemplo "quando se fala mais da lei do que da graça, mais da Igreja do que de Jesus Cristo, mais do Papa do que da Palavra de Deus" (§ 38).
O momento é propício para a mudança, e Francisco dá uma motivação para isso. Certos costumes da Igreja "agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os rever!" (§ 43).
Baseado-se em Tomás de Aquino – que observava que os preceitos dados por Cristo aos apóstolos eram realmente poucos – o pontífice argentino pede que se faça dessa declaração "um dos critérios a considerar, quando se pensa em uma reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a todos" (§ 43).
A frase é fundamental. Trata-se justamente de uma "reforma". Há alguns meses, a palavra era um tabu. Essa "reforma" diz respeito não à mensagem, mas à "pregação". E esta é destinada precisamente a todos. A difusão da mensagem não pode se limitar a uma elite de católicos puros, sempre respeitosos com o catecismo, que recebem todas as atenções de alguns bispos nossos. Que, fazendo isso, ignora o rebanho. Sem dúvida, é pensando neles que o papa escreve isso hoje de forma decisiva.
Devoção popular
Muitas vezes exigente com os pastores, aos quais dirige conselhos para compor as homilias, o Papa Francisco aborda com benevolência a situação dos leigos envolvidos na comunidade. Ele reconhece as dificuldades encontradas por aqueles e aquelas que não encontraram espaço "para poderem se expressar e agir por causa de um excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões" (§ 102). Parece justamente que o clericalismo excessivo – pleonasmo, diriam alguns – está se tornando uma das bestas negras do papa.
Outro aspecto merece ser destacado, fruto da experiência argentina do autor. O papa dedica alguns parágrafos à "força evangelizadora da piedade popular", que "não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental" (§ 124).
Mais uma vez, Jorge Mario Bergoglio usa a primeira pessoa: "Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos do Credo" (§ 125).
O tropismo intelectualista do catolicismo europeu certamente será abalado por este pontificado. Nesse texto programático, não nos debruçaremos sobre as afirmações socioeconômicas, em grande parte evocadas na imprensa. Não que não tenham interesse, ao contrário. Mas as teses críticas do liberalismo e do individualismo se inscrevem na linha dos textos romanos anteriores, desde 50 anos atrás. Vindo da pena de um papa "popular", pode-se esperar que elas sejam lidas com mais atenção do que antes.
Com este texto – desta vez inatacável com relação ao seu estatuto oficial –, aqueles que apoiavam (ou esperavam) perceber uma perfeita continuidade com o pontificado anterior, terão que admitir que certas coisas estão mudando. Nos próximos meses, que serão muito agitados em Roma, saberemos mais sobre isso.
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Vaticano: a mudança começou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU