09 Setembro 2009
Rudá Ricci, em entrevista à IHU On-Line, por telefone, fez uma análise sobre o que ele chama de lulismo. É dessa forma que ele destaca as mudanças que o Partido dos Trabalhadores viveu e como a figura de Lula tem sido fundamental para explicar essas reconfigurações pelas quais o partido passou. “O lulismo é um neogetulismo. O lulismo vai ser estudado daqui uns dez anos como o terceiro grande governo republicano que o Brasil teve. Não tenho dúvida de que vai ficar na história do país essa gestão como uma das três que teve capacidade de dirigir o país efetivamente”, disse. Ricci conversou também sobre a relação do governo atual com figuras controversas, como Sarney e o PMDB. Além disso, o cientista político também analisou a presença de Marina Silva numa possível disputa eleitoral e salientou que a utopia de Marina não é a da grande massa brasileira. “A utopia da grande massa hoje é comprar celular, é comer, ter emprego”, e isso, para Ricci, a população conseguiu com Lula, que transformou a classe média.
Rudá Guedes Moises Salerno Ricci formou-se em Ciências Sociais pela PUC-SP. Na Universidade Estadual de Campinas, realizou o mestrado em Ciência Política e o doutorado em Ciências Sociais. Atua como consultor no Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal e do Instituto de Desenvolvimento. É diretor do Instituto Cultiva e professor da Universidade Vale do Rio Verde e da PUC Minas. Escreveu a obra Terra de Ninguém: sindicalismo rural e crise de representação (Campinas: Editora da UNICAMP, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A operação de “salvamento” de José Sarney protagonizada pelo PT, sob orientação de Lula, foi o estopim em relação à imagem do partido, ou ela já havia se rompido anteriormente?
Rudá Ricci – Já se rompeu antes, pra mim isso parece evidente. Acho que nós tivemos três grandes movimentos de mudança do PT. A primeira foi em meados dos anos 1990, ali se rompeu com toda a trajetória anterior da década de 1980, que vai terminar em 1993 e 1994, que era basicamente o partido sendo coordenado por um ideário, que se aproximava muito do que se chamou na política brasileira de bairrismo, e muito fincado na moral da teologia da libertação e dos movimentos sociais.
Essa é uma desconfiança da forma de representação clássica da autoridade pública, é uma grande desconfiança. Isso termina em meados dos anos 1990 e a caracterização maior disso começa em 1994, do Lula, toda comandada por uma lógica mais sindical e de algumas antigas organizações de esquerda que vieram de partido comunista, especificamente, a liderança do José Dirceu. Aí o PT se aproxima da CUT, mas não qualquer CUT, é a CUT agora do Gilmar Carneiro, do Jorge Lorenzeti e do Delúbio. Aí se constrói uma nova lógica, e acho que, para grande militância política do Brasil dos anos 1980, ali se rompeu grande parte das pastorais sociais, ali já houve uma primeira ruptura. A segunda ruptura foi o mensalão, que foi para fora do consumo externo, já não era só o PT. Foi uma avalanche em relação aos movimentos sociais. Nesse momento, o MST já começa a distanciar daquela quase linha justa com o PT e assim por diante. E agora, com a segunda gestão do Lula, que praticamente rompeu com todos os acordos que tinham sido feitos com os movimentos sociais, por exemplo, a realização de audiências públicas por todo o país, como houve na primeira gestão, para discutir o plano plurianual, como aconteceu na primeira gestão, assim como em relação ao Rio São Francisco.
Portanto, essa história do Sarney está sendo mais para consumo da grande imprensa do que efetivamente em relação a uma imagem do PT. A segunda gestão do Lula praticamente deixou claro que existe o lulismo e um partido que está absolutamente a reboque do lulismo. O petismo acabou.
IHU On-Line – O presidente do PT, Ricardo Berzoini, afirmou que o partido “defende a ética, mas não trata a ética como se fosse uma questão isolada da política”. Isso significa afirmar que ética e política não são compatíveis?
Rudá Ricci – Aí nós temos duas questões. Uma prática: O Berzoini é o presidente da falência do petismo. Ele só teria isso para afirmar porque afinal ele é o dono da chave que fecha de vez os portões do PT. O partido, com a direção dele, tornou-se igual a qualquer outro. Não vou dizer que é um fracasso ou um partido derrotado, não é isso. Mas toda a inovação do PT dos anos 1980 acabou, e acabou com a liderança dele.
Agora vamos para a teoria: Na teoria, há todo um debate sobre o que seria a ética política. Max Weber já fez toda uma discussão a respeito disso. Ele dizia, basicamente, que ao contrário da ética, da ciência e da razão científica, nem sempre a ética política diz que é obrigatório falar a verdade. Weber dizia que se, em primeiro lugar, uma liderança for com ferro e fogo defender a sua verdade até o último ponto, ela pode se tornar um tirano. Um político, na verdade, para ser democrático, precisa ceder à sua verdade. Em segundo lugar, que nem sempre um dirigente pode falar exatamente o que vai fazer, porque se assim fizer pode romper com a razão do Estado. Por exemplo, se ele vai fazer um congelamento de preços, e algum jornalista chegar para ele na noite anterior e o perguntar sobre isso, ele não pode falar que vai congelar, pois, com isso, todas as empresas vão remarcar seus preços. Há um embate sobre o que é ética na política que é algo muito delicado. Eu acho que é um pouco diferente. Não é que não tenha ética na política, mas realmente existe uma lógica que é muito específica na política, que não tem absolutamente nada a ver com o que o Berzoini disse.
IHU On-Line – O conceito de governabilidade passou a subordinar e justificar tudo na política. A governabilidade não é a negação da política?
Rudá Ricci – Quando hoje nós vamos falar sobre governos democráticos, dois conceitos dos anos 1980 para cá apareceram com muita força: governabilidade e governança. Mas, se você perceber bem, são dois conceitos que se fecham dentro de uma visão institucionalizante, ou seja, como se tivéssemos um sistema político partidário que se reproduz em si mesmo, que não tem a sociedade necessitando. Governabilidade política seria a legitimidade do governo, o peso político que ele tem pra governar, a aceitação. Ora, da forma como os estadunidenses e a teoria política racionalista e institucionalista vem entrando no Brasil, principalmente pelas portas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, se imagina que governabilidade que se tem pelo apoio dos partidos. Na verdade, governabilidade, teoricamente, não é apoio dos partidos, é o apoio que o governo tem na sociedade. Só que essa teoria política brasileira praticamente eliminou a sociedade desse jogo.
IHU On-Line – Por quê?
Rudá Ricci – Porque durante a discussão para a criação da Constituição de 1988, toda a organização do sistema de governo estava voltado para se adotar no Brasil o parlamentarismo, que depois, num acordo interno, se deu um plebiscito que não acatou isso. Então, a partir da Constituição de 1988 se tem um governo presidencialista que depende em quase tudo do Parlamento.
IHU On-Line – E o que isso provocou?
Rudá Ricci – Especificamente, a partir de FHC, tentou-se fazer uma articulação de um governo de centro esquerda com o partido governista mais a direita. No governo Lula se tentou criar uma outra estrutura através do mensalão, que era a tentativa de aliciar pequenos partidos para fazer a maioria no Congresso. Como o mensalão explodiu a maior crise do lulismo até então, o Lula se aproximou, então, dos grandes partidos e fez acordos com o PMDB efetivamente. A partir daí, com partidos fortes, ele negociou outros ministérios com “porteira fechada”. E aí ele construiu o que hoje nós chamamos de coalizão presidencialista, ou seja, um tipo de gestão parlamentarista, mas presidencialista. Isso é o lulismo.
IHU On-Line – E o conceito de governança?
Rudá Ricci – Esse conceito significa que não adianta ter base política de sustentação se não se sabe governar, criar decisões e técnicas. Isso que se chama governança, a capacidade técnica de dar respostas. No Brasil, a teoria e a prática limitaram a ideia de governança da própria estrutura de governo. Ou seja, o governo tem técnicos e está próximo de, por exemplo, consultorias privadas que possam lhe dar informações que gerem respostas rápidas para problemas técnicos. Você vê que Lula criou um grupo técnico de economistas que vai de Delfim Neto ao Palocci, que vai de Belluzzo ao Aloizio Mercadante. De novo a ideia de governança não é com a sociedade. Com o lulismo, nós ficamos muito parecidos com os Estados Unidos em termos de governabilidade.
IHU On-Line – É possível fazer ainda uma distinção entre os partidos, ou se tornaram todos iguais?
Rudá Ricci – Acho muito difícil fazer uma distinção hoje. O sistema partidário brasileiro está estruturado da seguinte forma: temos dois partidos de centro esquerdo que são muito parecidos na forma de gerenciamento, eles têm estrutura empresarial de gerenciamento interno, que é o PT e o PSDB. Os programas de governo estão cada vez mais próximos, você vê isso na área de educação, por exemplo. E você tem um terceiro partido que é o fiel da balança: o PMDB.
IHU On-Line – E, nesse sentido, quais são as características do PMDB?
Rudá Ricci – O PMDB é um partido que se amolda às regiões. Ele é um partido que tem força nacional, é muito brasileiro e não é nacional, porque o país não é nacional. O Brasil tem características políticas em Minas Gerais diferente das características do Rio Grande do Sul que, por sua vez, é muito distinto de São Paulo, e assim por diante. O PMDB consegue se amoldar a esse país continental. Então, dentro do PMDB há aqueles que são mais da esquerda, aqueles que são mais da direita, outros que são coronéis regionais, outros que são lideranças éticas. Então, você tem de tudo ali dentro, por isso é o partido que tem mais prefeitos e vereadores do país. Mas, exatamente porque se amolda ao relevo político do país que o PMDB não consegue ter um discurso nacional, então é o partido mais brasileiro de todos, mas não consegue criar lideranças. Cá entre nós, Caio Prado Júnior já falava isso: o Brasil tem uma dificuldade imensa de construir um projeto nacional em função da configuração social que o país tem.
A tendência do PMDB de ser fiel da balança entre PT e PSDB está forçando todos os partidos a se amoldarem na lógica do PMDB. O sistema partidário brasileiro é um grande PMDB. Nesse sentido, todos os partidos podem nascer diferentes, mas rapidamente vão ficando iguais ao PMDB. Veja a histórica do PSOL. Ele acabou de nascer e já tem quatro ou cinco correntes internas, eles não se acertam. A Heloisa Helena estava numa corrente e no último congresso deles foi para outra que tinha maioria. É tudo muito parecido no Brasil. Veja agora o PV: Será mesmo que a Marina vai mudar o PV ou o PV vai capitalizar o nome da Marina para continuar no poder e, assim, vender o seu apoio por um preço maior? Eu não duvido.
IHU On-Line – Alguns intelectuais defendem que o Senado se tornou desnecessário. Qual é a sua avaliação?
Rudá Ricci – Eu já ouvi todos os argumentos intelectuais, inclusive do Chico de Oliveira, mas a argumentação é totalmente superficial, não tem sentido algum e me parece, às vezes, que eles nunca estudaram o Senado. O Senado brasileiro é uma ficção, ele sempre representou as oligarquias políticas. Nós temos raras exceções. Quando o Senado foi criado, ele era uma cópia do Parlamento Europeu, e nós nunca chegamos perto da Câmara alta no Brasil. Também não é uma novidade que o Senado representa a Federação. Primeiro porque nosso sistema federativo nem existe de fato. Não existe um pacto federativo claro no Brasil, não temos um pacto federativo como o dos Estados Unidos que foi construído a partir da noção de liberdade e diferença. O Brasil é muito estranho. E mesmo que fosse uma representação formal, o que não é, com o pacote de abril, que criou um terceiro senador, que é o senador biônico, aí é que não representamos mesmo. Nós teríamos que ter um sistema muito mais objetivo e simples, porque o sistema bicameral, além de gastar muito dinheiro e dar força para quem tem uma representação oligárquica no país, dificulta o brasileiro de entender porque ele tem que votar para senador e para deputado. Isso reforça esse distanciamento do Parlamento brasileiro. Não tem sentido algum ter Senado no Brasil, nem histórico, nem teórico, nem político. É uma falácia dizer que ele representa a Federação. Estamos vendo um exemplo disso. Como representa a Federação um senador que foi eleito pelo Amapá e todos sabemos que é do Maranhão? Que representação federativa é essa?
IHU On-Line – É Lula quem decide, arbitra, define tudo no PT. Tudo passa por ele, do presidente do partido ao candidato à sucessão presidencial. Esse poder todo de Lula era previsível?
Rudá Ricci – Em parte. O lulismo é um neogetulismo. O lulismo vai ser estudado daqui uns dez anos como o terceiro grande governo republicano que o Brasil teve. Não tenho dúvida de que vai ficar na história do país essa gestão como uma das três que teve capacidade de dirigir o país efetivamente. Eu tinha dúvidas se ele teria capacidade de enfrentar uma crise internacional. E nós vimos uma clareza meridiana desse governo, superou a crise com muita tranquilidade e deve levar o Brasil a uma das cinco potências do mundo, já somos a sétima. Na primeira gestão do Lula, até a crise do mensalão, o governo titubeava. Percebíamos que tinha uma polarização imensa no governo Lula, havia uma certa sabedoria do Lula ao colocar Palocci como contraponto do José Dirceu. Mas só quando ele conseguiu derrubar os dois, pois foi o Lula quem derrubou os dois de fato, é que aí apareceu de vez um desenho do que é o lulismo mais efetivo. E esse desenho vai ser mais efetivamente construído nos acordos do segundo turno da campanha da reeleição.
IHU On-Line – O que foi desenhado naquele momento?
Rudá Ricci – Primeiro, que Lula não faria mais acordos pequenos com deputados, ele faria acordos com lideranças regionais. Lula fez acordos, no caso da soja, com o governador do Mato Grosso, fez vários acordos nacionais com o empresariado. Com isso, ele consolidou uma paz política. Em segundo lugar, no primeiro semestre do primeiro ano de governo, Lula consolidou uma racionalidade política de gestão baseado no PAC e no Bolsa Família. Então, com isso, Lula é o pai dos pobres e a mãe dos ricos no Brasil. Além disso, ele conseguiu construir uma coalizão presidencialista. Então, o lulismo fechou qualquer tipo de oposição significativa ao governo dele.
IHU On-Line – O senhor acredita que a candidatura de Marina Silva pode ocupar o lugar da utopia que um dia foi do Lula?
Rudá Ricci – Sim, no final da primeira década do século XXI. A utopia do Lula foi a utopia da democratização do país. A utopia de que a política pode ser feita nos bairros ou nos locais do trabalho. A utopia dos pequenos temas cotidianos entrando na política. É a utopia de um operário de bom humor aparecer na política contra os sisudos de terno. Marina é outro papo. A utopia da Marina é a utopia da classe média. Não é a utopia popular. A utopia dela é a do ambientalismo, de uma pessoa moralmente intocável. São temas da classe média intelectualizada de sempre e não da nova classe média.
IHU On-Line – E, dentro desse contexto, qual é o poder que Marina tem?
Rudá Ricci – 15%? Talvez seja isso. É bom que tenhamos um pouco de realismo em relação a isso. Marina ocupa, sim, um discurso da utopia, mas de uma faixa pequena da população, porque a grande massa do Brasil quer sustentar seu crescimento econômico e de consumo. A utopia da grande massa hoje é comprar celular, é comer, ter emprego. Hoje, o tempo de duração de um emprego no Brasil é de dois anos, em média. O que o pessoal quer é ter um negocinho. Essa é a utopia do brasileiro. A utopia da Marina é a dos universitários.
IHU On-Line – Em seu blog o senhor sugere uma enquete: Onde estão os movimentos sociais brasileiros? Em sua opinião, onde eles estão?
Rudá Ricci – As alternativas que coloquei no blog são as que eu acho que existem. Na verdade, eu queria saber como que a minha visão estava afinada com as pessoas que visitam meu blog. Basicamente, o que temos de estudos sobre movimentos sociais? A grande maioria dos movimentos sociais não é mais movimento social, é organização. Movimento social não tem estrutura permanente de poder, não tem corpo administrativo. O MST não é mais movimento social, mas sim é uma organização que tem força de mobilização social. Isso é diferente. Do ponto de vista do MST, isso é interessante, porque significa que ele tem gastos mensais, que ele disputa o mercado com outras ONGs para conseguir recursos. Com isso, ele tenta se autorreferenciar e se autorreproduzir. Ele está totalmente vinculado ao poder emocional de tentar vincular mais pessoas dentro de uma mudança. Movimentos sociais são para apontar problemas sociais e gerar direitos. As organizações nem sempre lutam por direitos. A outra parte se esfacelou. O fato é que no Brasil nós não temos mais uma agenda nacional. Nós temos movimentos sociais que mais uma vez se amoldaram à lógica do Estado brasileiro.
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O PT a reboque do lulismo. Entrevista especial com Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU