20 Fevereiro 2012
O ano era 1966 e o sacerdote recém-ordenado Jaime Ortega y Alamino estava num dos campos de trabalhos forçado instalados pelo governo comunista de Cuba.
A reportagem e a entrevista é de Flávia Marreiro e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 20-02-2012.
Foram oito meses cortando cana e mata nas chamadas Umaps (Unidades Militares de Ajuda à Produção), para onde foram levados entre 1965 e 1968 religiosos, gays e os que em geral se negavam a fazer serviço militar.
Mais de quatro décadas depois, o agora arcebispo de Havana, 75, diz que não se deixou marcar pela experiência e faz um paralelo com os quase 130 prisioneiros políticos que ele ajudou a tirar da cadeia em 2010, numa inédita mediação com o governo Raúl Castro.
Em entrevista em Havana, Ortega afirma que o canal para que ocorram novas liberações de presos políticos está aberto, ainda.
No comando de uma instituição com influência crescente em Cuba, ele diz que as reformas econômicas na ilha são "irreversíveis".
Afirma também que o Brasil pode ter papel "fundamental" nas mudanças.
Eis a entrevista.
O processo de mediação entre o senhor e o governo cubano com relação aos presos políticos terminou? Como responde aos críticos da negociação?
Nunca compreendi porque criticaram. É a primeira gestão que se dá em questões desse gênero talvez em muito tempo e tornou possível que eles fossem libertados. Para além deles [maridos das Damas de Branco, o chamado "grupo dos 75"], ao todo saíram quase 130 presos que poderiam ter causas muito relacionadas com a política.
A igreja mantém duas revistas e encontros de debate em Cuba. Que papel a igreja quer ter nesse momento de transição?
É um espaço de intercâmbio de pensamento que tem a ver com a realidade de Cuba agora e como se quer melhorar em termos de transformações econômicas e sociais também. É um momento muito importante. Em Cuba não se usa a palavra "transição", porque transição é passar a outra coisa, segundo os conceitos que há em pensamento do governo. Fala-se de um processo de atualização, processo mudanças, mas como transição indica sair de um ponto e chegar a outro... As mudanças são abertas e não indicam o ponto de chegada.
Nós não nos referimos ao ponto de chegada, mas o ponto de partida que é o importante.
Como podemos ajudar que um pensamento novo, verdadeiramente novo entre na vida de muitos cubanos daqui e de fora.
Que papel a igreja quer ter nesse momento de transição?
É um momento muito importante. Em Cuba não se usa a palavra "transição", porque transição é passar a outra coisa, segundo os conceitos que há em pensamento do governo. Fala-se de um processo de atualização, de mudanças. Transição indica sair de um ponto e chegar a outro. As mudanças são abertas e não indicam o ponto de chegada. Nós não nos referimos ao ponto de chegada, mas ao ponto de partida, que é o importante.
Em dezembro o senhor pediu que as reformas econômicas caminhem "sem tropeços". Em outras oportunidades, a igreja pediu mais rapidez nas mudanças.
Refiro-me a resistências internas que podem haver entre pessoas de pensamento velho, inclusive um pensamento socialista defasado: que não querem nada de propriedade privada. Acredito que é necessário um saneamento que custa ao próprio governo fazer. Por outro lado, observadores de fora do governo às vezes temem que haja retrocessos, como aconteceu no passado. Temem que seja uma abertura tática por necessidade do momento e que depois se retome o modelo antigo, mais fechado, mais duro. Eu tenho a impressão de que estamos num processo irreversível.
O que senhor espera ver em Cuba daqui a cinco anos? Podemos esperar pluralismo político?
Ninguém sabe o tempo da vida, isso está nas mãos do Senhor. Não falo de uma transição que teria como ponto de chegada mudanças políticas. Toda mudança econômico-social inclui uma mudança, de certo modo, política. Quando alguém tem liberdade de empreender, quando há possibilidade de comprar e vender bens como casas e automóveis, sente que ganhou espaços sociais e que são também, em certo modo, políticos, no sentido que a pessoa se sente mais ativa e livre na sociedade. É isso que posso ver. Mas o ponto de chegada desconheço, porque não posso adivinhar.
Como estão as relações entre a igreja e o governo cubano?
Começaram a melhorar na década de 80. Pouco a pouco, lentamente, foram sendo abandonados os esquemas muito soviéticos, mas que perduraram praticamente até os nossos dias. Mas sempre dando passos à frente, sem nenhum recuo. A visita do papa João Paulo II [em 1998] conseguiu fazer o mundo ver que existia uma igreja em Cuba que poderia reunir, comunicar, convocar, que era viva. A visita deixou uma nova atitude, uma nova percepção de que somos um povo onde há revolucionários, crentes, crentes-revolucionários.
Na questão do mercado de trabalho, os católicos sempre tiveram postos de segunda ordem e depois foram ocupando outros lugares, cátedras universitárias, cargos mais proeminentes.
É muito interessante o que declarou o presidente Raúl Castro na última sessão da Assembleia Nacional: "Por que não poderia ser ministro alguém que não seja militante do partido?". Há uma espécie de projeção futura de abertura, e já não é um campo somente econômico, mas também em outros campos.
Integrantes do partido e o próprio governo falam com ressentimento e acusam a igreja de ter sido pró-espanhóis ou pró-Miami. O que o senhor diz?
Bom, pode ter havido [ressentimento], mas não creio que haja hoje tanto. A igreja tratou de estar presente em Cuba com um sentido patriótico. Sempre teve uma distância crítica do governo cubano, às vezes com lealdade. Dissemos o que pensamos e às vezes não fomos compreendidos.
O senhor esteve nos campos de trabalho forçado. Pode falar sobre isso?
Foi um grande erro que já faz tempo eles reconhecem. Sacerdotes, eram três. Eu já era sacerdote, já havia regressado de meus estudos. Com dois anos de ordenado, me levaram para lá. A experiência é dura, interessantemente dura. Questionavam minhas motivações e valorizavam, apesar disso, o sacerdote jovem que eu era, com 20 e poucos anos. Valorizavam tanto que me chamavam de padre.
E quando um chefe disse uma vez: "Ele tem o nome dele ou seu número", responderam: "Para nós é padre". Estive oito meses lá. Era trabalho de campo, de cortar cana, de cortar mata, que era mais difícil. Era mata alta, muito dura.
Eu diria que pode haver pessoas que ficam marcadas pelos fatos dolorosos, tristes da vida para sempre. Eu não deixo que essas coisas me marquem, porque se não a gente segue considerando a realidade como foi naquele momento. Hoje a realidade é outra. O mundo vai variando.
Vi pessoas aqui que estiveram presos, desses chamados políticos, que ficaram 15 anos na cadeia e saíram sem rancor, com um sentimento de perdão mesmo com aquela injustiça que sofreram.
No primeiro momento em que saí, o bispo me disse: "Passa um mês em Havana, descansando". Havia uns sacerdotes canadenses aqui, que tinham uma casa, alguns com quem eu tinha estudado.
E eu fui. Passei um mês e, nos primeiros momentos, se eu ia pegar um ônibus e nele havia um militar, parecia que tinha que saudá-lo ou que ele estava olhando para mim.
Até que na terceira vez que isso aconteceu disse para mim mesmo: "Já chega. Eu já estou aqui, já não há problemas". Pude me reinserir no mundo e voltar a ser como eu era sempre: otimista, confiante. Caso contrário, não teria sido possível.
Qual o papel de Frei Betto no degelo entre as relações da igreja e da revolução?
No livro de Frei Betto "Fidel e a Religião" --no qual, eu diria, gosto mais das respostas de Fidel do que das perguntas de Frei Betto -, Fidel teve respostas muito abertas e não caiu em nenhum tipo de acosso para dizer algo contra o papa, contra a igreja, contra a educação católica que recebeu. Foi bastante bem, diria eu. Esse livro, do qual se vendeu mais de 1 milhão de exemplares, foi o primeiro desbloqueio do tabu religioso que havia em Cuba. Foi uma contribuição positiva pela resposta que Fidel pode dar lá.
Que papel pode ter o Brasil nas reformas de Cuba?
O Brasil tem um papel fundamental. É um grande país, é uma potência no sentido econômico, isso é indiscutível. O Brasil é latino-americano, dialoga com todas as nações grandes e pequenas. Não é uma potência com armas nucleares, com exércitos ameaçadores. É uma potência que, se mantém essa atitude fraterna como todos os países latino-americanos, ajuda a criar uma realidade na região. Todas as nações poderão olhar a alguém que não pretende domínio, e, sim, ajuda, colaboração. O que desejo para o Brasil, que vem de baixo e tem tantas riquezas e possibilidades, é que o fato de tê-las não o faça distante de seus irmãos e que tenha um papel que para mim é fundamental.
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Cuba está em um processo irreversível de mudança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU