10 Outubro 2013
"Está fora de dúvida que o ministério de Francisco está exercendo sobre todos uma função maiêutica: ele faz florescer a alegria dos infelizes, a desconfiança dos desconfiados, o narcisismo dos narcisistas, o oportunismo dos oportunistas, a dor dos doloridos, a sede de comunhão dos excluídos, a esperança daqueles que a perderam, a fé daqueles que veem um brilho da chama vacilante no fundo da própria existência e não sabia dar-lhe um nome".
A análise é Alberto Melloni, historiador da Igreja, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação João XXIII de Ciências Religiosas de Bolonha. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 03-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O verão [europeu] de 2013 foi um verão de trabalho para muitos que observam o papa por filial adesão, por ofício, por curiosidade intelectual ou por todos esses motivos juntos. Nos jornais – os leitores perceberam – o crescendo e a qualidade espiritual dos exploits do Papa Francisco modificaram o modo de contar aquilo que se havia costumado chamar de "o Vaticano": a sinodalidade, o ministério petrino, a adesão a Jesus, os pobres carne de Cristo se tornaram o léxico de uma narração radicalmente mudada.
Parece que passou um século desde o último inverno, quando fileiras de aprendizes de teólogo se viravam entre sofisticadas questões sobre o logos e sobre a razão, agrediam os seus próprios antipatizantes como se tivessem um mandato e, na Itália, acabavam fornecendo notáveis apoios ou timidíssimas distinções com relação a Berlusconi e a todas as suas seduções.
A revisão libertadora, verificada, sedimentada nestes dias em livros de grandes nomes do jornalismo: só na Itália foram publicadas em rápida sucessão Dialogo, com as trocas entre Scalfari e o pontífice; Francesco, la rivoluzione della tenerezza, do vaticanista do Corriere della Sera Gian Guido Vecchi; Fratelli e sorelle buonasera, do seu homólogo na Rai1 Fabio Zavattaro; e a investigação de Nelo Scavo La lista di Bergoglio.
E os historiadores também tiveram o que fazer. Depois de um primeiro perfil biográfico que apareceu no volume Treccani sobre o conclave que o chefe de Estado ofereceu ao papa no seu primeiro encontro, agora Andrea Riccardi reflete sobre La sorpresa di Papa Francesco (Ed. Mondadori). O título lembra uma troca ocorrida no rescaldo do conclave de 2005, quando Martini, grande eleitor de Ratzinger, disse que Bento XVI daria "surpresas" e foi corrigido por um cardeal não menos renomado do que ele: ele explicou que, se não houvesse péssimas surpresas, seria uma bela surpresa.
O conteúdo é uma série de quadros que retratam o pano de fundo histórico e biográfico do papa. O historiador romano já tinha se aventurado nas sínteses quando descreveu em 2003 o papado de Wojtyla como um "papado carismático". Desta vez, para Riccardi, o problema estava invertido com relação àquela síntese: ou seja, identificar a figura do primeiro pontificado não europeu do segundo milênio, há seis meses capaz de atrair um consenso que vê "bergogliozar-se" até mesmo os mais insuspeitos antagonistas daquilo que o Papa Francisco representa.
Ele parte da renúncia ratzingeriana: o fato de que, na África, nas primeiras horas depois do fato, corriam boatos de um Bento XVI que se tornou evangélico ou muçulmano, ele não documenta como um "embuste", mas sim como o porte daquilo que o historiador chama de um "trauma".
Com testemunhos diretos ligados também à história da sua comunidade e confirmadas pelas mais de 600 páginas de pregação bergogliana disponível no site da Arquidiocese de Buenos Aires, Riccardi mostra que, entre o cristão Bergoglio, o padre Bergoglio e o Francisco papa, e não há distinções. Era a Igreja que não tinha se dado conta dele em 2005, quando o conclave foi resolvido pelo medo de um papado italiano, e nem mesmo depois, quando a sua trajetória espiritual parecia uma excentricidade periférica, que só a determinação das reportagens de Gianni Valente e o eco de alguns jornais como este tinham percebido.
Riccardi recoloca as fontes daquela vida em preto e desta agora vestida de branco entre as referências literárias ao santo de Fogazzaro ou aos versos de Turoldo, o discurso de Roncalli do dia 11 de setembro de 1962, a intervenção do cardeal Lercaro no Vaticano II, o Pacto das Catacumbas, a assembleia de Medellín, concentrando-se justamente no porte da pobreza. O nó pobreza do magistério de Francisco papa é o mesmo da vida segundo a forma do santo Evangelho de Francisco de Assis: uma pobreza que se despoja por ter apenas o Evangelho, que identifica como seu antagonista o poder e o sedutor clamor dos seus meios, até (ou especialmente) se usados para bons fins.
O Bergoglio retratado por Riccardi sai de uma Igreja que não sente a minoridade como uma derrota, mas sim como uma condição "eleita", e vê no mundo evangélico e no pentecostalismo um desafio, não uma ameaça. Sem indultar a banalidade sobre continuidade e descontinuidade, sem as atitudes malvadas que liquidam hoje purpurados ontem muito adulados, sem providencialismos fáceis, Riccardi evoca nós históricos de grande porte.
Sobre um, em particular, eu acredito que se discutirá por um longo tempo. Para o historiador romano, de fato, as grandes teses bergoglianas têm todas uma raiz ou um eco wojtyliano, e ele encontra nisso a chave para compreender também a "surpresa" de um papado que exilou as minorias criativas e deu um novo sentido ao ministério pastoral de base. Parece-me, ao invés, que Bergoglio, revinculando-se a uma visão dos tempos de Montini e Arrupe, supera sem polêmicas, mas com agilidade, a convicção de João Paulo II e de Bento XVI segundo a qual o espaço público é o lugar para se demonstrar uma "coragem" de testemunho que, se necessário, deve praticar o rigor iuris, e coloca novamente ao centro, em toda a sua simplicidade, a misericórdia como experiência interior real, objetiva, sacramentada.
O que está fora de dúvida é que o ministério de Francisco está exercendo sobre todos uma função maiêutica: ele faz florescer a alegria dos infelizes, a desconfiança dos desconfiados, o narcisismo dos narcisistas, o oportunismo dos oportunistas, a dor dos doloridos, a sede de comunhão dos excluídos, a esperança daqueles que a perderam, a fé daqueles que veem um brilho da chama vacilante no fundo da própria existência e não sabia dar-lhe um nome.
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O fascínio reencontrado da misericórdia. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU