16 Março 2022
“A resposta não é aprender a sobreviver em um mundo que está desmoronando, mas ser capaz de despertar, ou seja, de pensar além do apocalipse para focar na metamorfose do mundo. Aprender a viver no Antropoceno é aprender a viver sem medo e sem temor do que o futuro pode trazer, é aprender a viver com pura confiança e sem nenhuma segurança”. A reflexão é de Jordi López Ortega, professor associado, pesquisador em ecologia, energia, saúde e políticas públicas, da Universidade Politécnica da Catalunha – BarcelonaTech, em artigo publicado por The Conversation, 10-03-2022. A tradução é do Cepat.
O Antropoceno é um conceito inquietante com múltiplos planos. O que nos é apresentado como uma ameaça pode ser a salvação do mundo. Esta é a hipótese que proponho em um artigo publicado recentemente em um número especial da revista Social Sciences dedicado à teoria social sobre essa época marcada pela ação humana.
O Antropoceno revela uma ambivalência: por um lado, nos tornamos uma força geológica capaz de remodelar o mundo e, por outro, adquirimos uma notável fraqueza quando o colapso ecológico parece inevitável. Daqui surge uma pergunta inquietante: como viver e como sobreviver no Antropoceno?
O artigo, intitulado 'Como o Antropoceno poderia salvar o mundo: metamorfose' (em inglês), retoma as raízes do pensamento ocidental em face dos desafios atuais. Mas serve também para tirar a poeira dos séculos de velhas disputas teológicas, antropológicas e filosóficas.
O termo Antropoceno, como apontou Jeremy Baskin, tinha um potencial explosivo entendido como uma mudança no nosso modo de viver e estar no mundo, mas foi reduzido a um paradigma vestido de era geológica. Originalmente, envolvia uma reconceituação radical da relação entre a humanidade e a natureza.
O especialista em ética Clive Hamilton, por sua vez, considera que o Antropoceno não colocou a tônica na ruptura e limitou-se a ser um agregado de disciplinas.
A grande aceleração, como o Antropoceno é descrito, tornou-se uma coleção de hipóteses apocalípticas. Basta percorrer qualquer livraria ou a seção de livros de uma grande área comercial para encontrar títulos como Aprender a viver e a morrer no Antropoceno de Roy Scranton, Meio planeta de Edward O. Wilson e A alma dos bonecos de John Gray.
Se pararmos para olhar qualquer um desses livros, tiraremos duas conclusões. Por um lado, nunca a humanidade teve uma imagem tão deplorável de si mesma. Por outro lado, nos mergulha em um estado depressivo: não há nada que possamos fazer para nos salvar, não há alternativa senão abandonar as fantasias e aprender a morrer não como indivíduos, mas como civilização. O pessimismo cósmico aproveita todas as oportunidades para acusar a humanidade de bode expiatório.
O cientista britânico James E. Lovelock diz que há dois séculos ainda era possível estabelecer diretrizes para o desenvolvimento sustentável. John Gray relaciona a cegueira ao humanismo e ao cristianismo. Edward O. Wilson nos lembra que somos carnívoros tribais dispostos a matar cruelmente. Roy Scranton não vê espaço para salvação: "O maior problema que enfrentamos é filosófico: entender que essa civilização já está morta".
No caso de áreas com abordagens abióticas (geologia, climatologia, oceanografia...), o Antropoceno surge do esforço transdisciplinar das ciências do sistema Terra. Mas os químicos atmosféricos percebem que não podemos entender a atmosfera sem pressupor a vida, o que leva Paul J. Crutzen a desafiar a ciência. E, no esforço, recupera autores silenciados e ignorados como Eduard Suess, Antonio Stopani, Vladimir Vernadsky, Eduard Le Roy ou Pierre Teilhard de Chardin. São autores que chegam à hipótese de que o planeta se comporta como um gigantesco organismo vivo; uma visão que tem raízes na obra científica de Johann Wolfgang Goethe.
A grandeza de Goethe foi inserir a vida na ciência. Não refuta Darwin, diz Rudolf Steiner, mas o complementa. Timoteo Lemton, Sébastien Dutreill e Bruno Latour apontam que surpreende a pouca influência que a vida teve sobre a ciência com abordagens abióticas.
Bruno Latour acredita que não estamos diante de uma crise. A emergência climática e a emergência sanitária são dois problemas gêmeos que levam a uma metamorfose. José Ortega y Gasset, influenciado por Pierre Teilhard de Chardin, considera que atrás das ruínas se esconde um rejuvenescimento. As ruínas são terríveis para os arruinados, mas mais terrível seria uma história que não gerasse ruínas. A humanidade, então, não evoluiria.
O filósofo Franz Brentano faz uma distinção entre épocas decadentes e épocas saudáveis e marca as épocas decadentes como subsolos não científicos. Para Rudolf Steiner, Brentano comete um erro: o ceticismo, que apaga toda a fé nas certezas científicas, permite lançar alguma luz sobre a realidade. Não é o fim do mundo, nem o fim do nosso mundo; é um novo começo, uma nova visão do mundo.
A metamorfose pode nos salvar. Ao eloquente "fim da civilização", Nietzsche contrapõe uma "transvaloração dos valores", o que fascina filósofos como Martin Heidegger, Michel Foucault, Jürgen Habermas e Ulrich Beck.
Em Lições sobre a Filosofia da História Universal, F. W. G. Hegel diz que “o que pode nos deprimir é que a mais bela figura, a mais bela vida encontra seu ocaso na história. Na história caminhamos entre ruínas”. Goethe nos diz que “tudo tem que transformar-se em nada”. Reivindica a vida, a mutação, a mudança, a metamorfose, a evolução.
O Antropoceno como salvação soa como uma provocação. Opõe-se ao pessimismo cósmico. Jason Hickel em Less is More: How Degrowth Will Save the World propõe que o decrescimento salvará o mundo. Estaria a mudança climática se transformando assim em um agente da metamorfose que salvará o planeta? Por trás dos “efeitos primários” negativos (a mudança climática, a Covid-19, etc.) estão os “efeitos secundários” positivos. Richard Horton, editor do The Lancet, teme que estejamos deixando para trás um cemitério de oportunidades perdidas.
Pierre Teilhard de Chardin vê a história como uma espiral de sucessivas civilizações que se sucedem. O Anjo da História [Editora Autêntica], de Walter Benjamin, expressa essa intersecção entre desmoronar e despertar. O anjo que olha para o passado vê uma grande catástrofe onde se amontoam ruínas sobre ruínas.
Manuel Arias Maldonado faz referência em Desde las ruinas del futuro ao messianismo de W. Benjamin e Giorgio Agamben. Os agnósticos veem o homem preso em um mundo maligno criado por um deus idiota. Hoje essa imagem se apresenta invertida. A hipótese Gaia apresenta a Terra afligida por uma praga chamada humanidade.
O misticismo cabalístico de Isaac Luria e o misticismo cristão de Jacob Böhme se opõem à "doutrina da queda". Esse amor pelo que existe foi expresso por Sören Kierkegaard com o termo “salto de fé”. Somos “reparadores” (tikun, em hebraico) cósmicos. O maniqueísmo faustiano que Ulrich Beck capta em sua obra A Metamorfose do Mundo [Zahar Editora] também entra em jogo, talvez com excesso de otimismo ao proclamar um "catastrofismo emancipatório".
O que leva ao pessimismo cósmico dominante? O estresse de buscar soluções para as mudanças climáticas e outros problemas globais para salvar nossa civilização. Olhamos para o lado errado e vemos apenas ruínas.
A resposta não é aprender a sobreviver em um mundo que está desmoronando, mas ser capaz de despertar, ou seja, de pensar além do apocalipse para focar na metamorfose do mundo. Aprender a viver no Antropoceno é aprender a viver sem medo e sem temor do que o futuro pode trazer, é aprender a viver com pura confiança e sem nenhuma segurança.
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Como viver e como sobreviver no Antropoceno? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU