07 Setembro 2012
Martini havia demonstrado que existia uma via de acesso ao testemunho cristão distinta daquela na qual havíamos sido criados: não só a doutrina social com as suas articulações ético-políticas, mas também ou, melhor, em primeiro lugar, a mensagem autêntica do Evangelho.
A opinião é do sindicalista e senador italiano Domenico Rosati, ex-presidente das Associações Cristãs dos Trabalhadores Italianos (ACLI), em artigo publicado no jornal L'Unità, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Padre Martini, como estava escrito na porta da sua sala de reitor da Universidade Gregoriana, em Roma, me acolheu em mangas de camisa. Era um dos últimos dias de 1979, e ele estava indo para Milão, onde iria tomar posse, como bispo, da cátedra de Ambrósio.
A nomeação pontifícia chegou de repente até mesmo para nós, da ACLI, da qual eu era presidente naquela época. Estávamos desenvolvendo, então, com Martini, um programa de aprofundamento bíblico que envolvia todo o grupo dirigente. Queríamos desenvolvê-lo no tempo, e eu lhe havia pedido uma reunião antes da partida, porque eu sabia que, depois, seria mais difícil.
"Venha logo", ele me dissera. E assim me encontrei com ele no meio de pilhas de livros espalhados no chão, que ele estava tentando embalar em grandes pacotes para serem amarrados com uma corda. Eu percebi que eu podia ser útil, e foi esse, em substância, o conteúdo muito concreto da nossa última conversa romana.
E é a foto que a memória me remete nitidamente enquanto se espalha a notícia de que o cardeal deixou esta terra.
Eu consegui fazer uma única pergunta naquela hora de trabalho, justamente a propósito dos livros: "Será que o senhor vai conseguir utilizar todos eles em Milão?". "Não sei, ele me respondeu; ou, melhor, acho que não, na verdade. Mas, na realidade, em Milão, assim como em todo lugar, eu trago comigo apenas um livro: a Bíblia". Ele disse isso com a frieza do especialista, mas, na realidade, manifestava a vontade de fazer justamente da Bíblia o coração da sua nova missão de bispo.
Era um desafio no qual ele, de algum modo, se sentia obrigado a se arriscar e que produziria resultados muito além das fronteiras de uma diocese, mesmo que fosse a mais importante da Itália. Conosco, nas ACLI, aonde ele havia levado a iniciativa do seu coirmão jesuíta Pio Parisi, ele havia demonstrado que existia uma via de acesso ao testemunho cristão distinta daquela na qual havíamos sido criados: não só a doutrina social com as suas articulações ético-políticas, mas também ou, melhor, em primeiro lugar, a mensagem autêntica do Evangelho – havíamos lido juntos o de Marcos – a fazer "ressoar" inteiramente na consciência de cada um. A Palavra antes da Doutrina, a Palavra que inspira a Doutrina e, definitivamente, a julga.
Era a visão do Concílio Vaticano II, que, não por acaso, havia estabelecido a correta hierarquia das fontes da Revelação e, portanto, das referências operacionais para o crente também no âmbito social. Mas os costumes eclesiásticos não haviam se alinhado. Podia acontecer que apenas três anos antes o antecessor de Martini tivesse feito a este que escreve a seguinte pergunta, com referência às opções políticas: "Quem decide, em última análise: a consciência ou o Magistério?". Ora, vice-versa, estava destinado a Milão um bispo seguramente "diferente" pelas referências culturais e pela amplitude de pensamento, sobre um fundamento de uma fé programaticamente aberta ao debate com o mundo contemporâneo, com os seus problemas e com os seus "sinais dos tempos".
Confesso que, de um ponto de vista egoísta, a partida de Martini nos desagradava, porque perdíamos a disponibilidade romana de um apoio autêntico e de autoridade; e, não menos, reconhecíamos que a ampliação da sua esfera de influência poderia representar uma dilatação da esperança de renovação da Igreja segundo o ensinamento do Concílio Vaticano II.
O desdobramento das coisas deverá ser investigado em âmbito histórico. O destino da missão de Martini, de fato, teve que se confrontar com um endereço da Santa Sé e da Conferência dos Bispos da Itália, que cada vez mais reforçou as amarras doutrinais e, com elas, as armaduras identitárias do mundo católico. Da lógica da mediação à ênfase da presença. E era natural que justamente com relação à prevalência dessa tendência, a experiência em geral realizada em Milão e arredores era assumida como um plausível modelo alternativo e que, em torno dela, se cultivassem expectativas e projetos.
Aos quais, porém, o protagonista, como coerente jesuíta, não dava espaço senão no perímetro de uma obediência sem reservas, que, contudo, deixava perceber a existência de uma distinção também com relação a temas cruciais como, para dar alguns exemplos convincentes, o diaconato feminino ou a existência daquela "zona cinza" entre a vida e a morte, em que – como pediu para si mesmo – não se deve interferir na vontade da pessoa.
Naquela noite dos preparativos para a mudança, também havia, deve-se dizer, o temor de que o potencial de inovação inerente à espiritualidade e à ancoragem de fé de Martini também pudesse ser subjetivamente reabsorvido nas rotinas das incumbências do governo eclesiástico. Agora podemos dizer com certeza que não foi assim. Martini nunca assumiu o papel de antagonista, mas sempre representou uma presença, um pensamento, uma instância de abertura, de diálogo e de renovação. Quantas vezes só o fato de lhe perguntar – o que o senhor pensa, Martini? – funcionou como dissuasão contra escolhas regressivas?
Quem abrir os trabalhos do Concílio Vaticano III – quando, não se sabe, mas deverá acontecer – será obrigado a recordar que, quem indicou a sua exigência, foi, com o seu estilo respeitoso e sóbrio, mas incisivo, o cardeal Carlo Maria Martini. Sempre, até o fim, inseparável da sua Bíblia.
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Doutrina e evangelho: o testemunho cristão segundo Martini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU