14 Junho 2011
O novo livro do matemático italiano Piergiorgio Odifreddi "é uma espécie de diálogo que o autor estabelece com o papa teólogo Bento XVI por meio da análise e da refutação lúcida e insistente de passagens salientes de alguns textos que tornaram célebre o Papa Ratzinger como teólogo".
A opinião é de Moni Ovadia, ator, músico e cantor italiano, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 12-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O grande filósofo e pensador do judaísmo Emmanuel Lévinas, em seu memorável comentário intitulado Amar a Torá mais do que a Deus, uma exegese a um dos escritos mais trágicos de todo o pensamento judaico do século XX (Yossel Rakover se dirige a Deus) escreve: "Na estrada que leva ao Deus único existe uma estação sem Deus. O verdadeiro monoteísmo tem o dever de responder às legítimas exigências do ateísmo. Um Deus para adultos se manifesta precisamente por meio do vazio do céu infantil". A meu ver, o judaísmo não tem problemas com o ateísmo. Um judeu pode ser um ótimo judeu, sem reconhecer a existência do Eterno. O judaísmo não tem dogmas, e nem a existência do Santo Bendito o é.
A relação entre judaísmo e ateísmo é bem explicada com perspicácia por esta historinha: "Um judeu piedoso, em uma sexta-feira ao anoitecer, dirige-se à sinagoga perto do pôr do sol e, a queima-roupa, pergunta ao seu rabino se ele acredita em Deus. O rabino, depois de um instante de hesitação, pede que o seu congregante retorne no domingo. O judeu consente e retorna no domingo seguinte, para fazer ao rabino a mesma pergunta: `Rabino, tu crês em Deus?". Com decisão, o rabino respondeu: `Não!`. Estupefato, o judeu exclama: `Se tu tens tanta certeza, por que não me disseste na sexta-feira à noite?`. Ao que o rabino rebate: `Desculpa-me, mas não pretendias que eu dissesse que Deus não existe na noite do Shabbath".
O grande comentarista do Talmude Adin Steinalz costumava dizer: "Ah! Poder encontrar um verdadeiro ateu, que coisa sublime, mas é tão raro que não são encontrados nem mesmo entre os rabinos". Talvez Steinsalz teria se tranquilizado se tivesse a oportunidade de se encontrar com o professor Piergiorgio Odifreddi, grande matemático, esplêndido divulgador, pensador de vasta cultura científica, humanística e filosófica. O seu último livro, Caro Papa ti scrivo (Ed. Longanesi, 196 páginas), dá uma ampla medida disso.
Tive o prazer de apresentá-lo aos leitores de Milão e aceitei com prazer escrever a respeito, embora sendo desprovido de competências técnicas, para dar a minha pequena contribuição a fim de combater os preconceitos e os lugares comuns com que se busca liquidar o professor Odifreddi, que, ao contrário, é uma personalidade de grande destaque, portador de uma Weltanschauung ateia da qual o nosso acidentado país tem uma grande necessidade para enfrentar suas próprias rotinas medíocres. Sobretudo em uma época banal de comentaristas, "tudólogos", faladores, clérigos agressivos e ateus devotos que parecem saídos de algum imaginário bestiário borgiano.
Odifreddi goza de uma fama de "devorador de padres", de anticlerical e de enfant terrible dos incrédulos sem Deus. Agora, é verdade que o "matemático impertinente" escreveu um par de panfletos de tom muito sarcástico e ridicularizador, um pouco no estilo do seu célebre e grande colega, o filósofo Bertrand Russell de Por que não sou cristão, e fez isso sem mediações, com um ar de mordaz.
Mas como não entendê-lo? A Itália vive na anomalia de pseudoideologias de fundamentação feudal, como demonstrou o recente fracasso de um projeto de lei contra a homofobia. Esse démi-penser ideológico se fundamenta no autovitimismo dos religiosos mais intolerantes, criminaliza os laicos, os agnósticos e os ateus, acusando-os de laicismo ou de relativismo, graças a uma acepção perversa desses termos.
Mas, precisamente por ir além das polêmicas e das intemperanças estilísticas, o propósito de Piergiorgio Odifreddi aqui é muito diferente do mote irônico ou sarcástico. O leitor, que, com base em boatos ou na recusa de ser colocado em crise sobre as suas convicções, omitisse de ler ou de julgasse sumariamente esse seu último livro faria uma grande injustiça a si próprio. Caro Papa ti scrivo é uma obra séria e profunda, sempre argumentada com uma linguagem rica, precisa e inventiva. A sua exposição tem uma vastidão de fôlego cultural, científico, filosófico e teológico. O leitor atento que se colocar diante dessa obra com honestidade intelectual sentirá vibrar nela uma espiritualidade que brota daquele humanismo do cientista que tornou Albert Einstein célebre.
O livro é uma espécie de diálogo que o autor estabelece com o papa teólogo Bento XVI por meio da análise e da refutação lúcida e insistente de passagens salientes de alguns textos que tornaram célebre o Papa Ratzinger como teólogo, em particular a Introdução ao cristianismo e Jesus de Nazaré.
Caro Papa ti scrivo começa com um capítulo memorável em que a história humana de Odifreddi e Ratzinger se caracterizam por uma paradoxal contiguidade. O autor fala sobre si mesmo quando criança, hipnotizado pela primeira televisão rudimentar que entrava nas casas italianas e trazia consigo os dois personagem que a definiam: o homem do quiz, Mike, e o papa hierático, Pio XII. Ele escolheu como modelo o pontífice e projetou, quando grande, ser papa. O projeto, depois, se rompeu no caminho do dever de obediência hierárquica, insustentável para o espírito rebelde do futuro matemático.
Ratzinger o teólogo nos é introduzido, ao contrário, por meio de uma singular citação que ele mesmo, na sua Introdução ao cristianismo, escolhe para descrever a posição do teólogo no nosso tempo. A citação é uma anedota "protestante", que compara o teólogo a um palhaço, cujo circo, que foi montado nas periferias de uma cidade, queima com um incêndio. O palhaço corre para pedir ajuda, mas os habitantes da cidade não o levam a sério e, acreditando que é uma representação encenada para levá-los ao circo, riem, e quanto mais o palhaço se desespera, mais eles riem. Assim é o teólogo hoje, adverte-nos Ratzinger.
Até aqui a contiguidade. Depois, o professor de teologia esquece a parábola do palhaço e da sua inevitável inaptidão para reivindicar a certeza do religioso que visa a afirmar autorreferencialmente o primado da fé na busca da razão e de demonstrar a insuficiência da ciência diante da majestade da religião.
Odifreddi responde a essa pretensão com uma digressão crítica poderosa que atravessa grande parte do pensamento filosófico teológico e científico ocidental. O proceder argumentativo de Odifreddi atinge o seu ápice ao contestar o papa de que a sua visão do pensamento científico não é só fraca, mas imprópria e privada de um verdadeiro saber. A sua contestação rica em ensinamentos sobre a cultura científica colocam em crise também o leitor italiano mediamente culto - e também me incluo no grupo – que sofre de um pesado déficit de cultura e de consciência científica. Odifreddi, entre outros méritos, tem o de se fazer entender com extrema clareza. Por esse motivo em particular Caro Papa ti scrivo é um livro precioso para crentes e para não crentes.
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O ateu que queria ser papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU