21 Setembro 2013
Vito Mancuso faz de propósito. É um cândido, mas não um ingênuo. Eu acredito que o divirta a irritação suscitada pelo seu modo de interpretar e comunicar a teologia na grande fileira dos puristas, mais ou menos crentes, mas sempre devotos da tradição. Estes, os puristas, o acusam de não ser mais cristão ou de ousar demais nas suas tentativas de interpretação da criação. Ele, Mancuso, lamenta como os devotos da teologia dogmática acabem tornando cada vez mais insustentável a ideia de Deus ao homem moderno.
A reportagem é de Gad Lerner, publicada no jornal La Repubblica, 19-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
E, então, faz de propósito, por exemplo, quando combina logo no início, onde faz as perguntas fundamentais do seu novo livro Il principio passione [O princípio paixão] (Ed. Garzanti, 495 páginas), duas figuras estridentes como o cardeal Martini e Lucio Dalla: o biblista que busca iluminação no logos, ou que acredita no pensamento e na palavra como meios de um desígnio divino da existência; e o músico-poeta que vai tateando no mistério do caos, reconhecendo-o, por sua vez, como divino e vital.
O texto de Mancuso consegue manter-se irônico mesmo quando lida com os enigmas fundamentais do cosmos, sem nunca cair no simplismo: assim, o Lucio Dalla de Com’è profondo il mare pode lhe socorrer quando ele descreve a origem aquática do primeiro micro-organismo LUCA "que apareceu entre 3,8 e 3,5 bilhões de anos atrás que já substituiu o velho Adão". É interessante constatar como as mais antigas cosmogonias e a ciência moderna convergem na primordialidade da água.
A estrutura bibliográfica posto no fechamento do volume ocupa nada menos do que 23 páginas entre teologia cristã e filosofias orientais, entre religiões politeístas e clássicos gregos, entre judaísmo e espiritualidade laica; contempla os novos teóricos do criacionismo e opõe a eles um relato sistemático da física das partículas e da teoria da evolução. Assim, a erudição, ao invés de nos intimidar, cumpre o seu papel de guia para os perplexos.
O objetivo dessa estrutura poderosa é, finalmente, o de propor um credo simples. Capaz de aproximar fé e razão. Mancuso o sintetiza na fórmula: Logos + Caos = Pathos. O princípio paixão, justamente, como amálgama do eterno conflito entre a racionalidade de um desígnio superior e a casualidade material. Eis o que é o Pathos: é o espírito vital do amor divino/humano do qual brota a energia da vida em contínua evolução.
Aqui Mancuso vai provocar os teólogos puristas: na origem, afirma, não há nenhum pecado original, como afirma a doutrina católica, sem encontrar pontos de apoio no livro do Gênesis. No princípio, não há nenhum pecado do qual devamos nos culpas, mas sim o caos inicial. O mal do qual a nossa experiência é inevitavelmente tecida, a mesma crueldade inerente à evolução da criação não são o produto de uma vontade divina (como tal, inexplicável).
Só às custas de "desonestos sofismas" é que a doutrina cristã vigente tenta manter unidos um Deus-guia inteiramente artífice das vicissitudes humanas e um Deus-amoroso por sua natureza devotado ao bem. A única possibilidade do crente hoje é "passar do verticalismo do poder à harmonia da relação". Isto é, reconhecer que a imperfeição estrutural do ser criado – como, aliás, a ciência nos solicita a fazer – e admitir que esse também é o fundamento da nossa liberdade. Deus mesmo, como afirmou Bento XVI, em contraste com o seu antecessor, João Paulo II, não pode ter planejado o mal tendo como fim o bem. Nem as tragédias históricas, nem os cataclismos naturais, mas também nem as doenças genéticas e a dor que permeia toda vida podem ser justificados como obra de Providência. Todo ser criado sai das mãos de Deus empastado de logos e caos, de ordem e de possibilidade de romper a ordem. Caso contrário, com a liberdade, também nos seria impedido o espírito capaz de amor. O pathos.
Eis, portanto, o Deus em que Mancuso acredita, feliz por poder compartilhar tal fé com muitos expoentes renomados da comunidade científica: Ele também imerso no caos, empurra aquele impulso à agregação sem a qual o Universo teria permanecido como uma montagem desordenada de micro-organismos elementares impossibilitados à harmonia; e o eros, que nos faz amar o mundo e suportar a dor, não circularia entre nós.
Em síntese: "Eu acredito em um Deus que leva tão a sério a aliança com o mundo a ponto de estar envolvido no processo vital mediante o mundo se faz". E aqui, aceitando a perpétua constância do mal que constrange o Catecismo católico ("A permissão divina da atividade diabólica é um grande mistério", balbucia o artigo 395), Mancuso se compraz em citar novamente Lucio Dalla: "Eu acredito muito na dor como elemento evolutivo. Por isso eu acredito na poesia".
Diante daqueles que o acusarão de teologia fácil – ele mesmo não desconhece que a sua visão do divino se aproxima da dos animistas – me agrada constatar a sintonia reivindicada por Mancuso com a filosofia da relação de Martin Buber. Não por acaso o grande narrador da mística judaica também foi objeto de ironias desagradáveis por parte de interlocutores mais rígidos como Gershom Scholem e Leo Strauss. Mas são justamente os Mancuso e os Buber os que sabem aproximar a cultura religiosa da sensibilidade popular.
De fato, é algo mais do que uma técnica narrativa brilhante que leva Mancuso a reler Jó e o mistério do corpo humano dilacerado à luz da descoberta do bóson de Higgs, também chamado – veja só – "partícula de Deus", porque o impulso relacional encontra um fundamento na física que estuda a matéria com modalidades transferíveis para a nossa dimensão espiritual. Os tijolinhos coloridos da nossa infância, Mancuso se diverte ao observar, não por acaso se chamavam e ainda se chamam Lego.
E então a força do amor não é somente um truque para músicas, não é verdade, Lucio Dalla?
Resta saber como o cristão Mancuso pode colocar a história de Jesus dentro dessa visão nem monárquica nem anárquica, no máximo "democrática" da evolução do cosmos. Uma coisa é reivindicar a possibilidade de ser darwiniano e crente, outra é medir-se com a paixão e a ressurreição do Filho de Deus.
O seu propósito declarado é o de "despregar a Bíblia" da embaraçosa contradição entre as páginas sobre Deus como amor-santidade e o mal que a permeia em outras partes; apresentando, assim, "uma ideia sustentável de Deus", que supere a contraposição entre teísmo (o mundo governado de cima) e ateísmo (o mundo à mercê do acaso).
Portanto, é justamente o princípio-paixão que motiva a fé de Mancuso em um Cristo do qual a doutrina católica deixou na sombra o papel cósmico: a sua passagem terrena deve ser interpretada como partilha divina de um pathos encontrável em inúmeras outras vicissitudes humanas de martírio, até os nossos dias.
Cristo o ajuda a compreender por que o amor pode levar ao sacrifício de si mesmas, devotando-se ao bem e aceitando a dor, tantas outras figuras próximas de nós. Além disso, no seu ensaio anterior (Io e Dio, p. 317-318), Mancuso tinha escrito sobre Jesus: "Eu aceito a ressurreição, mas não faço dela o fundamento da minha fé (...) as palavras de Jesus e o seu testemunho de vida me fascinam, mesmo prescindindo da sua ressurreição e dos seus milagres".
O mesmo diálogo entre o Papa Francisco e Eugenio Scalfari iniciado neste jornal laico confirma como pode ser fértil a oferta de uma nova teologia, não mais intimidada pela tradição dogmática. Mancuso fez disso um livro fascinante, talvez o seu trabalho mais ousado: onde ele busca o encontro com os exploradores da ciência no campo incógnito da criação. E onde a própria criação nos é reproposta como obra divina empastada de bem e de mal, inexplicável sem a ambivalência da paixão.
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O ''herético'' princípio-paixão. O novo livro de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU