23 Setembro 2011
"Por que não desafiar os cultivadores de vilões, tidos como heróis pelos Farroupilhas, a torná-los heróis brasileiros, através do parlamento nacional?", pergunta Antonio Cechin, irmão marista e miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010, comentando os festejos farroupilhas, encerrados no dia 20 de setembro, com o feriado gaúcho.
Segundo ele, "os farroupilhas como classe dominante e dominadora, jamais poderão produzir autênticos heróis. É só das classes populares que podem brotar heróis e santos como os que citamos acima. Sabemos perfeitamente através da História da Salvação que o Deus de Jesus Cristo optou por um lado: o lado dos pobres e oprimidos".
Eis o artigo.
Estamos na ressaca dos avassaladores festejos que se prolongaram por um mês inteiro, ditos comemorativos da "epopéia farroupilha" que de epopéia nada tem. Muito pelo contrário, foi apenas uma guerra entre dois grupos de grandes fazendeiros, um a favor do governo federal e outro contra, sem nenhuma causa nobre a defender, apenas em favor de recursos financeiros particulares. Uma guerra que foi financiada pela maçonaria positivista. Em briga de cachorro grande, quem paga o pato são sempre os pequenos. No caso, foram os negros escravos, obrigados a lutar pelos patrões e em lugar dos patrões. Marcharam para a frente de batalha impelidos apenas pela expectativa da liberdade prometida no dia em que acabasse a pseudo revolução.
O próprio nome "guerra dos farrapos", deveu-se simplesmente ao fato da pobreza da indumentária desses escravos. Acabaram vítimas de uma vergonhosa traição em Porongos, pagando com a própria vida através da degola, gênero de morte para desonra absolutamente total. Os farroupilhas preferiram a vil traição seguida de chacina, à glória de pioneiros da abolição da escravatura que poderia ter iniciado no Rio Grande do Sul, para em seguida se espalhar pelo Brasil inteiro como um rastilho de pólvora. Realidade que só foi concretizada pela princesa Isabel 43 anos depois. Os farroupilhas entraram em guerra escravocratas e saíram da guerra mais escravocratas ainda até o fim de seus dias. Preferiram a ignomínia da traição e da covardia à glória de uma magnânima libertação.
A cultura que a partir da famigerada bravata foi implantada pelos farroupilhas é uma cultura eminentemente machista Ela renasceu cento e sessenta anos depois, na feroz ditadura militar de 1964, com renovada virulência, torturando e assassinando homens, mulheres e jovens. Como resultado, uma nova leva de mártires, vítimas de um sadismo desenfreado.
Os noticiários anunciam que acaba de ser aprovada no parlamento nacional a suspirada Comissão da Verdade. Foram necessários 30 anos de luta para que inúmeras famílias brasileiras possam concretizar o sonho de saber como parentes e amigos morreram em mãos dos esbirros do Golpe de Abril e a fim de terem o direito de dar sepultura condigna a entes queridos.
Será que o prevalecimento dos governantes militares, com as iniciativas que tomaram de maneira ditatorial, a fim de consagrar em definitivo o machismo farroupilha já dominante na cultura gauchesca, mas a partir de 1964 de maneira muito mais avassaladora, não permitindo que outro tipo de cultura pudesse se manifestar, não está por merecer também um julgamento à altura da opinião pública em nosso estado? Senão vejamos:
"O Golpe ditatorial de abril de 1964 transformou o Tradicionalismo Gaúcho em força institucional e "popular" e em cultura oficial. Ele foi incluído no projeto cultural da Ditadura Militar no Rio Grande do Sul.
Em 1964 o Tradicionalismo foi incluído no projeto cultural da Ditadura Militar, pois o "Folclore", como fenômeno que não pensa o presente, serviu de alternativa estatal à contundência do movimento nacional-popular, que colocou o povo e seus problemas reais no centro das preocupações culturais e políticas.
O Tradicionalismo usurpou, assim mesmo, o lugar do Folclore, e se beneficiou do decreto do general Humberto Castelo Branco, de 1965, que criou o Dia Nacional do Folclore, e suas políticas sucedâneas. A difusão de espaços tradicionalistas no Estado e as multiplicações dos galpões crioulos nos quartéis do Exército e da Brigada Militar são fenômenos dessa aliança.
A lei que instituiu a "Semana Farroupilha" é de dezembro de 1964, determinando que os festejos e comemorações fossem realizados através da fusão estatal e civil, pela organização de secretarias governamentais (Cultura, Desportos, Turismo, Educação, etc.) e de particulares (CTGs, mídia, comércio, etc.).
Durante a Ditadura Militar, o Tradicionalismo foi praticamente a única "representação" com origem na sociedade civil que fez desfiles juntamente com as forças da repressão.
Enquanto as demais esferas da cultura eram perseguidas, seus representantes censurados, presos, torturados e mortos, o Tradicionalismo engrossou os piquetes da ditadura – seus serviçais pilchados animaram as solenidades oficiais, chulearam pelos gabinetes e se responsabilizaram pelas churrasqueadas do poder. Esse processo de oficialização dos tradicionalistas resultou na "federalização" autoritária, com um centro dominador (ao estilo do positivismo), com a fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho, em 1967. Autoritário, ao estilo do espírito de caserna dos donos do poder, nasceu como órgão de coordenação e representação.
Enquanto o general Médici, de Bagé, era o patrão da Ditadura e responsável, juntamente com seu grupo, pelos trágicos anos de chumbo que enlutaram o Brasil na tortura, na execução, na submissão à censura, na expulsão de milhares de brasileiros para o exílio, os tradicionalistas bailavam pelos salões do poder. Paradoxalmente, enquanto muitos freqüentadores de CTGs eram perseguidos ou impedidos de transitarem suas idéias políticas no âmbito de suas entidades, o Tradicionalismo oficialista atrelou o movimento ao poder, pervertendo o sentimento de milhares de pessoas que nele ingressaram motivados por autênticos sentimentos lúdicos de pertencimento e identidade fraterna.
Através da relação de intimidade com a ditadura, o MTG conseguiu "criar" órgãos estatais de invenção, difusão e educação tradicionalista, ao mesmo tempo em que entregou, ou reservou diversos cargos "públicos", para seus ideólogos, sob os títulos de "folclorista", "assessor cultural", etc
O auge do processo de colaboração entre a Ditadura e o MTG foi a instituição do IGTF – Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, em 1974, consagrando uma ação que vinha em operação desde 1954. A missão era aparentemente nobre: pesquisar e difundir o folclore e a tradição. Mas do papel para a realidade existe grande diferença. Havia um interesse perverso e não revelado. A constituição do quadro de pessoal, ao contrário da inclusão de antropólogos, historiadores da cultura, pessoas habilitadas para a tarefa (que deveriam ser selecionadas por concurso público), o critério preponderante para assumir os cargos era, antes de tudo, a condição de tradicionalista. Assim, um órgão de pesquisa, mantido pelo dinheiro público, transformou-se em mais uma mangueira do MTG. Com o passar dos anos, os governos que tentaram arejar o IGTF, indicando dirigentes menos dogmáticos, invariavelmente, entraram em tensão com o MTG.
Essa rede de usurpação do público pelo Tradicionalismo, por fim, atingiu a força de uma imanência incontrolável. Em 1985, já na redemocratização, o MTG conseguiu que a Assembléia Legislativa instituísse o Dia do Gaúcho, adotando como tipo ideal o "modelo" tradicionalista.
Em 1988, com uma manipulação jamais vista na vida republicana, o MTG se mobilizou pela aprovação da lei estadual que estabeleceu a "obrigatoriedade do Ensino de Folclore"; na regulamentação, a lei determinou que o IGTF exercesse a função de "suporte técnico", sem capacitá-lo pedagogicamente. De fato, passou a ocorrer uma relação direta entre as escolas e os CTGs. Dessa maneira, o Tradicionalismo entrou no sistema educacional, transgredindo a natureza da escola republicana como lugar de estudo e saber, e não de culto e reprodução de manuais. Hoje, os alunos são adestrados pela pedagogia de aculturação e cultuação tradicionalista.
Por fim, em 1989, a roupa tradicionalista recebeu o nome de "pilcha gaúcha", e foi convertida em traje oficial do RS, conforme determinação do MTG." (Até aqui alguns itens do Manifesto contra o Tradicionalismo, escrito por um grupo formado por jornalistas, publicado na íntegra pelo sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em 16 de abril de 2007)".
De 2007 até nossos dias surgiram ainda outras leis esdrúxulas como a lei do churrasco, a lei da indumentária feminina para CTG, a lei da obrigatoriedade do Hino Rio-grandense, até para jogos de futebol e quejandas outras baboseiras.
Nossa constituição federal consagra o Brasil como um país multiétnico e multicultural. A partir das benesses, favorecimentos, privilégios e profusão de recursos financeiros, o machismo tornou-se o caldo cultural da classe dominante às expensas da total cooptação em seu favor, de todas as demais etnias e multivariadas culturas. Veja-se por exemplo o desplante da manchete no suplemento "donna" do jornal Zero Hora de 18 de setembro, ano 2011: "Faca na bota, batom nos lábios".O artigo propõe que para diminuir o machismo masculino de nossa cultura gauchesca, a ele se contraponha um machismo feminino. É possível tamanha desfaçatez? Só pode ser resultado de mau caratismo?
No jornal do dia anterior, a notícia de que na cidade de Porto Alegre são registrados, diariamente, 60 novos casos de violência contra a mulher. Há já 20 mil processos relacionados à lei Maria da Penha, em tramitação. Isso só pode ser fruto de nosso caldo cultural machista por excelência.
Por que não substituirmos os falsos heróis farroupilhas pelos autênticos heróis de nossa história e de nosso folclore como Sepé Tiaraju e os mártires missioneiros do povo indígena guarani dos Sete Povos das Missões; o Almirante Negro da revolta da chibata e o Negrinho do Pastoreio do Povo Negro rio-grandense, os tantos heróis e mártires que os impérios de Portugal e Espanha nos fizeram através de seu brutal choque cultural colonizador?
Somente no Caiboaté, na atual cidade de São Gabriel, 1500 índios guarani foram chacinados
Os Movimentos Populares aliados à Teologia da Libertação nos brindaram ultimamente com a recuperação total de Sepé Tiaraju como herói guarani, missioneiro, rio-grandense e brasileiro. Segunda vez assassinado oficialmente que fora em 1956, pelo Instituto Cultural Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul consultado pelo governador Ildo Meneghetti, quando lhe negaram cidadania heróica que lhe merecesse monumento em praça pública, eis que por ocasião dos 250 anos comemorativos de seu martírio, no ano de 2006, a militância do Rio Grande e do Brasil conseguiu alçá-lo à qualidade de herói ao mesmo tempo rio-grandense e brasileiro.
Por que não desafiar os cultivadores de vilões, tidos como heróis pelos Farroupilhas, a torná-los heróis brasileiros, através do parlamento nacional?
Os farroupilhas como classe dominante e dominadora, jamais poderão produzir autênticos heróis. É só das classes populares que podem brotar heróis e santos como os que citamos acima. Sabemos perfeitamente através da História da Salvação que o Deus de Jesus Cristo optou por um lado: o lado dos pobres e oprimidos.
Como conclusão à nossa reflexão não nos poderíamos furtar de transcrever o Hino dos Farroupilhas, transformado em hino oficial do Rio Grande do Sul, pela ditadura militar. Assim mesmo tiveram que se afadigar em corrigi-lo numa das estrofes. A palavra tirania os incomodava demais e comparações absurdas de parlapatões com heróis de outros povos tiveram que ser tiradas. Estariam dando um tiro no próprio pé.
O hino nos parece tão despropositado que, em nosso entender, poderia ser um forte candidato a um concurso internacional de mentiras, tão ao gosto da cidade interiorana de Nova Brescia.
"Como aurora precursora
Do farol da divindade
Foi o 20 de Setembro
O precursor da liberdade
Refrão
Mostremos valor e constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
Mas não basta pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo
Refrão
Mostremos valor e constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
Trecho suprimido em 1966, durante o Regime Militar. Nada menos que toda a segunda estrofe foi retirada oficialmente.
Que entre nós, reviva Atenas
para assombro dos tiranos
Sejamos gregos na glória
e na virtude, romanos.
Depois de ouvir a narração dos feitos dos Farroupilhas, com o solene encerramento do Hino oficial do Rio Grande do Sul, qualquer matuto interiorano com certeza nos interromperia: "Que façanhas são essas ó cara pálida?"...
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Será que a Comissão da Verdade vai nos ajudar a fazer a necessária varredura no entulho ditatorial da cultura gauchesca? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU