Pessoas trans e fé: um ponto de virada? Entrevista com Maurizio Faggioni

Foto: Unsplash

22 Abril 2022

 

O bioeticista e teólogo Pe. Maurizio Faggioni afirma que, como fiéis e filhas de Deus, as pessoas trans podem participar ativamente da vida da Igreja. E, se forem genitores, podem continuar educando os filhos, mas buscando o seu bem autêntico, sem a imposição de alguma escolha.

 

A entrevista é de Luciano Moia, publicada por Avvenire, 20-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

No planeta transgênero, também há muitas pessoas que buscam sinceramente a Deus e que, justamente pela sua condição de desorientação, às vezes de sofrimento, devido à árdua busca por uma nova identidade de gênero, chegam em muitos casos a uma espiritualidade mais consciente por ser alimentada por muitas e profundas demandas de sentido.

 

Infelizmente, muitas vezes a Igreja tem dificuldade de acolher essas pessoas, porque fica sobre a corda-bamba entre o respeito e a dignidade que devem ser reconhecidos a cada mulher e a cada homem, independentemente da sua orientação sexual, e o esforço de abraçar, juntamente com a pessoa, a sua história, a sua experiência, as suas demandas de infinito.

 

É o que vem à tona a partir do livro de Luciano Moia, “Figli di un dio minore. Le persone transgender e la loro dignità” [Filhos de um deus menor. As pessoas transgênero e a sua dignidade] (Ed. San Paolo, 155 páginas), com o prefácio do Pe. Andrea Conocchia, pároco de Torvaianica.

 

Figli di un dio minore. Le persone transgender e la loro dignità

 

O livro dá espaço às histórias dessas pessoas e investiga a condição transgênero à luz da ciência, do direito, da teologia, ouvindo especialistas nos diversos âmbitos, como o Pe. Maurizio Faggioni (de cuja entrevista publicamos alguns trechos abaixo), o Pe. Pino Piva, o Pe. Salvatore Cipressa, o ginecologista Maurizio Bini.

 

“Uma pessoa trans é acima de tudo um filho de Deus, uma pessoa com a sua dignidade humana e, se for crente, um fiel chamado a se sentar à mesa do Senhor e a participar ativamente da vida da Igreja.” É o que explica o Pe. Maurizio Pietro Faggioni, professor de Bioética na Academia Afonsiana de Roma, médico, endocrinologista e teólogo moral. Ele é também consultor da Congregação para a Doutrina da Fé e da Congregação para as Causas dos Santos, além de membro da Pontifícia Academia para a Vida.

 

Eis a entrevista.

 

Se uma pessoa não pode ser considerada “culpada” pela discrepância entre a sua identidade de gênero e o sexo físico, nem pelos problemas existenciais ligados a uma identidade de gênero não resolvida, é certo que ela procure ajuda na psicoterapia?

 

Estamos longe de compreender a gênese precisa da identidade de gênero, mas podemos dizer que ela é o resultado da convergência de predisposições de natureza genética e de imprintings hormonais no cérebro pré-natal com uma poderosa influência derivada de experiências vividas nos primeiros anos de vida. Quando há uma discrepância entre o sexo corporal e a identidade, a pessoa experimenta um desconforto existencial mais ou menos intenso, que é indicado como disforia de gênero. Esse desconforto pode começar na infância ou adolescência ou até mais tarde e exige uma ajuda competente. Uma exploração psicológica é fundamental, e em muitos casos uma boa psicoterapia, especialmente nos mais jovens, pode ajudar a pessoa a superar a disforia ou a torná-la mais administrável em nível pessoal e social.

 

E se a psicoterapia não se mostrar eficaz, é legítimo tentar outros caminhos, chegando até à redesignação médico-cirúrgica do sexo?

 

A pergunta é muito ampla. Quanto à aceitabilidade moral das intervenções que visam à modificação médico-cirúrgica do aspecto físico da pessoa, o debate entre os moralistas católicos ainda não encontrou uma posição compartilhada. Com o risco de ser esquemático sobre uma questão que, com efeito, não permite traçar limites claros de licitude e ilicitude, mencionarei as duas opiniões correntes.

 

Alguns moralistas são contrários, porque consideram que não se pode reduzir a identidade sexual de uma pessoa apenas à autoconsciência, colocando entre parênteses os elementos corpóreos da sexualidade. No fundo, está a polêmica levantada pela teoria de gênero que enfatiza a relevância da autoconsciência e da livre decisão na definição da identidade sexual de uma pessoa. Eles dizem que essas intervenções devastam um corpo sem resolver na raiz a discrepância entre corpo e psique.

 

Outros acreditam que o sofrimento decorrente da discrepância corpo-psique pode se tornar tão insuportável a ponto de mergulhar a pessoa na angústia e no desespero. Se é razoável esperar que a intervenção médica e cirúrgica de modificação da aparência física possa recompor o doloroso conflito entre corpo sexuado e identidade de gênero, então a intervenção pode ser aceita, assim como se aceita uma terapia paliativa que, sem agir sobre as causas de um sintoma muito doloroso, visa acima de tudo a melhorar a qualidade de vida de uma pessoa.

 

Existem documentos oficiais da Igreja sobre o tema da transexualidade?

 

A Igreja está bem ciente da questão da disforia de gênero, mas as intervenções são muito discretas. O cardeal Ratzinger em 1991 – ele ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – escreveu negativamente aos bispos alemães sobre a admissão ao matrimônio de pessoas transexuais operadas. Um documento oficial da mesma Congregação de 2000 que, dada a delicadeza da matéria, tinha que permanecer confidencial, foi parcialmente publicado na internet por fontes jornalísticas. Na Itália, há uma nota da Conferência Episcopal de 2003, também negativa, sobre a admissão ao casamento após as intervenções da chamada correção do sexo. Como na Itália um juiz pode dispor a reatribuição do sexo declarado no nascimento, dispõe-se na nota que a certidão de batismo não pode ser corrigida, mas se observa que o sexo registrado no batismo agora é diferente do sexo no registro civil.

 

Entre as várias experiências relatadas nesse livro, algumas se referem às escolhas de homens que, depois do casamento concordado, optaram por pôr fim aos seus terríveis sofrimentos identitários por meio da reatribuição cirúrgica do sexo. As esposas aceitaram essa escolha e continuam vivendo com um marido que se tornou “mulher”. Trata-se de casais de fiéis que vivem uma serena vida de fé. Nesses casos, qual é a avaliação ética?

 

Em geral, um homem e uma mulher permanecem casados mesmo que um dos dois sofra graves traumas ou mutilações ou manifeste patologias físicas ou psicológicas. Por isso, os laços de afeto, a partilha da vida, a comunhão espiritual na fé certamente podem continuar mesmo após o surgimento da disforia e após as intervenções de adequação do sexo corporal à identidade de gênero. A situação é diferente se o casal desenvolver uma dúvida sobre o próprio matrimônio e o submeter ao juízo da Igreja.

 

Sabemos que as origens da disforia são distantes e enraizadas na pessoa. Uma vez que a disforia exploda com toda a sua gravidade a ponto de levar um marido, por exemplo, a pedir intervenções de modificação do sexo corporal, seria possível duvidar que esse matrimônio tenha sido, além dos ritos e das formalidades, um verdadeiro matrimônio, ou seja, a união de um homem e de uma mulher. Ser homem e ser mulher vai muito além de ter um corpo feito de uma forma ou de outra e vai além até mesmo da possibilidade de uma intimidade sexual.

 

Esses casais às vezes têm filhos, nascidos antes da redesignação cirúrgica. O compromisso educativo desses casais de “geometria variada” não desapareceu. Nem mesmo a educação na fé. Por que então expressar considerações negativas sobre o compromisso deles, já que para eles a transexualidade foi uma escolha quase obrigatória diante de uma condição psíquica patológica?

 

O fato de dizer que, por causa da sua situação pessoal, não se pode falar de matrimônio não significa expressar considerações negativas sobre o compromisso desses casais. No que diz respeito aos filhos, muito depende do reflexo sobre eles de uma história indubitavelmente inusitada, das suas reações e do modo como acolheram e elaboraram, talvez com um acompanhamento competente, a modificação dos papéis e das dinâmicas genitoriais. Um casal de “geometria variada” – para usar a sua expressão – pode continuar desempenhando os seus deveres educativos para com os filhos, desde que seja o bem autêntico dos filhos, e não a imposição de uma escolha por parte dos seus genitores.

 

Se aquele pai que se tornou “mulher” fosse chamado a ser padrinho de batismo dos seus netos, ele poderia aceitar?

 

Em princípio, se um fiel ou uma fiel tem uma boa vida cristã, pode ser padrinho ou madrinha. Dada, porém, a singularidade da situação, pode-se perguntar se não seria melhor escolher outro padrinho ou outra madrinha, para evitar mal-entendidos ou distúrbios na comunidade cristã. Se estivesse diante de um pedido desses, eu, como padre, pediria conselho ao bispo.

 

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