Por: André | 07 Outubro 2013
O Papa Francisco revelou o verdadeiro programa do seu pontificado em duas entrevistas e em uma carta a um intelectual ateu. Em relação aos Papas que o precederam, a separação é cada vez mais nítida, tanto nas palavras como nos fatos.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa.it, 03-10-2013. A tradução é de André Langer.
Fonte: http://bit.ly/1byuqOS |
A primeira reunião dos oito cardeais chamados para consulta pelo Papa Francisco, e sua visita na sexta-feira, dia 04, a Assis, a cidade do Santo do qual tomou o nome, são atos que, certamente, caracterizam este início de pontificado.
Mas, o que mais caracterizou a definição da sua linha foram quatro acontecimentos midiáticos do mês passado:
– a entrevista do Papa Jorge Mario Bergoglio à revista La Civiltà Cattolica;
– sua carta de resposta às perguntas dirigidas a ele publicamente por Eugenio Scalfari (na foto), fundador do principal jornal laico italiano, La Repubblica;
– o sucessivo colóquio-entrevista com o próprio Scalfari;
– e a outra carta, resposta a outro campeão do ateísmo militante, o matemático Piergiorgio Odifreddi, escrita não pelo Papa atual, mas por seu predecessor, o Papa emérito.
Quem tiver interesse em entender a direção que Francisco está tomando e em que se distancia de Bento XVI e dos outros Papa que o precederam, precisa apenas estudar e confrontar estes quatro textos.
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Na entrevista do Papa Bergoglio à La Civiltà Cattolica há uma passagem que foi percebida universalmente como uma clara mudança de linha, não apenas em relação a Bento XVI, mas também João Paulo II:
“Não podemos seguir insistindo apenas em questões referentes ao aborto, ao casamento homossexual ou ao uso de anticoncepcionais. É impossível. Eu falei muito sobre estas questões e recebi reprovações por isso. Mas quando se fala destas coisas é preciso fazê-lo em um contexto. Além disso, já conhecemos a opinião da Igreja e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário estar falando destas coisas sem cessar. O anúncio missionário se concentra no essencial, no necessário, que, por outro lado, é o que mais apaixona e atrai, o que mais faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Temos, portanto, que encontrar um novo equilíbrio, porque de outra maneira o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder o frescor e o perfume do Evangelho.”
Sem dúvida, o Papa Francisco está bem consciente de que também para os dois Papas que o precederam a prioridade absoluta era o anúncio do Evangelho; que para João Paulo II a misericórdia de Deus era tão essencial que dedicava a ela um domingo do ano litúrgico; que Bento XVI escreveu justamente sobre Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, o livro da sua vida como teólogo e pastor; que, em resumo, nada de tudo isto o separa deles.
Francisco sabe também que a própria consideração vale para os bispos que, mais que outros, agiram em sintonia com os dois Papas que o precederam. Na Itália, por exemplo, o cardeal Camilo Ruini, cujo “projeto cultural” desenvolveu-se com eventos fundados em Deus e em Jesus.
No entanto, tanto para Karol Wojtyla e Joseph Ratzinger, como para pastores como Ruini ou, nos Estados Unidos, os cardeais Francis George e Timothy Dolan, havia a intuição de que o anúncio do Evangelho, hoje, não pode estar separado de uma leitura crítica sobre a nova visão do homem que se estava desenvolvendo – em radical oposição ao homem criado por Deus à sua imagem e semelhança – e, portanto, sobre a consequente ação de guia pastoral.
É aqui que o Papa Francisco se separa. Em sua entrevista à La Civiltà Cattolica há outra passagem chave. Quando o padre Antonio Spadaro lhe pergunta sobre o atual “desafio antropológico”, ele responde de maneira evasiva. Ele mostra que não percebeu a gravidade histórica da mudança de civilização analisada e contestada com força por Bento XVI e, antes dele, por João Paulo II. Ele mostra que está convencido de que vale mais responder aos desafios do presente pelo simples anúncio do Deus misericordioso, desse Deus “que faz brilhar seu Sol sobre bons e maus, e que faz chover sobre justos e injustos”.
Na Itália, mas não apenas neste país, foi o cardeal e jesuíta Carlo María Martini a pessoa que representava esta tendência alternativa a João Paulo II, Bento XVI e ao cardeal Ruini.
Nos Estados Unidos, esta tendência era representada pelo cardeal Joseph L. Bernardin, antes que a liderança da Conferência Episcopal passasse aos cardeais George e Dolan, muito fiéis a Wojtyla e Ratzinger.
Os seguidores e animadores de Martini veem hoje em Francisco o Papa que dá corpo às suas expectativas de revanche.
E do mesmo modo que o cardeal Martini era e segue sendo muito popular também entre a opinião pública externa e hostil à Igreja, o mesmo acontece com o atual Papa.
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O intercâmbio epistolar e o sucessivo colóquio entre Francisco e o ateu professo Scalfari ajudam a explicar esta popularidade do Papa também “in partibus infidelium”.
Uma passagem do artigo de 07 de agosto passado, no qual Scalfari lhe dirigia algumas perguntas, nos mostra a ideia positiva que o fundador do La Repubblica tem do Papa atual:
“A sua missão contém, em suma, duas escandalosas novidades: a Igreja pobre de Francisco, a Igreja horizontal de Martini. E uma terceira: um Deus que não julga, mas perdoa. Não há condenação, não há inferno.”
A carta de resposta do Papa Francisco, recebida e publicada, foi comentada por Scalfari, que acrescentou esta outra consideração grata: “Uma abertura para a cultura moderna e laica dessa amplitude, uma visão tão profunda entre a consciência e a sua autonomia, nunca tinha sido sentida da cátedra de São Pedro”.
Quando afirmava isto, Scalfari referia-se particularmente ao que o Papa Francisco lhe havia escrito sobre o primado da consciência: “A questão está em obedecer à própria consciência. O pecado, mesmo para quem não tem fé, existe quando se vai contra a consciência. Ouvir e obedecer a ela significa, de fato, decidir-se diante do que é percebido como bem ou como mal. E nessa decisão está em jogo a bondade ou a maldade do nosso agir".
O Papa Francisco não havia acrescentado mais nada. E alguns leitores astutos se perguntaram como se podia unir esta definição tão subjetiva da consciência – segundo a qual o indivíduo aparece como a única instância da decisão –, com a ideia de consciência como caminho do homem rumo à verdade, ideia aprofundada durante séculos de reflexão teológica, desde Agostinho a Newman, e confirmada com força por Bento XVI.
Mas, na conversa subsequente com Scalfari, o Papa Francisco foi ainda mais drástico reduzindo a consciência a um ato subjetivo: “Cada um de nós tem uma ideia do Bem e do Mal e deve fazer a escolha de seguir o Bem e combater o Mal como o concebe. Isto bastaria para melhorar o mundo”.
A partir disso não é surpreendente que Scalfari, homem das Luzes e ateu, tenha escrito que ele “estava perfeitamente de acordo” com essas expressões de Bergoglio sobre a consciência.
Do mesmo modo, não nos surpreende sua acolhida benevolente desta outras palavras do Papa, quase um programa do novo pontificado, ou seja, “o problema mais urgente que a Igreja tem diante de si”: “o nosso objetivo não é o proselitismo, mas a escuta das necessidades, dos desejos, das desilusões, do desespero, da esperança. Devemos voltar a dar esperança aos jovens, ajudar os idosos, abrir para o futuro, difundir o amor. Pobres entre os pobres. Devemos incluir os excluídos e pregar a paz. O Vaticano II, inspirado pelo papa João e por Paulo VI, decidiu olhar para o futuro com espírito moderno e abrir-se à cultura moderna. Os padres conciliares sabiam que abrir-se à cultura moderna significava ecumenismo religioso e diálogo com os não-crentes. Desde então foi feito muito pouco nesta direção. Tenho a humildade e a ambição de querer fazê-lo”.
Não há nada neste programa de pontificado que não seja aceito pela opinião laica dominante. Inclusive o juízo de que João Paulo II e Bento XVI teriam feito “muito pouco” para abrir o espírito moderno está em linha com esta opinião. O segredo da popularidade de Francisco está na generosidade com que se conforma às expectativas da “cultura moderna”, e na astúcia com que evita aquilo que pode converter-se em sinal de contradição.
Também nisto ele se distancia decididamente de seus predecessores, inclusive Paulo VI. Há uma passagem na homilia daquele que era então arcebispo de Munique, Ratzinger, e que pronunciou na morte do Papa Giovanni Battista Montini, no dia 10 de agosto de 1978, que é extraordinariamente esclarecedora, especialmente por seu apelo à consciência “que se mede sobre a verdade”.
“Um Papa que hoje não sofresse críticas faltaria com seu dever em relação a esse tempo. Paulo VI resistiu à telecracia e à opinião pública, os dois poderes ditatoriais do presente. Pôde fazê-lo porque não tomava como parâmetro o sucesso e a aprovação, mas a consciência, que se mede segundo a verdade, segundo a fé. É por isto que em muitas ocasiões buscou o compromisso: a fé deixa muitas coisas em aberto, ela oferece um amplo espectro de decisões, impõe como parâmetro o amor, que se sente em obrigação para com o todo e, portanto, impõe muito respeito. Por isso, pôde ser inflexível e decidido quando o que se colocava em jogo era a tradição essencial da Igreja. Nele, esta dureza não se derivava da insensibilidade daqueles cujos caminho é ditado pelo prazer do poder e do desprezo das pessoas, mas da profundidade da fé, que o tornou capaz de suportar as oposições”.
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Confirmando o que separa o Papa Francisco de seus predecessores chegou a carta com a qual Ratzinger-Bento XVI – rompendo seu silêncio após a renúncia – respondeu ao livro Caro papa, ti scrivo (Estimado Papa, te escrevo), publicado em 2011 pelo matemático Piergiorgio Odifreddi.
Os dois últimos Papas dialogaram prazerosamente com ateus professos e líderes leigos de opinião, mas o fizeram de forma muito diferente. Se, Francisco, por sua vez, esquiva as pedras do escândalo, Ratzinger, ao contrário, as ressalta.
Basta ler esta passagem da sua carta a Odifreddi: “O que o senhor diz sobre a figura de Jesus não é digno do seu nível científico. Se o senhor põe a questão como se, no fundo, não soubesse nada de Jesus e como se d'Ele, como figura histórica, nada fosse verificável, então eu só posso lhe convidar de modo decidido a tornar-se um pouco mais competente do ponto de vista histórico. Recomendo-lhe, para isso, sobretudo os quatro volumes que Martin Hengel (exegeta da Faculdade de Teologia Protestante de Tübingen) publicou juntamente com Maria Schwemer: é um exemplo excelente de precisão histórica e de amplíssima informação histórica. Diante disso, o que o senhor diz sobre Jesus é um falar imprudente que não deveria repetir. O fato de que na exegese também foram escritas muitas coisas de escassa seriedade é, infelizmente, um fato indiscutível. O seminário norte-americano sobre Jesus que o senhor cita nas páginas 105ss. só confirma mais uma vez o que Albert Schweitzer havia notado a respeito da Leben-Jesu-Forschung (Pesquisa sobre a vida de Jesus), isto é, que o chamado ‘Jesus histórico’ é, em grande parte, o espelho das ideias dos autores. Tais formas mal sucedidas de trabalho histórico, porém, não comprometem, de fato, a importância da pesquisa histórica séria, que nos levou a conhecimentos verdadeiros e seguros sobre o anúncio e a figura de Jesus”.
E mais adiante: “Se o senhor, porém, quer substituir Deus pela "Natureza", resta a questão: quem ou o que é essa natureza. Em nenhum lugar, o senhor a define e, assim, ela parece ser uma divindade irracional que não explica nada. Mas eu gostaria, acima de tudo, de fazer notar ainda que, na sua religião da matemática, três temas fundamentais da existência humana continuam não considerados: a liberdade, o amor e o mal. Admiro-me que o senhor, com uma única referência, liquide a liberdade que, contudo, foi e é o valor fundamental da época moderna. O amor, no seu livro, não aparece, e também não há nenhuma informação sobre o mal. Independentemente do que a neurobiologia diga ou não diga sobre a liberdade, no drama real da nossa história ela está presente como realidade determinante e deve ser levada em consideração. Mas a sua religião matemática não conhece nenhuma informação sobre o mal. Uma religião que ignore essas questões fundamentais permanece vazia.”
“A minha crítica ao seu livro, em parte, é dura. Mas a franqueza faz parte do diálogo; só assim o conhecimento pode crescer. O senhor foi muito franco e, assim, aceitará que eu também o seja. Em todo caso, porém, avalio muito positivamente o fato de que o senhor, através do seu contínuo confronto com a minha Introdução ao cristianismo, tenha buscado um diálogo tão aberto com a fé da Igreja Católica e que, apesar de todos os contrastes, no âmbito central, não faltem totalmente as convergências.”
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Até aqui as palavras. Mas o que distancia entre si os dois Papas são também os fatos.
A proibição do Papa Bergoglio à Congregação dos Freis Franciscanos da Imaculada de celebrar a missa no rito antigo foi uma efetiva restrição dessa liberdade de celebrar neste rito que Bento XVI havia assegurado a todos.
Através de conversas com seus visitantes, fica claro que o próprio Ratzinger viu nesta restrição um “vulnus” ao seu Motu Próprio “Summorum Pontificum”, de 2007.
Na entrevista à revista La Civiltà Cattolica, Francisco liquidou a liberalização do rito antigo decidida por Bento XVI como uma simples “escolha prudencial ligada à ajuda para algumas pessoas que têm esta sensibilidade”, quando, ao contrário, a intenção explícita de Ratzinger – expressa no seu tempo em uma carta aos bispos de todo o mundo – era que “as duas formas de uso do Rito Romano possam enriquecer-se mutuamente”.
Na mesma entrevista, Francisco definiu a reforma litúrgica pós-conciliar como “um serviço ao povo como releitura do Evangelho a partir de uma situação histórica concreta”. Definição fortemente redutora em relação à visão da liturgia que era própria do Ratzinger teólogo e papa.
Além disso, sempre neste campo, Francisco substituiu em bloco, em 26 de setembro passado, os cinco consultores da oficina das celebrações litúrgicas papais.
Entre os substituídos está, por exemplo, o padre Uwe Michael Lang, um liturgista a quem o próprio Ratzinger escreveu o prólogo do livro mais importante, dedicado à orientação “para o Senhor” da oração litúrgica.
Ao contrário, entre os liturgistas promovidos há figuras muito mais propensas a apoiar o estilo celebrativo do Papa Francisco, também este visivelmente afastado da inspirada “ars celebrandi”, inspirada, de Bento XVI.
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A mudança de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU