08 Abril 2022
O Papa Francisco em Malta há poucos dias e o Pe. Paolo Dall’Oglio na Síria, sequestrado há nove anos. O que eles têm em comum neste momento de conflito atroz entre Rússia e Ucrânia?
A reflexão é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em Formiche, 05-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Enquanto o presidente ucraniano fala na ONU, eu me pergunto por que se falou pouco sobre Malta, sobre a viagem de Francisco a Malta. Lá surgiu a face de uma Igreja global, não mais apenas ocidental, precisamente nas horas em que, de Moscou, surgia o rosto do nacionalismo eclesial; derrubando-o podemos ver outros, sempre nacionalistas, mas de sinal contrário.
Desde os tempos do grande discurso de Paulo VI à ONU, a relação entre essa assembleia e uma Igreja global tem interessado muitos estudiosos. Hoje, eu diria que quem não entende Francisco não entende a Igreja global, gostaria que ela fosse ainda ocidental, como nos tempos de Constantinopla. Em vez disso, a Igreja global se adapta aos tempos irrealizados, mas sempre desejáveis, da ONU, do multilateralismo.
O presidente ucraniano fala na ONU sobre Bucha, que não será a única, outras estão destinadas a surgir, assim como outras seguirão a primeira Bucha descoberta nos Bálcãs, há muitos anos, ou na Síria, em anos mais recentes. Também por isso, teria sido importante acompanhar melhor o discurso de Malta.
Poucas horas antes da descoberta de Bucha, mais de 90 fugitivos de lugares não muito diferentes da Ucrânia de hoje se afogaram no Mediterrâneo. Outros, por sua vez, foram internados em campos de concentração estatais líbios, ou seja, a poucos passos daqui, onde quem é parado pela Guarda Costeira líbia é “acompanhado”.
Uma Igreja global sabe tudo isso, porque é a sua história, a história dos seus filhos, do seu mundo. Por sua vez, quem encarna outro “mundo”, talvez o russo, vê apenas com um olho. Vê as injustiças sofridas, não as cometidas, e celebra – nas mesmas horas da grande viagem maltesa – a sua vontade de vitória junto com os chefes militares daquele mundo, daquele exército.
De que essa Igreja global precisaria? Ela precisaria daqueles que poderíamos chamar de “jesuítas chineses”, ou seja, membros que saibam entrar nas profundezas de uma cultura, fazer parte dela e levar a Igreja global a viver com ela, e ela, a conhecer outro mapa-múndi. Só assim o mapa-múndi a conhecerá como sua parte, não como uma parte adversa.
Por outro lado, o que a Igreja nacionalista fará? Diante de Bucha, seguirá a cultura da “dúvida” ou do negacionismo. Foi assim nos Bálcãs, na Síria, em outros casos. Será assim nas próximas Buchas ucranianas? Esse radicalismo nacionalista tem dois objetivos: encontrar aliados pelo menos na “dúvida” (do que não se pode duvidar?) e radicalizar os outros na raiva indomável. O circuito é infernal.
É por isso que não quisemos dar um pouco de atenção à Igreja global que vimos em Malta? Essa Igreja nos liberta do radicalismo, do eco surdo da raiva profunda. Ela nos explica que nós devemos ficar horrorizados com Bucha, porque nós causamos outras Buchas (o massacre de Mi Lay ocorreu em 16 de março de 1968), nós observamos outras Bucha (Srebrenica), nós ignoramos outras Buchas (basta pensar nas valas comuns nunca procuradas no Vale do Orontes sírio). Tudo isso não leva a relativizar, a tornar tudo cinza, pelo contrário! Serve para entender que precisamos sair disso, com um olhar global.
Optamos por apoiar com as armas a resistência dos ucranianos, sabendo do horror que é a ocupação nacionalista (ou imperialista). Existe algum exemplo que possa nos guiar nessas situações terríveis?
Eu vejo um exemplo iluminador. É um exemplo italiano, removido. Esse exemplo tem um nome e um sobrenome: chama-se Paolo Dall’Oglio. Para mim, é como se ele estivesse na Ucrânia. E eu explico o porquê.
Depois de ter pedido inutilmente aos “pacifistas” que fossem à Síria como batalhões desarmados de interposição, ele entendeu que era preciso armar a resistência popular. E ele disse isso. Para ele, armar a resistência significava impedir cem Buchas. Mas, enquanto dizia isso, como verdadeiro discípulo de uma Igreja global, indicava um caminho de mediação, nos Brics. Sim, ele estava convencido de que eles, os sujeitos externos à concorrência leste-oeste, mas do mundo, poderiam ajudar a mudar o curso dos acontecimentos.
E não parou por aí. A ambas as partes que queriam “toda a Síria, que é uma”, como sempre dizem, ele propôs um plano: tornar o país federal. Um sim, mas com fortes autonomias, federal, portanto. Para frear as feridas, muitas vezes criadas artisticamente pelos provocadores, entre as comunidades, ele pensou também na sua articulação, composição.
E não parou por aí. Enquanto as opções que ele propunha – armar as resistências não fanatizadas, envolver os Brics, elaborar uma federalização do território conservando a sua integridade – eram belamente ignoradas, parece que ele foi contatado para servir de ponte entre os protagonistas do próximo confronto devastador, aquele entre o ISIS e os curdos. Isso foi afirmado pelo homem que estava com ele no dia do seu sequestro pelo ISIS.
O que aconteceu? De acordo com esse relato, os curdos pediram que ele levasse uma carta secreta aos líderes do ISIS para evitar o último confronto. E ele? Ele foi? Sim, foi, e eu posso dizer que nos escreveu dizendo havia “aceitado” ir, pedindo que rezássemos por ele. Nunca tinha acontecido antes de ele falar assim.
Então, o homem que tinha entendido que era preciso armar a resistência também sabia que, se o desejo era sair do redemoinho, era preciso envolver outras potências, era preciso trabalhar nos planejamentos territoriais e tentar apagar o fogo. Mas, para ele, se realmente queria apagar o fogo, isso exigia o uso dos seus braços, não os dos outros.
Para mim, Paolo Dall’Oglio sabia tudo sobre a viagem de Francisco a Malta, sobre a sua Igreja global. Acho que a sua verdadeira história, que nove anos depois do seu sequestro ainda não se conhece, mas poderia ser conhecida se alguém quisesse, não seguia ideologias, não sonhava com chamas purificadoras, mas com o interesse de um povo, verdadeiro. Não desejava expressar “um julgamento público segundo a justiça”, mas defender nos direitos e salvar nas perspectivas concretas. Por isso, acho que ele usou os seus braços para tentar apagar as chamas, aquelas que nós sequer vimos chegando.
Tudo isso teria sido impossível entrincheirados em uma posição angelical, como a recusa de armar os resistentes, ou com uma posição utilitarista, como a não busca de mediadores, ou com uma posição esclerosada que não trabalhasse sobre as hipóteses de planejamento territorial.
Naqueles anos terríveis, ele era um verdadeiro “jesuíta chinês”, mas em terras árabes. O seu exemplo indica um caminho também para nós, que não somos nem jesuítas, nem chineses, nem árabes, diante da Ucrânia.
Assim como La Pira, citado por Francisco em Malta, ele via a urgência de uma medida humana diante da agressividade infantil. Por isso, eu estou convencido de que ele teria concordado com o professor Massimo Borghesi, que, ao comentar o discurso maltês de Francisco, escreveu: “O Ocidente quer que a Ucrânia alcance a paz?”.
Sim, esse é o ponto. E Dall’Oglio disse sobre Assad aquilo que nenhum crítico de Putin hoje diz sobre o presidente russo. Mas ele pegou as suas personalíssimas pernas para ir a Raqqa e parar as chamas. Esse é o exemplo de que precisamos hoje. Esse é o exemplo que todos, de formas menos arriscadas, poderiam seguir. No fim das contas, um humanista, se for verdadeiramente um humanista, também pode intuir o que é a Igreja global.
Para conseguir trilhar esse caminho, porém, é preciso ter a coragem de ver a realidade como ela é. As valas comuns não caem do céu. Não nascem nos teatros do absurdo, nem nos de Hollywood.
Os braços amarrados atrás das costas não são truques. Wagner não é o nome de um grande músico, mas de um grupo de mercenários pagos por uma grande potência operantes no mundo. Kadyrov não é uma dúvida, mas uma certeza militar, usada por Putin há muitos anos, não hoje. Agrade ou não a quem quer esperar por investigações confiadas a países “neutros”.
Enquanto isso, as cúpulas de cebola das estupendas igrejas ortodoxas servem de pano de fundo para mapas de satélite que indicam as valas comuns.
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A Igreja global depois de Bucha. O exemplo que queremos ignorar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU