14 Novembro 2013
Uma política pública muito bem desenhada se autodestrói. E o Brasil delineou uma política de combate à pobreza tão eficiente que está acabando com os pobres, afirma o subsecretário de Ações Estratégicas da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), Ricardo Paes de Barros. Os números impressionam. Em dez anos, o percentual de pobres na população brasileira caiu de 49% para 28%, enquanto o de ricos subiu de 13% para 19%. A classe média - uma camada que, nas contas da SAE, tem renda entre R$ 291 e R$ 1.019 per capita - absorveu controversos 40 milhões de pessoas, saltando de 38% para 53% da população.
A reportagem é de Flavia Lima, publicada no jornal Valor, 13-11-2013.
Há quem discuta o tamanho "real" desse grupo. Paes de Barros ressalta que 54% da população mundial tem renda per capita abaixo de R$ 291 e apenas 18% acima de R$ 1.019, o que torna as linhas de corte bastante razoáveis. E diz que a discussão mais relevante é outra. "O que importa mesmo é saber quem são esses caras, onde estão." Para o estudioso, esse é o novo desafio do governo, que vai ter que passar a olhar com mais cuidado para uma classe, cujas necessidades são outras. "O problema é que o Brasil aprendeu a chegar ao mais pobre do pobre, mas ninguém tem muita ideia de como fazer política para essa classe média." Para o pobre, diz ele, as condicionalidades do Bolsa Família funcionam. "Já na classe média baixa, vai ser preciso escutar o cara para saber o que ele quer."
Considerado o responsável pelo formato atual do Bolsa Família, programa que atende 13,8 milhões de famílias, ou o correspondente a um quarto da população brasileira, Paes de Barros diz que a cobertura não precisa mais ser ampliada, mas melhorada. Hoje, o benefício mínimo é de R$ 32 para famílias em situação de pobreza - com renda mensal per capita entre R$ 70,01 e R$ 140 - e que têm criança, jovem ou gestante em sua composição, limitados a cinco benefícios. Se os valores incentivam o aumento das famílias, o último censo demográfico sugere que isso não está acontecendo. A taxa de fecundidade total da população brasileira varia de 1,7 filho no Sudeste a 2,5 filhos no Norte - ou 1,9 filho na média no país.
Contra essas e outras ideias cristalizadas a respeito do programa, que hoje nem mesmo a oposição ousa excluir de sua plataforma, o estudioso lança mão de um raciocínio simples: "Ao se dar mais renda para alguém, é natural que essa pessoa seja mais exigente". Sem medo de polemizar, Paes de Barros, ou "PB" como é conhecido, afirma que, se convidado, certamente voltaria a elaborar o capítulo social de um eventual programa de Marina Silva. E encerra a entrevista dizendo que rótulos não o preocupam. "Nunca vou defender o aumento do tamanho do Estado", diz. "Mas a educação em todos os níveis deveria ser feita de modo que pobres e ricos fossem misturados na mesma sala de aula, sentassem no mesmo refeitório, usassem o mesmo ônibus e tivessem acesso aos mesmos livros. Mas no fim do mês para o rico chegaria uma conta e para o pobre, não. Se isso é ser liberal, eu sou liberal." A seguir, os principais trechos da entrevista.
Eis a entrevista.
O sr. já falou que o que o surpreende não é a queda da pobreza ou da desigualdade, mas isso ocorrer todo ano. No entanto, a PNAD mostrou estabilidade na queda da desigualdade em 2012. O dado surpreendeu, ou é preocupante?
A desigualdade não caiu, mas a pobreza, sim. A renda dos mais pobres continuou crescendo acima da média. Só que antes quem estava pagando a conta eram os ricos. No ano passado, quem pagou a conta foi mais a classe média. Logo, o Brasil continuou fazendo com que a renda dos mais pobres crescesse mais rápido do que a [renda] média. O que aconteceu de não usual é que o Brasil vinha numa trajetória em que a renda dos ricos crescia muito abaixo da média e, de repente, cresceu acima da média.
E isso acende algum sinal amarelo?
Em um contexto em que a renda dos pobres cresceu mais de 10%, não me preocupa que os ricos estejam crescendo também. Mas pode ser que em outro momento, em que o crescimento [da renda] seja mais lento, isso faça falta. Eu diria que no último ano isso não fez muito falta. A pobreza caiu como nunca, porque os pobres ganharam bastante.
Nos últimos anos, o aumento do salário mínimo acima da inflação foi crucial na redução da desigualdade, mas ele deve perder força. Como o sr. vê isso?
As altas do salário mínimo têm muito mais a ver com a classe média. E como a desigualdade é muito sensível à classe média - tanto é que no mundo em que o pobre estava indo muito bem, bastou a classe média não ir tão bem para que a desigualdade parasse de cair -, o salário mínimo parar de crescer pode desacelerar a queda na desigualdade como medida. Mas pode continuar acontecendo de a pobreza continuar a cair. O salário mínimo pode não ser tão importante para a redução continuada da pobreza.
Ao mesmo tempo, o sr. defende que o próximo passo do governo seja olhar para essa classe média gigante que ascendeu. O que isso significa exatamente?
Nós já estamos com extrema pobreza de 5%. Costumo dizer o seguinte: uma política pública muita bem desenhada se autodestrói. Então, o problema do Brasil hoje em dia é que ele desenhou uma política pública de combate à pobreza tão bem-sucedida que está acabando com os pobres. Essas pessoas não vão ser mais tão pobres e vão ter outras necessidades. Cheguei à escola, agora vou ter que melhorar a qualidade da escola. Como? Primeiro em coisas básicas, como a merenda, o livro didático. Aí vou ter que trabalhar o professor. O problema é que o Brasil aprendeu a chegar ao mais pobre do pobre, mas ninguém tem muita ideia de como fazer política para essa classe média. Além do que, para o pobre é possível fazer política como a condicionalidade do Bolsa Família. Já na classe média baixa, vai ser preciso escutar o cara para saber o que ele quer. Toda política pública efetiva tem que correr atrás o tempo todo, se modificar. É como estar sujeito a um tratamento psicanalítico. Dez anos no tratamento falando a mesma coisa é sinal que tem algo errado.
Mas há uma novidade em relação à classe média. O sr. acredita que essa classe média esteja próximo do pico?
Há gente que a acha que a classe média vai crescer sempre. Não vai. Acredito que a classe média vai atingir um pico e que, talvez, até por questões de como a gente definiu a classe média, podemos ter começado a mensurar, sem querer, perto do pico. Seria uma questão metodológica. Isso não quer dizer que a classe baixa não vai despencar. Mas a passagem da classe média para a alta vai ser mais intensa, não permitindo que isso [a classe média crescer muito] aconteça. E isso não é ruim, é bom.
Como o sr. responde aos críticos do Bolsa Família, que falam que há certo imobilismo, ou que não há porta de saída?
Ao se dar mais renda para alguém, é natural que essa pessoa se torne mais exigente. Um emprego ridículo o cara não vai aceitar. Agora, experimenta aumentar o salário para ver se ele aceita. Há um aumento de renda que simplesmente tira a pessoa de uma situação absurda, de fazer qualquer coisa para o filho não morrer de fome, uma situação que dá certo poder de barganha para quem vai empregar aquela pessoa. Agora, se eu digo, a alimentação do seu filho eu garanto, o cara vai poder ser mais exigente na hora de trabalhar. Em todo o país que vai ficando mais rico, as pessoas não ficam mais preguiçosas, ficam mais exigentes. E isso é bom.
Há um lado ruim?
O Bolsa Família tem que ser cuidadoso com o incentivo negativo. Por exemplo, se eu disser que te dou R$ 100, mas que se você arranjar um emprego eu te tomo os R$ 100, você vai pensar, se eu tenho R$ 100 garantidos para que trabalhar para ganhar os mesmos R$ 100? Isso é um desincentivo real, que não acontece só com o Bolsa Família, mas com todo sistema de impostos, por exemplo. O Bolsa atua como o imposto. O motorista de táxi que paga certinho todos os impostos dele, na hora em que tem que decidir se trabalha mais uma hora, ou vai para casa, ele leva esse problema em consideração também. A menos que alguém ache que o pobre é particularmente preguiçoso. Mas o Bolsa Família tem uma técnica especial para lidar com isso: hoje, se o [ex-] beneficiário perder o emprego, tem automaticamente seu incentivo restabelecido. Ou seja, se você declarar a renda, você sai com direito a voltar sem pegar fila.
São dez anos de Bolsa Família, a abrangência chegou ao limite?
A cobertura de hoje não precisa ser aumentada, precisa ser melhorada. Há algumas pessoas fora, uns 2% ou 3% da população que continuam não recebendo e precisariam receber.
O programa continua sendo uma ferramenta importante na redução da pobreza e da desigualdade?
Ele é e sempre será. Porque sempre há pessoas que, por variadas razões, como a perda do emprego, se tornam pobres. Todo país desenvolvido no mundo tem um equivalente ao Bolsa Família. E quanto mais rico um país é, mais ele vai ser benevolente num programa desse tipo.
O Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. O sr. vê o país deixando esse grupo em um prazo razoável?
Estamos reduzindo a nossa desigualdade muito rapidamente, mas se vamos deixar esse grupo vai depender do que acontece com a desigualdade nos outros países do grupo. Os países mais desiguais do mundo são os latino-americanos e alguns africanos, e nós pertencemos a um grupo que está fazendo um dever de casa parecido com o nosso.
Como o sr. vê a iniciativa de usar recursos do pré-sal ou destinar 10% do PIB para a educação?
Recurso nunca é motivo para comemorar nada. O Brasil precisa decidir se quer dar um salto em educação ou não. É mais ou menos igual ao que os Estados Unidos fizeram quando decidiram ir para a Lua. Tem que tomar a decisão de fazer alguma coisa excepcional. Se nós realmente queremos fazer algo que ninguém faz, precisamos gastar mais. Mas se a gente continuar fazendo o mesmíssimo de sempre e gastar 10% do PIB em educação, não vamos crescer duas vezes mais rápido do que os outros. O que estou dizendo é que acho que a discussão dos 10% veio antes da discussão do que queremos. Por isso a analogia com a corrida espacial americana é válida. Chegar à Lua talvez fosse mais fácil. A educação aqui é totalmente centralizada, envolve 5 mil e tantos municípios autônomos e Estados autônomos. O poder do Ministério da Educação é limitado e dependemos dramaticamente da participação dos pais, da comunidade e dos alunos. Quem perguntou se eles querem fazer isso?
Valor: Seria importante centralizar?
Paes de Barros: Não sei se a solução é centralizar, temos que entender que isso envolve um sacrifício. Os dois países que mais gastam com educação são Coreia e Chile, com 8% e 7% do PIB, respectivamente. Só que metade disso, 4% e 3,5%, é privado. Então, eu não estou entendendo o seguinte: por que vamos gastar 10% do PIB com educação e o filho do rico vai para a universidade pública gratuita? Se esse é um esforço nacional para educação, então vamos aumentar o gasto privado. Se toda a população brasileira quer isso, as famílias têm mil maneiras de realocar dinheiro para educação. Se o objetivo é dobrar a velocidade, e se isso gasta 10% do PIB, sou a favor, mesmo que dê errado depois. Mas preciso ter certeza que estamos engajados em uma mudança de rota, que está todo mundo consciente que isso vai sacrificar saúde, habitação, saneamento, infraestrutura e outras coisas. E eu estaria mais contente se visse 5% vindo do setor privado, ainda que 10% viessem do setor público.
O sr. é a favor de cotas em universidades para negros e estudantes vindos do ensino público?
A maneira mais simples de ver isso é a seguinte: existe uma dívida social com as famílias mais pobres e particularmente com a população negra. O maluco da história é que só faz sentido falar em cota para uma coisa que tem teto. Não faz sentido dar cota para as pessoas comerem feijão, porque é possível aumentar a produção do grão. Acho que o importante na educação superior é aumentar o número de vagas e universidades, afinal não há razão para não fazê-lo. Recursos? O setor privado está aí para isso. Deixa o setor privado criar novas universidades ou aumentar vagas. E aí, para cada pobre, independentemente se ele vai estudar no setor privado ou público, é gratuito. E o rico, dependendo da renda dele, vai pagar 10%, 50%, 90% ou 100%. E vou expandir a oferta de vagas, porque não faz sentido alguém querer ser engenheiro, ter condições para ser engenheiro e não ter universidade. É ridículo. Para que inventar cota para algo que eu posso ter mais? Agora, enquanto não tenho mais, faz todo sentido que as vagas gratuitas fiquem na mão de quem mais precisa.
O sr. está com um mapa das políticas públicas voltadas para a produtividade do trabalho. Qual são as principais sugestões?
O Brasil tem um problema grave, ele está aumentando a remuneração do trabalho mais rápido que a produtividade do trabalho e isso vai dar besteira em algum lugar. O [economista Nobel de 2008] Paul Krugman tem uma frase célebre em que diz que a produtividade do trabalho não é tudo, mas no longo prazo é quase tudo. Então, temos que prestar atenção nisso. O mapa está baseado em sete linhas, como valorizar o que se produz e criar um ambiente de negócios saudável, de tal maneira que oportunidades produtivas não sejam perdidas.
E em que pé está isso?
Apresentamos isso a um conjunto de especialistas, discutimos por um dia com eles, coletamos um monte de recomendações e agora estamos num processo de rever tudo isso. O objetivo final é não só ver áreas em que faltam políticas, mas dar uma ideia para todo mundo que hoje o Brasil tem mais de uma centena de políticas de promoção da produtividade. Teremos isso completamente pronto em junho.
O sr. elaborou o capítulo social do programa da Marina Silva em 2010. Pretende fazer isso novamente?
Certamente. Quem não aceitasse o convite da Marina teria que ser louco. Se for convidado para apoiá-la em algo... vou eternamente apoiar a Marina nas coisas que ela faz, mas não há nenhuma movimentação nesse sentido.
O sr. se considera mesmo um liberal?
Não tenho medo, nem nada contra nem a favor de nenhum rótulo. Se ter uma profunda preocupação com pobreza, desigualdade, com a garantia dos direitos das pessoas e do bem-estar é ser liberal, então eu sou liberal. Eu vejo o Estado e a intervenção pública como um meio e não como um fim. Então, nunca vou defender o aumento do tamanho do Estado, ou que ele seja grande. O que eu acho é que alguns serviços têm que ser produzidos publicamente, como segurança pública, Justiça. Mas em saúde e educação não há clareza no mundo.
A Suécia está prestes a privatizar todas as escolas do país, apesar de todo mundo ter acesso à educação gratuita. A função do Estado é estar pensando, distribuindo recursos, pagando a conta. Quando ele começa a botar a mão na massa para fazer, é preciso pensar bem. A outra coisa que acho que confunde também é a questão da focalização. A educação em todos os níveis deveria ser feita de modo que pobres e ricos fossem misturados na mesma sala de aula, se sentassem lado a lado, usassem o mesmo ônibus e tivessem acesso aos mesmos livros. Mas no fim do mês para o rico chega a conta e para o pobre, não. O que eu [rico] ganho com isso? Vou pagar menos imposto. O direito é universal, mas o serviço não é universalmente gratuito. Se isso é um pensamento liberal, sou liberal.
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Chegou a hora de olhar a classe média, diz Paes de Barros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU