07 Setembro 2013
O que os eticistas dizem sobre a moralidade da intervenção militar na Síria? Neste artigo, vou examinar se os seus pontos de vista sobre a intervenção na Síria se encaixam nos critérios de uma guerra justa.
A análise é do jesuíta norte-americano Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos EUA, de 1998 a 2005, e autor de O Vaticano por dentro (Ed. Edusc, 1998). O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 03-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Tradicionalmente, os teólogos morais têm argumentado que, para usar a força militar de forma justa, é preciso ter uma causa justa; que o uso da força deve ser o último recurso; que o sucesso deve ser provável; que os meios devem ser proporcionais; e que a ação militar deve ser feita por uma autoridade legítima.
Enquanto o governo Obama se prepara para responder ao uso de armas químicas na Síria, o que os eticistas dizem sobre a moralidade da intervenção militar? Neste artigo, vou examinar se os seus pontos de vista sobre a intervenção na Síria se encaixam nos critérios de uma guerra justa.
Causa justa?
Nenhum moralista apoia as ações do regime de Bashar Assad ou o uso de armas químicas, e ninguém é um entusiasta apoiador dos rebeldes. Sob essas circunstâncias, há um caso moral para a intervenção?
Embora reconheça que o gás de nervos é uma arma terrível, Stanley Hauerwas, da Duke Divinity School, argumenta que não há nenhuma justificativa moral para a intervenção: "A Síria não está atacando os Estados Unidos". A autodefesa seria a única justificativa para o uso da força.
Mas a maioria dos outros moralistas reconhecem a responsabilidade de proteger as pessoas inocentes e apoiam o seu argumento apontando para a doutrina da Responsabilidade de Proteger (R2P) das Nações Unidas, aprovada em 2005. Isso inclui pensadores como Matthew Shadle, do Loras College; William Galston, da Brookings Institution; Drew Christiansen, do Boston College; o rabino Michael Broyde, da Universidade de Emory; Kevin Ahern, do Manhattan College; Tobias Winright, da St. Louis University; e Maryann Cusimano Love, da Universidade Católica dos Estados Unidos.
Enquanto o presidente Barack Obama demarcou uma linha vermelha para o uso de armas químicas, Christiansen e Andrew Bacevich, da Universidade de Boston, não veem nenhuma diferença intrínseca entre matar pessoas inocentes com armas químicas e matar pessoas inocentes com armas convencionais. Se as armas químicas são usadas repetidamente, Christiansen diz ver uma razão para a intervenção. Mas o seu uso individual "não tem peso em comparação com aqueles que deveriam ter sido protegidos e não foram, e aqueles que ainda precisam de proteção".
Mas mesmo aqueles que acreditam na responsabilidade de proteger inocentes dizem que é necessário mais para que os critérios de guerra sejam cumpridos.
"A partir de uma perspectiva da guerra justa", escreve Winright, "eu não vejo como uma intervenção militar é moralmente justificável se levarmos em consideração – como devemos – outros critérios, além apenas da causa justa, da tradição da guerra justa". A maioria concorda com ele.
Último recurso?
De acordo com a teoria da guerra justa, a guerra é o último recurso depois que os meios diplomáticos e outros falharam. Muitos moralistas não acreditam que todas as outras opções se esgotaram na Síria. "O que é necessário é um esforço concertado e contínuo para ajudar a população civil da Síria", escreve Christiansen.
Ele tem sugestões específicas: "Em primeiro lugar, devem-se fazer esforços para negociar o acesso para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outras organizações humanitárias junto à população necessitada. Em segundo lugar, as acusações contra o regime de Assad devem ser levadas ao Tribunal Penal Internacional e outros locais disponíveis para assegurar a justiça para as suas vítimas – ao menos no longo prazo. Em terceiro lugar, devem ser feitas tentativas sérias para treinar e armar elementos religiosos seculares e moderados confiáveis na resistência a Assad".
Outros dizem que os meios diplomáticos não foram esgotados. Ahern cita Hans Blix, o ex-inspetor de armas chefe da ONU para o Iraque de 2000 a 2003, que "exorta fortemente a mais ações diplomáticas mediante aquela que ele vê como a única autoridade global legítima", as Nações Unidas.
Shadle também acredita que um "acordo negociado com o apoio da ONU é atualmente o curso de ação mais justo, e só então seria justificável uma intervenção internacional coordenada para forçar os grandes grupos sírios a aquiescer".
Ahern concorda: "Temos que trabalhar com todas as partes envolvidas para tentar chegar a uma solução diplomática criativa. Devemos examinar as nossas políticas mais amplas e o papel desempenhado pelos nossos aliados na região nesse conflito. Isso já foi feito antes e pode ser feito de novo".
Por outro lado, Galston acredita que as "perspectivas de progresso diplomático parecem fracas, e o recente uso por parte do governo sírio de gás venenoso contra um reduto rebelde provavelmente descarrilou a diplomacia indefinidamente". Ele é pessimista sobre uma solução pacífica: "Por isso, é razoável concluir que, se não fizermos nada, nada vai mudar, e o massacre de civis vai continuar indefinidamente".
Possibilidade de sucesso? Proporcionalidade?
Os moralistas se sentem confortáveis ao articular teorias, mas hesitam ao prever os resultados de uma ação militar. Entretanto, isso é necessário se devemos estimar a probabilidade de sucesso ou se o dano será proporcional ao bem realizado. Esses "são os critérios da Guerra Justa mais difíceis de serem atendidos no caso sírio", escreve Love, da Universidade Católica dos EstadosUnidos. Ela cita as preocupações do embaixador Ryan Crocker, cujos postos diplomáticos incluem Afeganistão, Iraque, Paquistão e Síria, assim como o general Martin Dempsey, presidente do Joint Chiefs of Staff, no sentido de que qualquer intervenção militar pode fracassar.
Broyde acredita que as "opções que trazem a paz e protegem os inocentes devem ser favorecidas quando as pessoas razoáveis pensam que elas provavelmente vão funcionar de fato", mas Tyler Wigg-Stevenson, da Aliança Evangélica Mundial, argumenta que "nenhum 'especialista' pode realmente saber o futuro".
O problema de prever o sucesso é exacerbado quando o objetivo da ação militar não é claro. O que é o sucesso? É uma mudança de regime, a proteção dos civis ou impedir o uso adicional de armas químicas por Assad e outros?
A intervenção militar simplesmente para punir Assad pelo uso de armas químicas conquista poucos defensores. Christiansen não vê nenhum propósito em "um ineficaz ataque punitivo sem nenhum ganho estratégico", embora ele acredite que o uso continuado de armas químicas exija uma resposta.
Da mesma forma, Bacevich pergunta o que esperamos conseguir com um ataque muito limitado, "além de nos permitir que nos sintamos virtuosos porque fizemos algo em resposta a um ato repreensível". Se "nós realmente somos obrigados moralmente a fazer alguma coisa, então deveria ser algo mais do que simplesmente um gesto".
Mas tentar uma mudança de regime ou proteger inocentes também levanta questões. David O'Brien, do Holy Cross College, acredita que "a intervenção dos Estados Unidos na Síria, realizada com o apoio da Otan e de aliados regionais como a Turquia e a Arábia Saudita, pode aliviar temporariamente o sofrimento, mas é improvável que traga um cessar-fogo, muito menos a estabilidade regional ou a segurança suficiente para permitir que as famílias satisfaçam as suas necessidades diárias ou que os refugiados voltem para casa".
Winright se preocupa pelo fato de que a intervenção poderá piorar as coisas: "Já existem mais de 1,7 milhão de refugiados sírios, provocando um impacto enorme sobre os países vizinhos, como a Jordânia, a Turquia e o Líbano", escreve ele. "Preocupa-me o fato de que a intervenção militar neste momento só vai aumentar o sofrimento, especialmente para os civis da Síria".
Da mesma forma, Shadle teme "o alargamento da guerra através da intervenção mais agressiva de outras potências como a Rússia ou o Irã, ou a chegada ao poder de um regime islamita em parte ou sobre toda a Síria, se derrubarmos Assad com sucesso".
Love também se preocupa com o que viria depois de Assad. O governo Obama "presta atenção às táticas de guerra, mas não às estratégias de paz", escreve ela. "Eles pesam questões táticas e operacionais de logística, bases e alvos militares, o 'como fazer' da destruição militar. Mas que tipo de paz buscamos na Síria? Se uma intervenção militar dos EUA ajudasse a derrubar Assad, quem governaria o país e como?". Os eticistas também não veem quaisquer planos para reconstruir a Síria depois que a guerra acabar, o que, segundo eles, tem que fazer parte de qualquer intervenção.
Por outro lado, outros alertam contra a inação. Galston diz: "Nós não sabemos se as opções que temos agora se mostrarão eficazes, mas essa incerteza não justifica o fato de não fazer nada". Da mesma forma, Qamar-ul Huda, do Instituto da Paz dos EUA, acredita que nenhuma ação por parte da comunidade internacional "pode aumentar o sofrimento civil e validar as ações de um governo abusivo".
Galston argumenta: "Se podemos agir efetivamente para proteger a vida humana inocente, temos a obrigação de fazê-lo – a menos que os custos nos sejam proibitivos (e não há nenhuma razão para supor que eles devam ser). Reprovamos nesse teste em Ruanda, mas fomos aprovados nos Bálcãs".
Embora Winright concorde que "a intervenção no Kosovo pode ter sido moralmente, se não legalmente, justificável", ele diz que a "ação militar contra as forças sírias não seriam moralmente justificáveis neste momento". Ele afirma que "um ataque com mísseis de cruzeiro realmente não parece ser o que a doutrina R2P tem em mente sob o eixo 'responsabilidade de reagir', que não significa apenas incluir respostas militares". Ele também observa que, mesmo na guerra dos Bálcãs, foram utilizados meios antiéticos, como quando "o desejo da Otan de evitar baixas de combate levou a realizar bombardeios aéreos a partir de altitudes mais elevadas, diminuindo com isso a capacidade da Otan de evitar ferir as próprias pessoas que eles estavam tentando proteger". Ele acredita que "as bombas da Otan inicialmente provocaram que o Exército sérvio intensificassem os seus ataques contra os kosovares e aumentaram o número de refugiados". Ele teme que o mesmo aconteça na Síria.
Autoridade legítima?
Se a causa é justa e o sucesso é provável, quem tem o direito de intervir ? Hauerwas zomba da ideia de os EUA agirem como polícia do mundo. Da mesma forma, diz Wigg-Stevenson, "os Estados Unidos não são a espada de Deus".
Shadle argumenta que a decisão de usar a força reside apenas no Conselho de Segurança da ONU, embora Love observe que "restringir o direito de autoridade do Conselho de Segurança da ONU eleva as barreiras à intervenção de uma forma que é difícil de alcançar".
Christiansen concorda. O veto da Rússia "pode significar ter que recorrer à Assembleia Geral da ONU, como foi feito no caso da Guerra da Coreia, ou definir um limite de tempo para um veto, ou conceder permissão para alianças ad hoc para agir depois que certos limiares de violência sejam alcançados".
Mas Ahern diz que a "intervenção sem a clara autoridade de uma instituição internacional não passa nem pelo teste moral, nem legal". É "responsabilidade da comunidade em geral, e não de qualquer Estado ou coalizão de Estados, proteger as pessoas. Dada o seu mandato limitado e o seu pobre histórico, eu gostaria de salientar que a Otan dificilmente é uma autoridade legítima neste caso". Apesar das suas limitações, o Conselho de Segurança da ONU é o órgão adequado, escreve ele. "Qualquer intervenção que contorne essa estrutura só serve para enfraquecer a capacidade da comunidade internacional de responder a questões humanitárias".
Frustração
O que surge a partir desses moralistas é um sentimento de frustração. Winright conclui: "Ninguém parece inocente neste conflito atual – exceto as crianças. Eu gostaria que houvesse alguma forma de estar do seu lado, em todos os lados". Ahern concorda.
"Nós sabemos o que é certo, mas não o curso de ação para realizar o certo", diz Wigg-Stevenson. "Tudo o que temos é um conjunto de convicções contra o qual podemos sopesar uma série de propostas imperfeitas".
Da mesma forma, Christiansen lamenta o fato de que "a comunidade internacional não chegou a nenhuma forma viável não apenas para acabar com a guerra, mas também, especificamente, para impedir os ataques do governo Assad contra os civis. A Responsabilidade de Proteger tornou-se letra morta na Síria". Os eticistas também lamentam que pouca ou nenhuma atenção é dada à prevenção de conflitos antes que eles comecem.
Assim como os legisladores, os moralistas estão horrorizados com o que está acontecendo na Síria, mas também estão descontentes com as opções disponíveis.
Prelados católicos
Os líderes religiosos também condenaram o massacre sírio e pediram maiores esforços diplomáticos. O Papa Francisco exigiu o fim dos combates e denunciou a "multiplicação de massacres e de atos atrozes".
"Não é o confronto que oferece perspectivas de esperança para resolver os problemas, mas sim a capacidade de encontro e de diálogo", disse o papa. Ao falar com o rei jordaniano, AbdullahII, Francisco notou que o diálogo e as negociações são "a única opção para pôr um fim ao conflito e violência". Em uma medida incomum, o Papa Francisco convocou a um dia de jejum pela paz no próximo sábado.
Os diplomatas vaticanas advertiram contra uma "corrida ao julgamento sem provas suficientes". O arcebispo Silvano Tomasi, observador do Vaticano nas agências da ONU em Genebra, pediu uma reunião promovida em nível internacional "onde representantes de todas as partes da sociedade síria possam estar presentes, expliquem o seu pensamento e tentem criar algum tipo de governo de transição". O núncio do Vaticano para a Síria disse que o povo sírio está farto. "Eles estão clamando para que a comunidade internacional diga: 'Ajudem-nos para que essa guerra acabe imediatamente. Já tivemos o suficiente, não aguentamos mais. Não podemos continuar assim'".
Dom Richard Pates, bispo de Des Moines, Iowa, presidente do Comitê Episcopal de Justiça e Paz Internacionais dos EUA, ecoou as palavras do papa. "A antiga posição da nossa Conferência dos Bispos é que o povo sírio precisa urgentemente de uma solução política que ponha fim à luta e crie um futuro para todos os sírios, que respeite os direitos humanos e a liberdade religiosa", disse Pates. "Nós pedimos que os Estados Unidos trabalhem com outros governos para obter um cessar-fogo, inicie sérias negociações, providencie ajuda humanitária imparcial e neutra, e encoraje a construção de uma sociedade inclusiva na Síria, que proteja os direitos de todos os cidadãos, incluindo os cristãos e outras minorias".
Nem o Vaticano nem os bispos dos EUA mencionam a intervenção militar, mas esclarecem que não a apoiam. Outros prelados católicos opõem-se publicamente à intervenção.
O chefe da comissão de bispos alemães para assuntos internacionais da Igreja, Dom Ludwig Schick, arcebispo de Bamberg, disse à agência de notícias católica KNA que uma intervenção armada não poderia ser justificada pela doutrina católica, que requer "total certeza do dano confirmado", assim como uma "séria possibilidade de sucesso" e uma capacidade de evitar "danos piores do que aqueles que devem ser eliminados". O líder da Comunhão Anglicana, o arcebispo Justin Welby, de Canterbury, também se pronunciou contra os ataques militares.
Os prelados católicos do Oriente Médio têm sido inflexíveis em sua oposição à intervenção militar. O bispos católico caldeu Antoine Audo, de Aleppo, disse que isso "levaria a uma guerra mundial". Da mesma forma, o patriarca católico melquista Gregoire III Laham, nascido na Síria, alertou contra a intervenção e expressou desapontamento pelo fato de os EUA terem adiado o encontro com a Rússia para preparar uma conferência de paz na Síria.
O patriarca latino Fouad Twal também se opôs à intervenção: "Os nossos amigos no Ocidente e nos Estados Unidos não foram atacados pela Síria", disse. "Com que legitimidade eles ousarão atacar um país? Quem os nomeou como 'policiais da democracia' no Oriente Médio?".
O arcebispo Maroun Laham, vigário patriarcal para a Jordânia do Patriarcado Latino de Jerusalém, também se opôs à intervenção e disse que ninguém no Oriente Médio acreditaria que os EUA estão intervindo para defender os mais fracos.
Embora se opondo à intervenção militar, esses líderes religiosos acolheriam a ajuda humanitária aos refugiados sírios.
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O que dizem os teólogos morais sobre o envolvimento na questão síria? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU