19 Novembro 2012
Rodrigo Coppe Caldeira, doutor em Ciências da Religião e professor da PUC Minas, autor do livro Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (Curitiba: CRV, 2011), apresenta e comenta o livro HEFT, James L. (edited by). After Vatican II. Trajectories and hermeneutics. Grand Rapids: University of Southern California, 2012.
Eis o artigo.
As discussões em torno do Concílio Vaticano II (1962-1965) e seus feitos, evento que completa seus cinquenta anos de abertura, aprofundam-se no início desta década. Certamente, desde os primeiros momentos que se seguiram à sua conclusão, os debates em torno do evento conciliar e os textos produzidos por aqueles que dele participaram, multiplicaram-se. Inicialmente como comentários dos documentos promulgados, e, apenas posteriormente, como discussões teórico-metodológicas a respeito de sua historicização e hermenêutica.
No que tange à última perspectiva, a questão interpretativa do concílio, observa-se, especialmente depois do discurso de Bento XVI aos Cardeais no Natal de 2005 – no qual tratou, em um de seus pontos altos, a questão da “hermenêutica da descontinuidade” e da “hermenêutica da reforma” – um aumento significativo de publicações sobre esta dimensão do concílio, qual seja, a sua trajetória como processo de recepção.
Uma destas obras, quiçá a mais interessante deste período, foi a publicada em 2008 pelo jesuíta John O’Malley, intitulada What happened at Vatican II. Nessa obra, O’Malley buscou trazer uma aproximação histórica, apontando para as principais questões que emergiram naquele contexto, além de – e aqui aparece a parte mais interessante – apresentar algumas chaves para se compreender o que o concílio esperava realizar. Na verdade, esta recensão não tem como objeto de análise o livro de O’Malley – que merece uma leitura atenta e uma recensão à altura –, mas obra que foi publicada tendo em perspectiva as intuições do jesuíta norte-americano, isto é, “the issues under the issues”, como chamou: colegialidade (a questão das relações “centro-periferia”), mudança (como se entender as relações entre os ensinamentos e práticas passadas com o presente), estilo (novo gênero literário que foi impresso nos documentos pelos padres conciliares).
Os capítulos do livro ora apresentado – After Vatican II. Trajectories and hermeneutics – editada por James L. Heft, com texto introdutório do próprio John O’Malley, e publicado em 2012, trazem reflexões sobre o desenvolvimento de certos aspectos da vida da Igreja que, como diz o editor, “would have been impossible without Vatican II” (p. viii).
Este livro, assim, é o resultado concreto dos debates que se realizaram em fevereiro de 2009 entre os colaboradores da obra e O’Malley no Institute for Advanced Catholic Studies, na University of Southern California. Além da citada introdução, na qual O’Malley situa a discussão e referencia os textos seguintes, a obra traz a contribuição de sete scholars, que se dedicam, em cada um dos textos, a determinado aspecto da vida da Igreja pós-conciliar, tendo sempre em vista a obra de O’Malley. Todos eles partem da ideia de que o concílio não se resume a uma coleção de documentos, mas um evento que se situa numa longa duração histórica, com início e impacto contínuo. Como diz o jesuíta, “for understanding the council and interpreting it, that impact must be taken into account. Trajectories and hermeneutics intersect” (p. xvi).
No primeiro destes textos – Between Documents and Spirit: he case of the “New Catholic Movements” – Massimo Faggioli faz uma análise da emergência dos “novos movimentos católicos”, como o Comunhão e Libertação, a Comunidade de Santo Egídio e a Opus Dei. O autor demonstra que estes movimentos recepcionam o concílio, como qualquer outra entidade da Igreja, de maneira específica e particular. Tomando especialmente como referência o decreto sobre o apostolado leigo Apostolicam Actusitatem, estes movimentos apelam ao centro a fim de garantir sua independência frente ao episcopado, se posicionando para além da letra e do espírito do concílio, e mesmo contra ele. Entendendo que estes movimentos acreditam que sejam eles mesmos “frutos do concílio”, a pergunta central de Faggioli é: “what kind of Vatican II they claim to be fruit of: the literal meaning of the documents of Vatican II or the ‘spirit of Vatican II’?” (p. 2).
Os dois próximos textos versam sobre a teologia moral na sua trajetória pós-conciliar. Em Vatican II and Moral Theology, Darlene Fozar Weaver constrói sua reflexão a partir de uma pergunta principal: como o Vaticano II ajudou a mudar as perspectivas da teologia moral, já que em seu corpus não há nenhum documento especificamente devotado à temática? Para ela, o desenvolvimento da teologia moral no pós-concílio relaciona-se diretamente a uma das ideias-chave de como O’Malley entendeu o concílio, qual seja, como um “evento linguístico”, especialmente numa das perspectivas que perpassa os textos conciliares, a questão da liberdade de consciência, que aparece na constituição Gaudium et Spes e no decreto Dignitatis Humanae.
Já M. Cathleen Kaveny aborda o lugar da teologia moral nos manuais no período pré-conciliar, principalmente nas encíclicas sociais, que tem o início de sua tradição com Leão XIII em 1891, quando escreve a encíclica Rerum Novarum. Ao estudar a teologia moral no pós-concílio, tomando como exemplos de documento papal que trata do tema as encíclicas Evangelium Vitae e Veritatis Splendor, que João Paulo II insiste em situar em relação com a herança do Vaticano II, Kaveny, tomando como referencial a perspectiva de O’Malley, julga que, por exemplo, a Evangelium Vitae “is a model of magisterial moral theology done in the spirit of Vatican II” (p. 66).
No quarto texto do volume – Vatican II and the postconciliar Magisterium on the salvation of the adherents of other religions – Francis A. Sullivan, grande estudioso do magistério eclesiástico, refaz a trajetória do ensinamento oficial sobre a salvação dos não-cristãos, indo de Pio IX aos últimos documentos do Magistério sobre a temática. É notável, para o autor, certa evolução da doutrina, especialmente quando se lê os documentos do Vaticano II sobre a liberdade religiosa, e que este caminho doutrinal tem impactos importantes nas relações entre as religiões num mundo marcado pelo pluralismo.
John Connelly, em The Catholic Church and mission to the jews, aborda a questão das relações entre a Igreja Católica e os judeus, partindo da pergunta principal se ela tem obrigação no trabalho de sua salvação. Como Sullivan, Connelly opta por um caminho histórico, trazendo elementos que caracterizam estas relações antes, durante o concílio – concretizando-se na declaração Nostra Aetate, como expressão maior sobre a temática – e posteriormente à sua conclusão. Importante lembrar que a questão judaica situa-se num debate mais amplo, ultrapassando elementos teológicos, que envolvia profundamente a opinião pública e também, inclusive, elementos diplomáticos.
Em seu texto – A soldier of the great war: Henri de Lubac and the patristic sources for a premodern theology – Robin Darling Young trata do lugar do pensamento teológico de Henri de Lubac, que foi um dos destacados nomes da Nouvelle Théologie - condenada por Pio XII e reabilitada por João XXIII, ao convocar teólogos, entre eles de Lubac, alinhados a ela – no Vaticano II e, especialmente no pós-concílio, marcado pela ideia de que nesse período a Igreja abandonava suas tradições por estilos e opiniões contemporâneas.
No texto conclusivo da obra – Interpreting the Council and its consequences: concluding reflections –, Joseph A. Komonchak traz sua análise sobre o fundo hermenêutico pelo qual os capítulos anteriores se constituem, apontando para três tipos de interpretação que surgem no período pós-conciliar: a progressista, que sublinha os aspectos de novidade e mudanças trazidas pelo concílio; a tradicionalista, que entende o concílio como responsável pela capitulação da Igreja frente à modernidade; e, por fim, a reformista, que recusa dicotomias, sublinhando os elementos de continuidade nos ensinamentos conciliares, esta última sendo defendida pelos dois papados dos últimos vinte anos.
Considero que uma leitura atenta da obra apresentada vale a pena para aqueles que se dedicam ao tema da história do Vaticano II, e também de sua teologia, por se tratar de um panorama, a partir dos objetivos específicos de cada um de seus colaboradores, desta que é a questão chave do catolicismo contemporâneo – a interpretação da herança deste concílio e que lugar ele terá na história da Igreja do século XXI.
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Vaticano II. Trajetórias e hermenêuticas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU