Por: Jonas | 22 Novembro 2012
“Mitolândia” é uma maquinaria cristalizada por crenças vigentes. Estritamente falando, são preconceitos tão arraigados e poderosos que crescem como ervas regadas pela repetição. Quem nunca escutou pelas ruas, bares, rádio ou televisão a queixa “que país de merda”? Na [canção] “La argentinidad al palo”, por mais contraditório que pareça, podemos ser os piores e os melhores do mundo sem mediar matizes entre a fatalidade inexorável e o destino de grandeza. Quantos ainda proclamam que não há índios e nem negros? Que este país é “a comarca europeia da América Latina”, cuja população é formada por “descendentes dos barcos”? Basta apenas parar e ouvir uma seguidilha de lugares comuns, como “o privado funciona, o público está descuidado”, “teríamos que imitar os países que vão bem”, “o único otário que paga os impostos sou eu”, “Perón foi um tirano”, “marcham por um choripán” [um tipo de alimento] e “os pobres e os trabalhadores fazem greve por qualquer coisa”. Isto para mencionar apenas algumas frases dos mitos circulantes que o antropólogo Alejandro Grimson (foto), em “Mitomanías argentinas. Cómo hablamos de nosotros mismos” (Siglo XXI) [Mitomanias argentinas. Como falamos de nós mesmos], revisa e desmonta minuciosamente, com o afã de acabar com tudo.
Os mitos – como pode ser lido nas primeiras páginas do livro – produzem um dano muito profundo no tecido social. Grimson se envolve com “bombas do tempo” que é necessário desativar. Mesmo quando, como postula Wittgenstein, “em nossa linguagem está depositada toda uma mitologia”, o antropólogo expõe que “não estamos condenados necessariamente à mitologia herdada”. Desarticular a "Mitolândia" não é uma tarefa fácil quando a palavra responsabilidade é colocada no centro, um dos velhos problemas que a sociedade argentina possui. “Tudo o que é negativo em nossa história e em nosso presente, tudo o que é desprezível na realidade, é sempre culpa dos outros - adverte na introdução do capítulo ‘Mitos da sociedade inocente’ -. O triunfo é exprimido na primeira pessoa do plural. A derrota, na terceira”.
O autor de “Los limites de la cultura” [Os limites da cultura] , pesquisador do Conicet [Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas] e decano do Instituto de Altos Estudos Sociais, da Universidade Nacional de San Martín, enfatiza que os mitos funcionam amplificados pelos meios de comunicação. “Não é que exista um grupo de argentinos que estão salvos dos mitos. Os mitos que aparecem no livro, eu os escutei e, talvez, muitos deles eu disse. O livro é um convite para que reflitamos criticamente sobre afirmações que prejudicam nossa cultura democrática e nosso debate político.”
A entrevista é de Silvina Friera, publicada no jornal Página/12, 20-11-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Os mitos, apresentando-se como verdades irrefutáveis, abortam a dimensão política do debate?
Claro, como pretende ter um caráter indiscutível, o mito é antipolítico, pois a política sempre é discutível. O discurso neoliberal pretendia se colocar como discurso único. O que qualquer discurso antineoliberal faz é se apresentar como uma opção ligada aos processos redistributivos ou às grandes maiorias. Porém, nunca se apresenta como “a” única opção, porque é justamente essa a obstrução do debate. O mito funciona de maneira tal que oferece o prazer da contundência, da afirmação categórica que permite que, em cinco minutos, uma pessoa diga dois mitos contraditórios. Como não se encaixa no terreno da argumentação, da análise, mas é simplesmente a afirmação de uma certeza contundente, então obstrui o debate político.
No livro, você cita o resultado de uma pesquisa no intuito de romper com o mito do país católico: seis em cada dez praticantes religiosos são evangélicos. Caso fossem difundidos estudos e trabalhos do Conicet, muitos mitos poderiam ser desmontados, não?
Sim. A Argentina é um país muito mais heterogêneo do que o imaginário nacional reconhece. Este é um problema decisivo: enquanto a Argentina não compreender sua própria heterogeneidade cultural, será muito difícil entender quem são os argentinos. Os mitos reduzem drasticamente nossas heterogeneidades culturais à pretensão de uma uniformidade cultural, ligada a um tipo de música, religião, prática, sendo que nós, argentinos, somos muito heterogêneos. No meu parecer isto é muito valioso. O que não é valioso é a destruição imaginária dessa heterogeneidade. A aposta do livro está em traduzir, numa linguagem sensível, muitas destas pesquisas, e seria necessário continuar fazendo isto em muitas outras, para que possamos nos aproximar mais daquilo que somos, como somos, entendendo as matizes e as complexidades territoriais, étnicas e de classe que há no país.
“A aplanadora cultural argentina”, ideia que emprestada de Rita Segato, foi edificada sobre a base do pânico à diversidade, que invisibilizou os negros e índios. Os números do último censo voltam a visibilizá-los?
Os dados do censo questionam o imaginário de que não exista negros e nem índios. Entretanto, o dado do censo está baseado na única pergunta que pode ser feita: como você se considera? O que não significa que todos aqueles que não se considerem indígenas ou afros sejam “descendentes dos barcos”. Outros dados mostram que isso também é falso porque a metade da população tem ascendência mestiça. A metade da população tem alguma ascendência indígena, por mais que não se consideram indígenas ou não sejam indígenas. O censo desmente [o imaginário nacional], contudo, a realidade vai muito além do censo, é muito mais complexa, pois há coisas que o censo não consegue captar.
O “crisol de raças”, disse Segato - e ela tem razão -, é usado de forma muito rara na Argentina, pois um termo similar é usado no Brasil para afirmar que o brasileiro é produto do índio, do negro e do branco. Na Argentina, “crisol de raças” é utilizado para dizer que o argentino é produto das misturas das raças “italiana”, “espanhola”, “polaca” e uma série de “raças europeias”, que são raças que nós inventamos. O que o mito do “crisol de raças” diz é que o argentino é uma mistura de nacionalidades europeias. Essa é uma definição que exclui a metade do país.
Em “‘El 17 de octubre del ‘45’, Félix Luna, um historiador radical, escreveu que não sabia que existia essa gente que estava entrando em Buenos Aires, com uma honestidade intelectual que em tempos tão complicados faz falta reconhecer – sublinha o antropólogo -. Setenta anos depois, não é possível que todos não tenham tomado a consciência que Félix Luna teve naquele momento. Existe uma minoria muito relevante que não tem a mínima ideia das vivências, dos sofrimentos e das maneiras de pensar das classes populares. Há um problema cultural persistente, que não será resolvido de um dia para o outro. Isto fala de um país onde existem cisões e desconhecimentos muito arraigados. E alguns desses desconhecimentos se visualizam na conjuntura política”.
Este escasso ou nulo contato de certos setores médios-médios e médios altos com as classes populares se cristaliza num prejuízo muito generalizado: “Se mobilizam por um choripán [tipo de alimento]”. Se me permite a ironia, qual será o equivalente ao choripán e a coca nos setores médios?
Na antropologia, há uma máxima que Clifford Geertz dizia: é necessário compreender aquilo que não podemos compartilhar. Num balanço, do golpe de Estado de 1976 até aqui, existe mais segregação urbana, mais escolas particulares, mais saúde privada; e isto implica processos de cisão muito profundos. Eu me faço esta pergunta em relação aos setores médios democráticos, que desejavam igualar para cima, um dos mitos que abordo no livro: Considerariam positivo que estivessem em suas escolas os meninos que vivem na Vila 1-11-14 e na Vila 31? Que nos consultórios de seus obstetras estivessem as mães que procedem destas vilas?
Uma sociedade tolera certas desigualdades e num momento não suporta mais uma desigualdade. Porém, uma sociedade, admitamos, também suporta certas igualdades, mas não tolera todas as igualdades. Supostamente, desde a Revolução Francesa, todos nós queremos ser iguais. Todos estão dispostos a aceitar que o consultório do pediatra seja compartilhado? Que a vida comunitária seja compartilhada? Que a escola seja a escola heterogênea da história de uma parte da Argentina? Quando essas escolas começam a ser homogêneas e esses espaços urbanos começam a ser homogêneos, como fazem para compreender o que não compartilham?
Desta forma, sedimenta-se um sentido comum que está vinculado com o “asado con parquet” e com o “marcham por um choripán”, que pode ser visto e escutado quando há um ato sindical no centro da cidade. Não é raro escutar: “esses negros de merda vão por um choripán”. Muitas vezes, os difamadores dos manifestantes possuem salários inferiores a estes. Por outro lado, eu tenho que fazer o exercício de compreensão das mobilizações dos setores médios altos, das quais não compartilho. E que não posso compartilhar. Jamais em minha vida participaria de uma mobilização com Cecilia Pando, e não posso me imaginar numa mobilização com Macri, se é que alguma vez, em sua vida, Macri participou de uma mobilização.
Outro mito a ser desmontado é o de que todo nacionalismo é “autoritário, belicista e reacionário”, um mito complicado porque, seguindo Todorov, o nacionalismo foi crucial em muitos lugares, mas aqui se encerra nesse trio de adjetivos negativos. Os controles no mercado cambial, o chamado “cepo ao dólar”, que é uma medida tomada para proteger a economia, foram considerados uma medida “autoritária” por uma parte da sociedade. Qual é a sua opinião?
O dólar é um assunto que é preciso discutir seriamente. Não é trivial, nem se pode trivializá-lo. A Argentina pode se desenvolver com um nível de fuga de capitais como o que enfrentou nos últimos vinte anos? Isto é impossível, não pode. É legítimo que em determinadas conjunturas econômicas se impeça de poupar em dólares? No meu ponto de vista é legítimo. Porém, devem ser oferecidas outras ferramentas de poupança porque é legítimo poupar. Por outra parte, quando é preciso administrar divisas escassas, você tem que administrar por parâmetros de transparência, de previsibilidade e de justiça. Aqui é onde faço uma diferenciação de fundo na questão: este país não pode se desenvolver com a fuga de capitais que teve, mas, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que as medidas adotadas podem ser corrigidas e melhoradas. Se renunciarmos a ideia de que é possível corrigir e melhorar, fica difícil, não? A política nunca pode renunciar essa ideia.
Um assunto apimentado, que também aparece no livro, é a questão do pagamento de impostos. Como explicar algo tão básico e elementar como o de que é impossível que uma economia e uma sociedade funcionem, caso não sejam pagos os impostos?
Há mais de cem anos, Juan B. Justo dizia que sem impostos não há democracia. Por quê? Todos os direitos possuem custos, não apenas os direitos sociais, o direito à liberdade de expressão precisa ser publicamente regulamentado. O direito à segurança cidadã também. Tudo isto não quer dizer que não seja necessário fazer reformas tributárias por mais justiça fiscal; isto para mim é claro. Existem argumentos ad hoc, das classes médias altas, para justificar a evasão. Quando um crime não é condenado moralmente, cria um problema grave. Em certos setores sociais, o crime de evasão é visto como uma fonte de orgulho. Há pessoas que conversam sobre suas formas de evasão.
O paradoxal nessa questão da evasão não ser condenada moralmente é que muitos, dos que assim procedem, costumam discutir a política com argumentos morais, não?
Sim, claro. Costumam dizer que todos os políticos são corruptos, e um dos argumentos que mais repetem é que tudo aquilo que pagam de impostos é levado pela corrupção. Essa ideia de que tudo o que é pago em impostos vai para a corrupção entra em contradição com a existência da educação pública e o fortalecimento do salário docente, com o investimento em ciência e tecnologia. É contraditório com a realidade.
Em certo momento, você convida o leitor a realizar um exercício, quando propõe colocar o kirchnerista menos fanático junto com o antikirchnerista menos fanático. E sugere que certamente teriam muitos pontos em comum, embora não estejam dispostos a admitir, nem sequer em sua interioridade. Que pontos em comum você acredita que eles teriam?
Não duvidam de que é preciso haver o “Benefício Universal por Filho”, que cada um dos três poderes devem contar com a legitimidade, que é necessário uma melhor justiça fiscal; e não duvidam de que é preciso avançar nos julgamentos contra os genocidas, e também nos julgamentos dos assassinos de Mariano Ferreyra, de Cristian Ferreyra e de Miguel Galván. Apesar de contarem com essas concordâncias de conteúdo, o que não existe é um acordo interpretativo. Um diz: “Você consegue perceber tudo o que este governo não fez?” Este é o que define o governo segundo o antikirchnerista. O kirchnerista diria: “Perceba tudo o que o governo fez, mesmo que ainda falte fazer outras coisas”. É preciso entender como, hoje, os poderes estão distribuídos na Argentina, assim como o que o governo fez e que aquilo que não fez. Sobre aquilo que não fez existe uma discordância que não será resolvida pelo discurso, mas por meio dos fatos.
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“O mito é antipolítico, pois a política é discutível”. Entrevista com o antropólogo Alejandro Grimson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU