05 Janeiro 2011
É a contratação midiática do ano: Jacques Julliard, figura destacada do semanário Nouvel Observateur, se converte agora no editorialista de Marianne, outro semanário político. Julliard nos explica seu desencanto com o semanário da segunda esquerda [1], ao que considera agora demasiado liberal e insuficientemente radical, e nos fala de religião, dinheiro e Marx.
A reportagem é de Sébastien Lapaque, publicada na revista Témoignage Chrétien e republicada no sítio Rebelión, 20-12-2010. A tradução é de Anne Ledur.
Não se pode ser sério quando se tem 77 anos. A figura histórica da segunda esquerda rocardiana, ex-líder do sindicato CFDT, Jacques Julliard, anunciou em novembro que deixava o Nouvel Observateur, onde escrevia há três décadas, e que havia sido contratado por Marianne, onde escreve uma coluna semanal desde o dia 1º de dezembro.
Na raiz dessa ruptura, um desacordo cada vez maior com a linha editorial do grande semanário da esquerda intelectual. Em agosto de 2009, exasperado com a complacência do semanário com o Eliseu, Jacques Julliard, recordou "a necessidade de uma democracia social de combate" em lugar do que considerava "a democracia social como linha de vinco da burguesia e dos negócios".
Meses mais tarde, supreendeu a todos com a publicação em Libèration de Vinte teses para voltar com o pé esquerdo, em que explicava que "a esquerda não pode estar representada em eleições presidenciais por um membro do establishment financeiro", no qual manifestava seu escasso entusiasmo com a candidatura de Dominique Strauss-Kahn.
Essa repentina volta atrás é incomum, além disso, alentadora. Significa talvez que Julliard, que há dois anos publicou um livro titulado L’Argent, Dieu et le diable ("O dinheiro, Deus e o diabo", em tradução livre)(Flammarion, 2008), está de volta à febre e ao fogo de sua juventude católico-proudhoniana? Sem dúvida, é alentador ver que ainda existem homens neste país que entendem que o pensamento só é interessante se for mutável.
Eis a entrevista.
Há dias em que ler o jornal de manhã é um exercício deprimente. Ficamos sabendo que os países são inadimplentes, que os bancos estão quebrando, que a zona do euro está a ponto de estourar. Mas essa sucessão de desastres, desde a crise asiática de 1997, não é profundamente estimulante do ponto de vista intelectual? É, talvez, uma das virtudes dessa inesperada crise do capitalismo que nos obriga a repensar o mundo?
Isso é o que tratei de explicar no meu artigo Vinte teses para voltar com o pé esquerdo, publicado no Libération, de janeiro. Um dos acontecimentos me fizeram evoluir da posição que eu tinha. Durante muito tempo, acreditei, e não me arrependo, que o capitalismo estava civilizando-se, pela influência dos acontecimentos da Guerra e a Liberação [2], mediante um compromisso histórico entre os patronos e as forças sociais progressistas.
Isso trouxe 30 "anos gloriosos", não nos esqueçamos. E deu lugar a uma série de instituições, tais como o Plano, reinventado por De Gaulle, que tinha por objeto uma espécie de diálogo social. Mas a crise de 2008 revelou o que já sabíamos há muitos anos: que um capitalismo de acionistas e proprietários indiferentes ao compromisso social havia sucedido ao capitalismo de gestores do pós-guerra.
Os imperativos da rentabilidade financeira imediata puseram fim ao diálogo social e a qualquer forma de relação com os sindicatos. Parte da esquerda, entre outras aquela a que eu pertencia, não soube renovar suas análises com rapidez suficiente, nem constatar que a situação havia mudado. Não se trata de saber se somos reformistas ou não: para ser reformista, tem que ser dois.
Pois bem, a segunda esquerda seguiu sendo reformista e moderada, enquando que seu interlocutor, o capitalismo, se radicalizou por completo e se converteu em outra coisa. Para mim, é essa a grande lição da crise. E o que veio depois só a confirma: nem sequer as forças de direita têm um mínimo controle do aparato financeiro e bancário que lhes permita impor normas prudenciais.
Temos visto com clareza como o G-20 não tem conseguido impor sequer um indício de controle, simplesmente porque o G-20, por mais poderoso que seja, é muito menos que os bancos dos países que formam o grupo. Como não tirar conclusões? O segundo acontecimento que me fez pensar é o referendo de maio de 2005 sobre a Constituição da União Europeia.
Eu estava a favor do "sim" e sigo estando. Entretanto, não havia conseguido analisar as razões que impeliram a maioria dos franceses a votar "não". Essas razões não eram todas antieuropeias, longe disso. Os franceses não votaram "não" porque não quiseram a Europa e, sim, porque não queriam esta Europa. Não só os entendo como, em grande medida, creio que tinham razão de votar contra o liberalismo. De minha parte, votei "sim", pensando que era a Europa liberal, mas seguia sendo Europa.
Você pertence a uma escola de pensamento que acreditou que a superação das soberanias nacionais permitiria uma transferência de soberania a uma entidade política mais ampla. Entretanto, a soberania nacional abolida em escala nacional não se reconstruiu em escala europeia. Não era, talvez, o objetivo pôr fim a toda forma de intervenção política?
Era esse o objetivo? Não sei. Em qualquer caso, os efeitos não foram esses. Não obstante, se bem é de lamentar que a Europa não exerça nenhuma forma de soberania sobre os mercados financeiros, devemos entender que um Estado-nação também não teria nenhuma opção, salvo a de condenar-se à recessão.
No Estado atual de minha reflexão, creio que é preciso que esqueçamos se votamos "sim" ou "não" no referendo de 2005. Frente a um capitalismo que seguirá sendo internacional, devemos deixar de lado o que divide os soberanistas e os federalistas. Estamos em uma nova situação, que implica uma nova análise do capitalismo e uma reconstrução europeia de novo cunho.
A construção da Europa passou por vários períodos. Houve a Europa de Jean Monnet, que foi uma Europa construída entre países relativamente iguais e que deu alguns resultados.
A essa sucedeu a Europa de Margaret Thatcher, em que se impediu a constituição de um vínculo federal, devido a essa espécie de arma de destruição em massa, que tem sido a ampliação Comunidade Europeia por a toda a Europa geográfica. Era evidente que uma moeda comum em países tão diversos como Alemanha, Grécia e Irlanda resultaria em qualquer crise. É o que estamos presenciando.
Em 1992, Philippe Séguin [3] havia feito desse risco de choques assimétricos um de seus argumentos mais consistentens contra o Tratado de Maastricht e a criação de uma moeda única. Como foi possível passar por alto esse argumento nesse momento?
Porque eu estava convencido de que não havia marcha atrás. A Europa não poderia parar. Na realidade, a construção europeia terminou com o Tratado de Maastricht. Gostemos ou não, esse foi o último ato.
Não se trata de voltar atrás, mas encontrar a maneira de que o poder político exerça um poder sobre a economia. Por que não imaginar, por exemplo, a nacionalização das agências de qualificação em escala europeia? A Europa não seria um âmbito de atividade financeira suficientemente importante para impor normas próprias?
Sim, você pode realocar esses organismos perversos que são as agências de qualificação por outros, mais saudáveis, concebidos em escala europeia. Entretanto, ele não impediria aos outros de seguir operando em escala internacional. E como o dinheiro circula em alta velocidade por todo o mundo, não poderia evitar os ataques da especulação chinesa, hindu ou brasileira às bolsas europeias...
Imagino um governo de esquerda que não hesite em adotar determinadas medidas protecionistas. Levando-se em conta a intercomunicação das economias, se a França perdesse sua qualificação de AAA, já não disporia da solução de fechar suas fronteiras. Esse vinco seria um retorno à Idade da Pedra. Para isso, é preciso superar o enfrentamento teórico entre os soberanistas e os federalistas para encontrar uma solução que nos permita controlar os movimentos de capitais, sempre dentro da economia mundial. Retirar-nos do jogo mundial significaria retirar-nos da História.
Mas até que ponto a política é capaz de recuperar o controle? Mais adiante dos confrontos teóricos? Como fazer possível o seu regresso?
Essa é a questão. Na atualidade, existe um amplo acordo, que vai da direita à esquerda, para não falar da extrema esquerda, que considera que a política deve recuperar o controle e a supervisão das finanças. Mas qual pode ser o instrumento dessa recuperação? Estimo que os Estados já o têm, e que o G-20 terminou em fracasso: os banqueiros venceram.
Sem pretender que as pessoas saiam à rua de forma regular, ou ser um bousculeur, como dizia Proudhon, creio que só mediante uma mobilização popular e um apoio da população se poderá reiniciar essa superioridade da política. Em minhas Vinte e seis teses..., quando expresso meu desejo de uma ampla coalizão, faço um chamamento a uma concentração que modifique o equilíbrio de forças em escala internacional.
Fale-nos de seu percurso intelectual. Ser companheiro de viagem da segunda esquerda não faz com que você contemple a intervenção da autoridade pública, seja nacional ou europeia, com certo receio, e que recorra à sociedade mais que à política?
Sigo me considerando da segunda esquerda na medida em que acho necessário, ao mesmo tempo, que o político predomine sobre a economia e que a sociedade predomine sobre a política. Não confio nas finanças, mas também não confio no aparato político para governar a sociedade. Vivemos em sociedades que têm se tornado adultas e nas quais os indivíduos já não querem ser governados de cima pelas autoridades instituídas.
É preciso ter em conta essa novidade que representa a vontade de independência dos indivíduos e dos grupos com relação às instituições, sejam nacionais ou transnacionais. Desse ponto de vista, o problema é assegurar o vínculo entre as pessoas – a sociedade - e a política. Pois bem, esse enlace se encontra em processo de dissolução. Estamos de acordo em nosso desejo de restaurar a política, mas as pessoas já não querem isso. Estão equivocadas, não veem que é uma sociedade sem Estado, sem política. Não medem o risco.
Contudo, estamos obrigados a ter em conta que sua principal reivindicação é a de autonomia... É magnífico, do ponto de vista da emancipação do indivíduo, mas é, ao mesmo tempo, apavorante. Ao emancipar o indivíduo, se emancipam também os grupos que hoje já não querem mais Estado. Pois bem, o grande mérito do Estado é a submissão desses grupos.
Mas é realmente o momento de defender a sociedade contra os abusos do Estado? Essa suspeita com relação ao Estado considerado como un Moloch é, sem dúvida, fundamental para a doutrina social da Igreja...
Esse é um ponto comum entre a Igreja e a anarquia...
Sim, mas a anarquia hoje é o capitalismo. Então necessita passar pelo Estado para destruir a sociedade. Já não passou de moda uma determinada desconfiança antitotalitária com relação ao Estado?
Levar a cabo uma luta política é sempre tomar a iniciativa contra o inimigo principal, o que não quer dizer que nos esqueçamos dos inimigos secundários. O enfoque da segunda esquerda consistiu em apoiar-se em ocasiões, em grupos sociais às vezes hostis ao Estado, porque o Estado nos parecia um instrumento de paralisia da sociedade e um obstáculo para a realização individual. É por essa razão que me vinculei a Maio de 68, ainda que com moderação, mas muito firme nas propostas contra o Estado.
Dito isso, já afirmei desde o começo aos amigos, como Edmond Maire, que havíamos subestimado o papel do Estado na política. É uma evolução já antiga em mim. Cheguei à conclusão de que o Estado, que era nosso principal inimigo de ontem, hoje é nosso aliado contra os fermentos de destruição da sociedade, que se encontra no sistema bancário e econômico.
Também me parece que a democracia social, que afirma que está morta, nunca esteve tão viva como a esperança em escala internacional. O que esperam os trabalhadores chineses? Proteção. E, para tanto, uma democracia social que necessariamente passa pelo Estado.
Nos anos 1970 e 1980, quando a sociedade de mercado estava tratando de conseguir a metamorfose da que hoje medimos os resultados, não era bastante ingênuo exigir uma maior autonomia e subsidiariedade para os organismos intermediários? A crescente autonomia das comunidades não fez a cama do comunitarismo?
Com relação ao comunitarismo, eu estive logo alerta. O sindicato CFDT, que era meu lugar de reflexão intelectual, não era comunitarista. Ao contrário, preconizava a planificação democrática, o que é bastante diferente. Mas o debate democrático se complicou por um debate sobre a mobilidade da população. Isso escureceu o problema. Entre as comunidades antigas e as novas, que querem fazer valer legitimamente sua presença, a relação com a autoridade do Estado não é a mesma. Nesse contexto, é importante recordar que o Estado é um elemento essencial e que não é uma federação de comunidades.
Por haver nascido em uma família de tradição jacobina, sem dúvida, tive a vontade de ir contra a corrente do estatismo, mas não até o ponto de querer dissolver o Estado. O erro do marxismo-leninismo é ter nos apresentado o Estado como um instrumento das classes dominantes para a opressão das subordinadas. É uma derrota do marxismo, hoje, a constatação de que o Estado é um instrumento de defesa das classes dominadas contra as classes dominantes, que atuam sobre o Estado para destruir a sociedade.
Ao mesmo tempo, estão ocorrendo hoje, no mundo ocidental, coisas tão grotescas que podem ser interpretadas baseando-se em categorias marxistas que antes nos fazia rir. Como não ver, por exemplo, que estamos assistindo a um retorno da luta de classes?
Nas minhas Vinte teses…, me refiro a Marx, e, em particular a seu livro A luta de classes na França, batendo o pé em que modelo que podia parecer-nos obsoleto, que podia parecer-nos excessivamente mecanicista nos trinta gloriosos funcionaria de novo.
Passemos de Vinte teses… à sua coleção de ensaios titulada L’Argent, Dieu et le diable, em que você analisa a relação de Charles Péguy, Paul Claudel e Georges Bernanos com o mundo moderno. Nesse livro, se pergunta sobre a lenta destruição do conjunto de valores pré-capitalistas em que as sociedades modernas seguem se baseando e impedem a absorção de todas as coisas por dinheiro. Para restaurar esses valores, se necessitaria a fé, tanto no sentido individual, como coletivo. Mas, como é possível fazê-lo em um mundo onde, como disse Bernanos, a ansiedade substituiu a fé?
A superioridade do catolicismo frente a outras formas de cristianismo é, precisamente, que concebe a fé em caráter coletivo. O que sempre me faz rir, na visão protestante do mundo, é esse tipo de colóquio singular entre cada indivíduo e Deus. Em termos políticos, a força do catolicismo é ter a visão de um destino coletivo da Humanidade. Na medida em que hoje temos a necessidade de ir mais além de nossa visão individualista, o pensamento católico é uma ajuda. Desse posto de vista, essa religião é completamente moderna, é um dos melhores instrumentos de luta contra a dissolução individualista da sociedade.
Para ser justos, devemos recordar que nos Estados Unidos, um país de cultura protestante, estamos assistindo um regresso inesperado da filantropia, onde vemos homens como Warren Buffett desapegar-se de riquezas ao anunciar que dará 99% de sua fortuna para obras...
Isso é certo. E procede do mais puro calvinismo. Eu gostaria de conhecer os sentimentos religiosos de Warren Buffett e seus amigos multimilionários. Na tradição protestante, o dinheiro vem como um presente de Deus, mas também pensam que esse dinheiro deve voltar a Deus, a suas criaturas. Isso reflete um desejo de lutar contra a apropriação individual. Entendemos mal o que Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, ao interpretar sua tese como a valorização de uma espécie de harmonia preestabelecida entre Deus e o êxito material no pensamento protestante.
Em troca, até entre os puritanos dos EUA, o papel da religião é lembrar ao homem que ele não possui a propriedade que ele adquiriu. Ser rico é ter responsabilidade. Deste ponto de vista, a visão filantrópica está muito menos distante de um catolicismo social que se pode imaginar. A riqueza pode ser uma bênção, mas à condição de que se faça dela um uso não egoísta ou puramente hedonista, e sim, social.
Notas:
1. Corrente ideológica da esquerda francesa formada por membros da democracia social e de outros gurpos de esquerda franceses, formulada no Congresso de Nantes (1977), do PS, por Michel Rocard, desde então principal figura da corrente. Outros representantes são Pierre Mendès-France, Gilles Martinet, o próprio Juillard, etc.
2. Na França, esse termo político, sem qualificações e em maiúscula, se refere sempre ao movimento que culminou com o final da ocupação da França pelas tropas nazistas e o desaparecimento do regime colaboracionista do marechal Pétain, em 1944.
3. Ministro gaullista de Assuntos Sociais e Emprego durante o primeiro governo de coabitação (gaullistas, socialistas), de 1986 a 1988.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A radicalização do capitalismo. Entrevista com Jacques Julliard - Instituto Humanitas Unisinos - IHU