23 Setembro 2011
Antes de mais nada o professor da Unicamp, Luiz Gonza Belluzzo, intelectual do ano em 2005 (Prêmio Juca Pato), um dos mais argutos analistas do capitalismo, faz questão de ressaltar que o Brasil não vive uma fuga de capitais no sentido clássico. "Isso ocorre quando o alvo é um país com dificuldades pronunciadas, marcado por reputação vulnerável nos mercados. Não é o caso do Brasil, naturalmente, que tem posições muito mais sólidas do que no passado. O que vivemos nesse momento é uma fuga global de capitais em busca de segurança e isso ainda significa dólar e títulos do Tesouro dos EUA. Portanto, isso não tem nada a ver especificamente com o Brasil", enfatiza o economista que foi professor da Presidenta Dilma Rousseff e hoje constitui um dos seus principais interlocutores, a exemplo do que ocorreu com Lula. "Mas", capricha na adversativa, "o Brasil tem a ver com tudo o que acontece no mundo. Estamos sendo atingidos. O dólar bateu em R$ 1,90 hoje e só recuou um pouco com desdobrados esforços do BC".
A reportagem é publicada por Carta Maior, 22-09-2011.
Um traço que faz de Belluzzo um interlocutor requisitado é a rara capacidade que tem – exceto quando o assunto é Palmeiras -- de ser assertivo e ao mesmo tempo sereno. Mesmo em momentos críticos como agora, ele sinaliza sem alterar a voz : "Esses movimentos de capitais são avassaladores. São massas monstruosas de riquezas que mudam de direção juntas, de uma vez. Para evitar o rastro de destruição a sua passagem é preciso uma intervenção do Estado".
O que o professor da Unicamp está dizendo carrega certa urgência. Assim como os bancos ganharam muito em operações de carry trade especulando com a valorização do Real, agora vão tentar ganhar no sentido inverso, especulando com a desvalorização cambial. O lado assertivo do economista se expressa sem hesitação: "O governo deve proibir essas operações. Os bancos já ganharam muito dinheiro nesse mercado. Essas operações devem ser coibidas".
Belluzzo compreende a lógica do poder; a força inercial que faz governos preferirem sempre contemporizar a decidir, acomodar a arbitrar. Compreende, mas não sanciona nada parecido na esfera cambial nesse momento tenso e delicado. Os motivos são contundentes.
De 2003 até meados de 2011, o passivo externo do país, ou seja, o estoque de investimentos estrangeiros diretos e fluxos de portfólio (aplicações curtas, voláteis, tipo entra-e-sai) somou mais de US$ 615 bilhões. "Mas o estoque total, adicionando-se o volume anterior a 2003, vai a mais de US$ 1 trilhão", lembra adicionando gravidade à urgência.
As reservas brasileiras são robustas, da ordem de US$ 350 bi. Mas representam pouco mais que 1/3 dessa massa contagiável pelo tropel da manada, que agora inverteu o rumo em fuga pelo planeta.Não é apenas fuga. Mas também remessas que se avolumam. Na crise de 2008, por exemplo, elas aumentaram em 51% em relaçao a 2007. Agora em 2011, mais de US$ 37 bi foram transferidos em lucros e outras contas. "Getúlio Vargas numa situação similar de fuga global de capitais não teve dúvida: centralizou o câmbio e fez o que tinha que ser feito", sinaliza Belluzzo ao responder sobre qual deveria ser a atitude do governo brasileiro diante do tropel que já range os assoalhos do mercado cambial.
Não se trata de um rompante. Tampouco de conclusão baseada em um dia de destempero dos mercados globais. Trata-se de um diagnóstico ponderado de um dos mais respeitados economistas brasileiros que não enxerga contrapesos institucionais para deter o ajuste selvagem em curso no cenário mundial.
A gigantesca massa de ativos e passivos financeiros, capitais fictícios proliferados no fastígio neoliberal, congestiona agora saída do baile. Investidores ariscos se amarrotam no declive das bolsas assoalhando o caminho para o abismo recessivo. A desabalada fuga para a liquidez esfarela tudo o que encontra pela frente, valores tangíveis e intangíveis. Os bancos, integrados mundialmente por uma rede de ativos e passivos, formam o entreposto do duelo sangrento entre as carcaças que ficarão pelo caminho e as que sobreviverão. Nessa contabilidade decidem também a sua própria sobrevivência.
"Who’s in charge?", ironiza Belluzzo ao arguir a ausência de lideranças políticas à altura do colapso em curso no mundo das finanças desreguladas. "Quem é o encarregado?", repete a pergunta para responder em seguida: " Não há". Se a política só produz vácuo, os mercados cuidam de produzir o que sabem. Um ajuste selvagem entre ativos e passivos. Deslocamentos abruptos e maciços de portifólios que esfarelam governos e nações a sua passagem estão na ordem do dia. "O que estão fazendo com a Grécia, por exemplo, é isso,e é de uma perversidade inútil", desabafa Belluzzo que endossa a receita de Nouriel Roubini para os países falidos, os semi-falidos e aqueles candidatos à falência: uma depreciação contundente de passivos; o alongamento generoso dos prazos; incentivos para que voltem a crescer e possam sanear sua economia.
Os bancos sabem o que os aguarda, confidencia Belluzzo. Os espanhóis, por exemplo, que incluem o poderoso Santander, precificaram em 30% o calote-potencial na Espanha. A Alemanha de Angela Merkel não aceita fazer as contas porque não quer largar o osso; "não quer devolver um pedaço do muito que ganhou com a União Européia", critica Belluzzo. Mas os bancos americanos tem US$ 600 bi incrustrados na decadência europeia sabem o que os aguarda. Por isso mesmo Belluzzo não esconde a decepção com a tíbia atuação do governo Obama: "Está aquém do que poderia diante da inquietação de uma opinião pública açoitada por índices de desemprego da ordem de 9% e que não cedem. Até quando vão suportar isso?", questiona. Obama, na opinião de Belluzzo, teria que acionar uma política fiscal corajosa, sem medo de afrontar a cegueira republicana." O resto é inócuo", condena. "Isso que estão fazendo agora, o "swing’ anunciado pelo Fed é assustador pela insuficiência e os efeitos colaterais que envolve", adverte.
Ao anunciar a compra de US$ 400 bi em títulos de longo prazo, trocando-os por papéis de curto prazo, segundo Belluzzo, "os EUA estão estreitando perigosamente o perfil de sua dívida". Pior que isso. Remam na mesma direção dos mercados. Alimentam a obsessão mórbida pela liquidez. Insuflam a manada em fuga pelo planeta, quando o que mais se necessita nesse momento é de investimentos que reordenem, disciplinem e conduzam os cascos de volta aos currais da produção.
"Será uma crise longa", conclui o economista, mas sem entregar terreno à desesperança. "Há muito a ser feito" observa. Ele chama a atenção para desequilíbrios que extrapolam a horizonte imediato da crise financeira, mas que estão indissociavelmente ligados a ela, adicionando-lhe uma dimensão geopolítica pouco lembrada na vigília nervosa dos pregões. "O caso da China, por exemplo", cobra de novo em tom mais assertivo: "Até quando eles acham que vão poder se dissociar das soluções globais".
Belluzzo deixa claro nesse comentário que considera a crise atual muito mais grave do que o capítulo da mesma cepa vivido em 2008. "Todas as ferramentas já foram usadas e não funcionaram. Só os tolos podem considerar que a situação agora é melhor", retruca antes de retomar o caminho da esperança crítica e engajada. "Temos que agir com as forças disponíveis, com os partidos existentes. E, sobretudo", finaliza, "garantir recursos à formação das novas gerações. É crucial formar cidadãos dotados de capacidade de discernimento democrático. Homens e mulheres preparados para exercer a liberdade humana, não apenas o ofício de especialistas blindados no seu campo. Caso contrário, como estamos vendo nesta crise, continuaremos sendo governados por idiotas sociais".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Belluzzo e o pânico na beira do abismo: "Who"s in charge? "Quem é o encarregado?" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU