10 Mai 2013
Rumores de que a crise dos abusos sexuais por parte do clero da Igreja Católica Romana é um problema do passado foram enormemente exagerados. "A máquina de relações públicas dos bispos persuadiu as pessoas de que esse é um problema que 'era', não que 'é'", diz Jeff Anderson, "e isso é uma mentira viva. Houve mudanças superficiais, mas não mudanças fundamentais".
A reportagem é de Jamie L. Manson, mestre em teologia pela Yale Divinity School, onde estudou teologia católica e ética sexual, publicada no sítio National Catholic Reporter, 01-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Anderson, um dos mais conhecidos advogados a entrar com uma ação contra a Igreja Católica Romana, fez parte de um painel para promover a publicação de Mortal Sins: Sex, Crime, and the Era of Catholic Scandal [Pecados mortais: Sexo, crime e a era do escândalo católico], um novo livro do jornalista Michael D'Antonio.
O evento ocorreu no dia 23 de abril no Bleecker Street Theatre, em Nova York, uma semana antes das novas revelações de que, do outro lado do rio Hudson, o arcebispo de Newark, Dom John J. Myers, permitiu que um padre, que admitiu ter bolinado um menino de 14 anos de idade, participasse de retiros juvenis, viajasse com um grupo de jovens para uma peregrinação no Canadá e ouvisse as confissões de menores.
Além de Anderson, o painel, moderado por D'Antonio, incluiu alguns dos maiores nomes dos defensores contra o abuso sexual infantil, todos os quais figuram proeminentemente em Mortal Sins: o padre canonista Thomas Doyle, o psicoterapeuta Richard Sipe, o ex-padre Patrick Wall e Barbara Blaine, fundadora e presidente da Rede de Sobreviventes dos Abusados por Padres (SNAP, na sigla em inglês).
Blaine, a quem Anderson credita o fato de "iniciar o movimento pelos direitos civis infantis nos Estados Unidos", ecoou a advertência de que os bispos continuam transferindo padres abusadores sexuais para outros papéis ministeriais.
"As crianças estão em risco hoje", disse Blaine, contando uma história do início de abril, em que um padre acusado de Chicago foi silenciosamente transferido para o trabalho de capelania de um hospital, onde ele pode ter tido contato com menores de idade.
Grande parte do debate entre os cinco painelistas se concentrou no porquê esses abusos continuam persistindo, dado que, na última década, a instituição sofreu uma cobertura de imprensa severamente negativa, um êxodo em massa de seguidores e mais de 3 bilhões de dólares em indenizações em todo o mundo.
D'Antonio traçou a raiz do problema à relação incomum da Igreja com o poder espiritual e político, o que, segundo ele, começou em 1870, quando o papa recebeu uma nova forma de autoridade chamada infalibilidade. Então, 60 anos depois, o status civil do Vaticano foi definido em uma concordata assinada pelo então primeiro-ministro Benito Mussolini.
"O catolicismo tornou-se a única religião do mundo com o status de país, governado por um clérigo que também era um monarca", explica D'Antonio em Mortal Sins.
Poder e falta de pensamento crítico
Para Doyle, é a estrutura monárquica da Igreja que tornou possível o encobrimento dos abusos sexuais globais. "No escritório do papa, há o poder para exigir obediência completa e para exigir sigilo a fim de preservar esse poder".
Anderson disse que a exigência de obediência resultou na "absoluta exclusão do pensamento crítico" entre os clérigos, que estão ameaçados com "a perda de remuneração, poder e pensão" se eles se recusarem a obedecer.
O próprio Doyle sofreu precisamente com esse tipo de perdas quando ele rompeu com o código de silêncio da hierarquia décadas atrás.
Em seu posto no escritório do núncio papal nos Estados Unidos, Doyle ficou sabendo de um padre que havia estuprado "ao menos 100, talvez 500" crianças. Ele disparou o alarme, mas acreditava que, no fim, as lideranças da Igreja fariam a coisa certa.
Com o tempo, porém, Doyle disse ter percebido que ele fazia parte de um sistema mais interessado em "proteger o seu poder, prestígio e riqueza".
"Eu tenho um profundo respeito pela Igreja como corpo de Cristo, mas não tenho mais nenhum respeito pela instituição, pelo papa ou pelos bispos", disse Doyle. "Há corrupção de cima a baixo".
Doyle descreve a si mesmo como um "cínico terminal", mas insiste que ele nem sempre foi assim. Quando era mais novo, ele disse que "agia como um humilde servo da Igreja, mas eu era um clérigo ambicioso, leal à instituição".
"O que me mudou foi encontrar as vítimas de abuso sexual e as suas mães e pais", disse Doyle à plateia do painel.
Assim como Doyle, Sipe confiava que a Igreja institucional finalmente acabaria resolvendo essa crise e ele também disse que os encobrimentos "chegaram aos mais altos corredores do Vaticano".
Embora os painelistas concordaram que celibato não causa a pedofilia, Sipe argumentou que o celibato obrigatório cria um ambiente propício para a "chantagem institucional".
"Os clérigos sabem sobre a vida sexual dos outros clérigos", disse Sipe, "e, como resultado, eles têm um certo direito uns sobre os outros". Em alguns casos, se um bispo tentava forçar um padre a entrar em tratamento, o sacerdote rebatia e ameaçava tornar públicos os segredos sexuais do bispo.
Embora ele tenha sido casado durante anos, aos 13 anos, Sipe entrou em um mosteiro católico. Ele disse que a sua formação o ajudou a entender a coragem daqueles que foram abusados.
"A espiritualidade do monaquismo é uma espiritualidade de honestidade radical", disse Sipe à plateia. "As vítimas têm que ser radicalmente honestas sobre o que aconteceu com elas e lutar para obter uma resposta".
Possibilidades de mudança
Certamente, a vitimização, muitas vezes, não se limita aos que foram abusadas. Comunidades paroquiais inteiras muitas vezes ficam traumatizadas quando um padre é acusado de má conduta sexual. Durante anos, Wall, ex-padre e monge beneditino, agiu como um "consertador" nomeado para ajudar as paróquias e as escolas a se curarem depois da remoção de padres abusadores.
Agora casado e com filhos, Wall passou anos estudando a história do abuso sexual na Igreja Católica Romana, uma história que a hierarquia ainda não reconheceu. Ele disse que as denúncias de abuso sexual podem ser vistas nos registros da Igreja já no século XII.
"A Igreja em si não mudou. Os clérigos com quem eu trabalhei não mudaram", disse Wall. Ele afirmou que deixou o sacerdócio quando percebeu que "a única forma que os sobreviventes de abuso iriam receber a ajuda e a cura que eles precisavam era estando fora da hierarquia da Igreja".
Com um passado tão sombrio, os membros da plateia se perguntavam se havia alguma chance de mudança real nessa crise.
"Nós não vamos ver uma mudança radical com este papa ou com qualquer outro papa, a menos que haja uma mudança no sistema que diz que o papa e os cardeais estão acima de todos, porque Deus os fez dessa forma", disse Doyle. "Os homens no topo precisam ser demitidos".
"Devemos demandar e exigir legal e culturalmente que o próprio Vaticano vomite os seus segredos e obedeça às leis civis", afirmou.
Doyle concordou que nenhuma instituição colocou mais políticas e procedimentos em ação referentes ao abuso sexual do que a Igreja Católica Romana. Ele disse que a parte triste é que foi preciso usar a força para fazer com que os bispos respondessem apropriada e adequadamente em muitos casos.
"Tudo foi uma luta até o nocaute", disse.
Blaine concordou, dizendo que, normalmente, sempre que as lideranças da Igreja concordam em agir para proteger as crianças, eles o fazem "a contragosto, tardiamente e depois de muita pressão".
Pelo fato de ativistas como Anderson, Doyle, Sipe e Blaine terem estado na mídia durante décadas, pouco do que eles disseram na discussão foi novidade para quem acompanha de perto a crise dos abusos sexuais.
Mas a beleza do livro de D'Antonio é a forma pela qual ele reúne as inúmeras histórias relatadas nos jornais ou ouvidas em programas de entrevistas ao longo dos anos e as apresenta em um estilo que é tão envolvente quanto um suspense jurídico. E ele consegue fazer isso com um tom consistentemente compassivo e respeitoso.
Mortal Sins é bem-sucedido em apresentar uma pesquisa de décadas de história eclesial dolorosa e, talvez de modo mais importante, dar um rosto humano aos indivíduos que foram objeto de reportagens desde os anos 1980.
Para todas as verdades obscuras que ele encontrou nos seus anos de pesquisa, D'Antonio foi surpreendentemente o mais otimista dos painelistas, sugerindo que, embora o seu livro seja sobre uma tragédia, "é uma história com um pouco de esperança". Ele ainda acredita que a Primavera Católica pode estar a caminho.
"O elemento deferencial que a hierarquia usou para se deleitar está erodindo. O campo de jogo está se nivelando, porque muitos homens e mulheres foram encurralados e enfrentaram uma instituição gigantesca", disse D'Antonio à plateia. "E tudo o que eles tinham a seu favor era a verdade".