10 Março 2013
Na única Igreja Católica, há duas Igrejas, uma olha para a frente, a outra olha para trás, e mantê-las unidas é muito difícil. Por mais dolorosa que seja, porém, a escolha agora é inevitável para o novo papa.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 09-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o teólogo, "a crise da Igreja se une à crise da sociedade, agora massa anônima de indivíduos e não mais societas da qual nos sentimos membros e de cujo bem se protege como se fosse o seu próprio. A única possibilidade, não digo de vencer, mas ao menos de enfrentar esse tsunami interior e exterior, eclesial e social está em identificar um princípio de unidade que, ao contrário do passado, não caia mais do céu, mas suba de baixo, e, a esse respeito, a diferença essencial é entre ordem e organização".
Eis o texto.
Todos aqueles que se preocupam com o catolicismo e a Igreja concordam em dizer que é preciso reformar radicalmente a Cúria Romana. A Cúria Romana é considerada lugar e causa dos escândalos morais e financeiros que levaram Bento XVI à renúncia e, o que é ainda mais grave, muitos católicos a não se sentirem mais como tais.
A Cúria, porém, não caiu do céu. Ela foi projetada pelos papas ao longo da história, segundo uma determinada concepção do papado que surgiu a partir de Gregório VII, com os célebres Dictatus Papae (1075), que fizeram do Romano Pontífice um dictator e, do papado, uma dictatura. Tal concepção verticalista do papado reflete, por sua vez, a cosmologia do passado, aquela espécie de universo de três planos com a administração centralizada que estudamos na escola, com a Divina Comédia.
Cosmologia, eclesiologia e política formavam um todo, e é com base nessa concepção já em pedaços que ainda hoje são pensados o papado e a Cúria. A revolução científica e as outras revoluções que se sucederam em todos os níveis da vida humana destruíram a visão tradicional do mundo, e é por isso que hoje todas as instituições verticalistas estão em crise: e o estão porque a mente humana não olha mais para o céu para descobrir o que fazer.
E, junto com o verticalismo da tradição, estão em crise os valores que ele, ao menos formalmente, garantia, como o primado do direito sobre o dinheiro, da gentileza sobre a vulgaridade, da honestidade sobre a esperteza, da aristocracia da alma sobre as paixões das massas, do raciocínio sobre o populismo. As consequências de tudo isso se manifestam hoje como niilismo das almas e anarquia dos corpos, desespero interior e dilaceração social.
A crise da Igreja se une à crise da sociedade, agora massa anônima de indivíduos e não mais societas da qual nos sentimos membros e de cujo bem se protege como se fosse o seu próprio. A única possibilidade, não digo de vencer, mas ao menos de enfrentar esse tsunami interior e exterior, eclesial e social está em identificar um princípio de unidade que, ao contrário do passado, não caia mais do céu, mas suba de baixo, e, a esse respeito, a diferença essencial é entre ordem e organização.
A ordem desce de cima, a organização sobe de baixo, a ordem é masculina, a organização é feminina, onde masculino e feminino indicam dois modos diferentes de estar no mundo e de considerar os outros: de um lado, um modo dominante, de outro, um modo cooperante; de um lado o primado, de outro a relação; de um lado o dictatus, de outro o collegium.
Hoje, no Ocidente, nenhum sistema complexo pode ser governado de cima, impondo ordem de modo diretivo. Os povos e as sociedades, a escola e o mundo da educação, as famílias de iure e as somente de facto, até mesmo as empresas mais inovadoras põem em discussão o modelo tradicional de liderança. Mas é sobretudo a mente ("o foro interior", como se diz em teologia moral) que não pode mais ser governada pelo princípio de autoridade.
A meu ver, os escândalos ligados à pedofilia que atingiram sacerdotes, bispos e cardeais da Igreja Católica em todas as partes do mundo demonstram, acima de tudo, uma mente à mercê da anarquia. A única solução está em compreender que o princípio que pode dar direção, governo e sentido, impedindo de precipitar no niilismo interior e na anarquia social, é a fé na lógica relacional, na harmonia, na busca do bem, da justiça, da paz, não como conhecidos de uma vez por todas segundo a lógica verticalista dos "princípios inegociáveis" caros a Bento XVI, mas os quais de vez em quando podem ser realizados na situação concreta às presas com o lusco-fusco da vida sobre o qual o cardeal Martini falava.
Buscando a harmonia, realiza-se a lógica que, desde sempre, está em ação no mundo ainda em nível físico, sendo a natureza um entrelaçamento de relações, entrelaçamento que, em inglês, se diz entanglement, termo utilizado por Schrödinger para falar sobre a não separabilidade de todas as coisas, começando pelas partículas subatômicas. Não há nada que esteja em si, todas as coisas só existem na medida em que brotam da relação.
Se os cardeais no conclave acreditam realmente na criação divina como processo contínuo (creatio continua), então eles têm o dever de levar terrivelmente sério a lógica da natureza e a fenomenologia do espírito contemporâneo. Ambas dizem a mesma coisa: no princípio, a relação. A linguagem de Deus é a relação que cria harmonia, não o dictatus que cria submissão.
Daí se prefigura todo um outro estilo de ser Igreja, inclinado mais a insistir no fazer-Igreja, nos dinamismos de uma vida orientada para a relação e para o amor, do que sobre o peso de uma estrutura identitária que deve cuidar de um patrimônio doutrinal. Daí também um outro modo de ser papa, inclinado mais a despertar relações e debates, caminhos de conversão das almas em busca da verdade, do que a impor dogmas infalíveis e valores inegociáveis.
Mas se perfila um imenso problema. Se o novo papa tivesse que proceder segundo essa lógica renovada, encontraria uma fortíssima oposição interna, começando pela Cúria Romana, mas também bem além dela, visto que, por séculos, a Igreja foi o receptáculo de todos os opositores da transformação da sociedade, o principal baluarte dos inimigos da mudança. Basta olhar para os documentos papais do século XIX e da primeira metade do século XX se dar conta disso.
Surge daí um dilema bastante angustiante: se a Igreja não se transformar em organização e permanecer como ordem verticalista, continuará sendo cada vez menos interessante para o mundo contemporâneo e para aqueles católicos que não querem trair o seu próprio tempo; se, ao contrário, ela se transformar, experimentará inúmeras deserções por parte daqueles católicos para os quais a imagem tradicional da Igreja é intocável, porque representa para eles a única segurança interior diante de um mundo que temem.
Na única Igreja Católica, há duas Igrejas, uma olha para a frente, a outra olha para trás, e mantê-las unidas é muito difícil. Por mais dolorosa que seja, porém, a escolha agora é inevitável. João XXIII havia optado por olhar para a frente, abrindo-se ao mundo, e convocou o Vaticano II; Paulo VI começou a viver sobre si a tensão entre reforma e fidelidade à tradição; João Paulo II mascarou com o carisma pessoal um papado tendencialmente voltado ao passado; Bento XVI foi eleito justamente para continuar tal torção da Igreja para trás, mas a sua renúncia também é o fracasso desse projeto.
A principal tarefa do próximo papa será a de mediar entre esses dois impulsos, não para bloquear a Igreja na sua indispensável renovação, mas sim para convencer o maior número de católicos de que é apenas estando no mesmo passo do mundo que estamos em sintonia com o passo de Deus.
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Agora a Igreja abre as suas portas. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU