26 Mai 2011
Empresários e sindicalistas estão unidos para tentar fortalecer a indústria brasileira e criar novos empregos no país. Em conjunto, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp, a Central Única dos Trabalhadores – CUT, a Força Sindical e os sindicatos dos metalúrgicos de São Paulo e do ABC, propõem a criação de uma Câmara Setorial e elaboram um projeto no qual apontam a necessidade de o Estado estimular a indústria nacional e lançam novas reivindicações dos trabalhadores pela participação nos lucros e resultados das empresas.
Na avaliação do economista Amir Khair, a iniciativa é valida porque a indústria passa por um momento complicado em função da desvalorização do dólar. Para ele, a criação de uma Câmara Setorial pode fortalecer o setor e gerar mais empregos no país. "Há sempre um interesse de resguardar ao máximo os valores para trabalhadores e empresários brasileiros. Essas propostas de cunho financeiro do ponto de vista do BNDES, de empréstimos e isenção de imposto de renda e participação do lucro dos trabalhadores, vão nesta mesma direção, ou seja, de maximizar recursos internos", aponta.
O economista Guilherme Delgado também aprecia a ideia, mas com ressalvas. Na opinião dele, a formação de uma Câmara Setorial é "uma iniciativa pequena em relação ao tamanho do problema que o setor industrial sofre atualmente". Ele explica: "Percebo que as propostas são, ainda, muito miúdas porque não tocam na política cambial, na política de juros, no sistema tributário geral. É preciso um sistema de progressividade da tributação, que relance um novo padrão de desenvolvimento com oneração diferencial para os trabalhadores e o grande capital. Até porque, num pacto desta natureza, fica todo mundo condicionado por reivindicações que não afetam a distribuição funcional da renda e, portanto, a política macroeconômica em geral. (...) Não adianta fazer pequenos acertos corporativos que desonera um e "dá uma bala para outro’. Esse quadro precisa ser tratado com muito mais envergadura, com ações de política econômica e de planejamento de curto e médio prazo".
Nas entrevistas que seguem, concedidas à IHU On-Line por telefone, os economistas avaliam a atual situação da indústria brasileira, explicam as causas da desindustrialização e apontam alternativas para mudar o atual quadro do setor.
Amir Khair é mestre em Finanças Públicas pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-SP. Foi secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992). Atualmente, é consultor na área fiscal, orçamentária e tributária.
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como vê a proposta de representantes da indústria paulista e de líderes sindicais de criar uma Câmara Setorial de negociação em prol da indústria brasileira? Qual a necessidade de reeditar a ideia de um "pacto setorial" em nome da indústria, neste momento?
Amir Khair – A indústria está passando por um momento complicado não apenas no Brasil, mas em todos os países emergentes, porque está havendo uma desvalorização do dólar muito grande e isso torna difícil a competição das empresas locais com os produtos importados, além de dificultar a concorrência externa.
A criação de uma Câmara Setorial envolve uma série de medidas que fazem com que o Brasil deixe de ser um mero exportador de commodities. Então, está se articulando um movimento para dar força à indústria no Brasil, juntando, portanto, o setor empresarial, os trabalhadores e o Estado.
Tomara que essa iniciativa dê certo. Ela é importante na medida em que reúne empresários e trabalhadores que se encontram em uma mesma situação. O governo teria muito a se beneficiar com tudo isso.
Guilherme Delgado – O objetivo declarado das tratativas que a Fiesp vem fazendo com a Força Sindical e com a CUT, no sentido de arranjar e consertar algumas propostas de defesa da indústria e da política industrial, é importante e necessário. Entretanto, a ideia de criar uma Câmara Setorial, que é uma proposta antiga e reproduz a câmara setorial da indústria automotiva, é pequena em relação ao tamanho do problema que o setor industrial sofre atualmente. Quer dizer, não se trata de um problema apenas de negociação bilateral entre a indústria paulista e as centrais sindicais e provavelmente tal iniciativa vai requerer um desenvolvimento maior do conjunto do Estado. Ou seja, o governo terá de rearticular seu próprio projeto de fomento ao crescimento econômico, terá de rearticular as relações externas e internas já estabelecidas com setores que hoje têm certa hegemonia na política econômica, como é o caso do agronegócio, que também tem conexões com a indústria exportadora. É exatamente esse pedaço da indústria exportadora (agronegócio) que está substituindo o papel da indústria de maior relevância no valor agregado das exportações.
Então, as coisas não são tão simples assim. As notícias dos jornais dão a entender que montando uma Câmara Setorial e apresentando uma proposta articulada pela Fiesp e pelos sindicalistas – não se trata nem do conjunto da indústria –, reelabora-se um novo pacto de crescimento industrial. Esse formato é pequeno para a magnitude dos problemas que estão envolvidos no processo.
IHU On-Line – Alguns economistas defendem que está se formando no Brasil uma coalizão política desenvolvimentista formada por empresários, trabalhadores e profissionais do setor público. Trata-se disso? Esses atores sociais sempre divergiram bastante e agora se aproximam por quê? Eles têm um objetivo comum?
Amir Khair – Exatamente. Eles têm um objetivo único: criar empregos no Brasil e não no exterior, que são criados quando o produto importado começa a assumir uma importância muito grande na composição dos produtos que são consumidos no país. Como sabemos, os países desenvolvidos, fora a China – que é um país exportador –, estão tentando, de todas as formas, exportar para resolver seus problemas. O Brasil tem de tomar cuidado com isso porque essa atitude acaba fechando fábricas, inviabilizando negócios que podem prosperar se houver uma atenção maior e se se procurar dar um nível de proteção à indústria brasileira.
IHU On-Line – Que ganhos os trabalhadores podem ter com a criação de uma Câmara Setorial?
Amir Khair – Os trabalhadores querem participar dos processos decisórios e assumir compromissos. Querem garantir o emprego e ampliá-lo no Brasil. Esse é o tom central da luta dos trabalhadores dentro desse processo de negociação que se inicia com o governo.
IHU On-Line – Entre as demandas, empresários e líderes sindicais solicitam a redução dos juros cobrados pelo BNDES nos empréstimos que concede às empresas e a isenção de imposto de renda sobre o ganho auferido pelos trabalhadores por meio da participação nos lucros e resultados. Como vê essas reivindicações?
Amir Khair – Há sempre um interesse de resguardar ao máximo os valores para trabalhadores e empresários brasileiros. Essas propostas de cunho financeiro do ponto de vista do BNDES, de empréstimos e isenção de imposto de renda e participação dos trabalhadores nos lucros e resultados, vão nesta mesma direção, ou seja, de maximizar recursos internos. O importante – e esse é um ponto delicado – é que o Brasil tem uma distorção em relação aos outros países emergentes. Quer dizer, o país atrai muito mais dólar do que os outros países por causa das taxas de juros elevadas. O governo vai ter de se posicionar em relação aos juros porque essa proposta da indústria, de criar uma Câmara Setorial, está, de certa maneira, conjugada com a redução dos juros. Vale lembrar que os juros têm atraído dinheiro especulativo, que prejudica o câmbio.
Guilherme Delgado – Pelo perfil das propostas, pode-se dizer que há um viés corporativo: a categoria dos sindicalizados do setor A e a categoria dos sindicatos de empresários do setor B fazem reivindicações pontuais; em geral, reivindicações onerosas para o Tesouro. Esse tipo de pacto não reverte o processo de perda de competitividade da indústria porque não se discutem as variáveis mais importantes. Não é a Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP que precisa ser mudada; ela já é relativamente baixa, cerca de 6% ao ano. Pelo contrário, é preciso mudar a taxa de juros Selic, pois é ela que dá o lançamento para o conjunto de remunerações financeiras e indexa a dívida pública interna sobre a qual o setor público tem um ônus enorme.
Como o BNDES é um banco regido pelo direito privado, se o governo reduzir a TJLP, o BNDES vai se creditar de subversões do Tesouro. Todas as aplicações do BNDES têm esse mecanismo de equalização de juros, ou seja, o Tesouro paga a diferença entre a TJLP e a taxa Selic. Se aumentarem a distância entre as duas taxas, o Tesouro pagará mais.
Propostas da Câmara Setorial
Percebo que as propostas são, ainda, muito miúdas porque não tocam na política cambial, na política de juros, no sistema tributário geral. É preciso um sistema de progressividade da tributação, que relance um novo padrão de desenvolvimento com oneração diferencial para os trabalhadores e o grande capital. Até porque, num pacto desta natureza, fica todo mundo condicionado por reivindicações que não afetam a distribuição funcional da renda e, portanto, a política macroeconômica em geral. Nesse sentido, setores da indústria continuam levando vantagens nesse processo de primarização do comércio exterior.
Esse assunto do pacto setorial precisa ser mais oxigenado, discutido. Ele é relevante porque a desindustrialização vem acontecendo não só pela concorrência com os chineses, mas em função da política cambial brasileira muito frouxa, da política de juros exacerbada e também por causa de medidas de tributação que não estão resolvidas devidamente nas relações interestaduais, por exemplo. O assunto precisa ser relançado com uma certa isenção – embora não haja isenção nessas questões –; precisa ter uma capacidade de esclarecer à opinião pública o que está por trás desse processo de desindustrialização.
Fatores da desindustrialização
É preciso explicar que a perda de competitividade da indústria se deve à relativa hegemonia dos setores primários no sistema econômico e, principalmente, no sistema político. O pacto do agronegócio não é um pacto rural e, sim, um pacto de cadeias agroindustriais. O Estado brasileiro está promovendo um processo de crescimento econômico em que o setor primário da economia é claramente apontado como aquele que tem vantagens comparativas para crescer. Cabe ressaltar que tais vantagens comparativas são diferentes do conceito de indústria: as vantagens da indústria são construídas ao longo do tempo, enquanto que as vantagens postas ao agronegócio são naturais, ou seja, terras de melhor qualidade são utilizadas para lavouras contínuas. Esses conceitos nos levam para um padrão de crescimento atrasado porque não resolve o problema da indústria, nem o da população em geral e muito menos o da economia como um todo.
Um país como o Brasil não pode aceitar que o agronegócio seja o campeão do processo de expansão capitalista da economia. Essa discussão precisa ser feita.
IHU On-Line – As empresas costumam solicitar isenção fiscal, redução de juros e outros benefícios para garantir o funcionamento da indústria. Entretanto, mesmo recebendo incentivos, algumas instituições migram para outros países quando julgam conveniente. Como o senhor vê esse processo e a internacionalização de empresas brasileiras que foram financiadas com dinheiro público? A criação de um pacto setorial vai sanar esse problema?
Amir Khair – Todas as medidas nas quais o governo investe dinheiro e concede isenções podem ser positivas se houver o compromisso de as empresas se desenvolverem no país e não no exterior. O objetivo central é o desenvolvimento interno. Espero que, a partir das medidas tomadas no fórum, sejam criados empregos exclusivamente no país.
IHU On-Line – O pacto também propõe a criação de um Banco de Desenvolvimento para financiar micro e pequenas empresas. Essa seria uma alternativa à indústria?
Amir Khair – O BNDES já tem uma área voltada para as pequenas empresas. A questão, nesse caso, é discutir com o governo os aportes de recursos para essa finalidade. As pequenas empresas não conseguem financiamento na rede bancária privada porque os juros são elevados. Tem de se encontrar alguma solução entre as centrais, os empresários e o governo, no sentido de garantir o financiamento para a microempresa que tem dificuldade de competir.
IHU On-Line – Há alguns anos o fantasma da desindustrialização ronda o cenário nacional. Quais os reais riscos de desindustrialização neste momento?
Amir Khair – Neste momento está havendo um processo de desindustrialização. O que se quer é que esse processo seja sustado. Então, o risco existe e irá persistir durante um tempo porque os EUA despejaram dólar no mundo todo para solucionarem seus problemas e, com isso, criaram um problema cambial gravíssimo. A China também faz a conversão plena do dólar para o yuam de tal maneira que acaba não se prejudicando. Então, as duas grandes potências econômicas mundiais criaram um problema cambial seríssimo para o mundo, interferindo nas empresas que têm de competir globalmente.
IHU On-Line – Qual tem sido o impacto do câmbio na desindustrialização?
Guilherme Delgado – As exportações de manufaturados comparadas às exportações de produtos básicos e semimanufaturados têm tido um comportamento inverso do ponto de vista proporcional. Vou citar um dado: no período 1995-1999, as exportações de produtos básicos representavam 44% da pauta. Portanto, 66% eram de manufaturados. Em 2008, houve uma completa reversão: 57% de produtos básicos e 33% de manufaturados. Nos dois últimos anos, essa situação ficou pior porque os básicos já representam 60% da pauta, enquanto os manufaturados representam 40%. Então, em uma década, no comércio exterior, o setor industrial perdeu relevância e participação.
Os dados do comércio exterior são claros no sentido de que há uma primarização da pauta pela relevância das cadeias do agronegócio e da mineração. Não sou contra o crescimento desses setores exportadores de base primária. O que me preocupa é que eles estão crescendo e tomando o lugar da indústria. O déficit comercial do setor manufatureiro está na taxa de 100 bilhões de reais, ou seja, é muito alto.
Desindustrialização
Há uma preocupante desindustrialização ou perda de importância da indústria. Se esse processo continuar, o Brasil terá apenas indústrias tradicionais, as quais têm forte conexão com o setor primário da economia.
Quem é que está ganhando com isso? Quais são os benefícios sociais e econômicos desse processo de perda de importância da indústria e de ganho de hegemonia das cadeias primário-exportadores no conjunto do sistema econômico? Se essa discussão não estiver presente no debate da política economia geral, ficaremos reféns.
IHU On-Line – Há dados de quanto dinheiro o governo, através do BNDES, forneceu para a indústria e para o agronegócio?
Guilherme Delgado – Não tenho números, mas se observarmos as cadeias de financiamento do BNDES com as principais cadeias agroindustriais, tem-se uma parcela considerável de investimentos. Sei que o BNDES tem um aporte relevante na área de financiamento em empreendimentos de parceria público-privada na área de setor elétrico, dos complexos agroindustriais e, provavelmente, deve estar ajudando a Petrobras nesse esforço de alavancar um programa de investimento visionário.
Não vejo nem o BNDES, nem os Ministérios da Economia e do Planejamento, com uma política consertada no sentido de relançar o sistema industrial brasileiro para um novo padrão de competitividade ou para uma nova hegemonia no sistema econômico, ou pelo menos para uma recuperação das suas perdas nas relações internacionais.
As notícias mostram que indústrias brasileiras de várias regiões do país se transferem para outros países, e esse quadro não foi revertido. A política cambial continua sendo o principal componente de agravamento da perda de competitividade da indústria brasileira. Portanto, não se trata de operar apenas com políticas internas.
Não adianta fazer pequenos acertos corporativos que desoneram um e "dá uma bala para outro". Esse quadro precisa ser tratado com muito mais envergadura, com ações de política econômica e de planejamento de curto e médio prazo.
IHU On-Line – Assiste-se a uma crescente comoditização da economia brasileira. O problema da industrialização/desindustrialização está no modelo econômico?
Guilherme Delgado – Diria que o viés para o setor primário exportador que a economia brasileira assumiu a partir dos anos 2000, quando se voltou basicamente para o agronegócio, e o arranjo da política setorial e macroeconômica dos últimos dez anos, feito para resolver o problema do desequilíbrio externo gerado pela política anterior a de FHC, consertou um lado da economia e desconsertou outro. Quer dizer, permitiu que a agricultura saísse da estagnação, mas, ao mesmo tempo, tendo-se, aparentemente, equacionado por esse caminho das exportações primárias a questão do alto déficit na conta corrente, a política econômica abandonou qualquer prioridade de relançamento da indústria processadora, que sempre foi o carro-chefe da política econômica.
Há um viés na política macroeconômica de lançar ou relançar setores agroprocessadores como principais componentes de sustentação da economia. Isso não é bom porque o seja intrinsecamente mal, mas porque se faz à custa de um processo de crescimento da produção manufatureira e de serviços de alta intensidade e inovação técnica.
IHU On-Line – Que mecanismos econômicos o Brasil deve adotar para garantir uma indústria competitiva? Qual deve ser o papel do Estado em relação à indústria brasileira?
Guilherme Delgado – O papel do Estado é fundamental. Sem inovação em tecnologia, sem investimento em setores em que o país está atrasado, não será possível avançar. Não dá para lidar com gigantes comerciais como a China apresentando-lhes as nossas vantagens de exportação de soja, milho, álcool.
Não dá para o país ter competitividade com taxa de câmbio ultravalorizada e uma taxa de juros interna tão alta. Um novo arranjo de planejamento e de política econômica permitiria vencer esses gargalos de perda de competitividade e desvalorização macroeconômica. É por aí que começa um programa de valorização do sistema industrial e do relançamento da sua hegemonia no sistema econômico.
Não dá para planejar o Brasil dos anos 2020, 2030, sem se ter esse relançamento do sistema industrial e sem se reinverter essa hegemonia dos setores primários, que tem de ter um papel auxiliar no processo de acumulação de capital. Afinal, estamos no século XXI.
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Câmara Setorial em debate. Entrevista especial com Amir Khair e Guilherme Delgado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU