A peregrinação artística de um tropicalismo psicodélico: para uma análise do LP Mutantes, de 1969. Artigo de Eduardo Guerreiro B. Losso

Capa de "Mutantes", de 1969 | Disco a Jato

08 Novembro 2021

 

"O tropicalismo foi a antropofagia periférica das metrópoles centrais, tanto de seus exotismos quanto de seus fundamentos pops, como o jazz, o blues, o country e o rock. Ele não existiria se não estivesse no momento psicodélico da música mundial, dado que pode ser visto, no final das contas, como um tipo singular de psicodelismo. Do ponto de vista 'gringo', digamos assim, o tropicalismo é um psicodelismo, por mais que nós brasileiros saibamos ser outra coisa e não é possível, de forma alguma, retirar essa impressão da audição de um estrangeiro de seus discos principais. Psicodelismo e tropicalismo, na música popular, são grandes exemplares daquilo que depois foi chamado de pós-modernismo cultural. Os Mutantes são, por conseguinte, o mais nítido e característico ponto de encontro entre o tropicalismo e o psicodelismo", escreve Eduardo Guerreiro B. Losso.

 

Eduardo Losso é professor adjunto de Teoria da Literatura do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ e coeditor da Revista Terceira Margem, do PPG-CL da UFRJ. É graduado em Letras, mestre e doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ, com estágio na Universität Leipzig, Alemanha. Entre os livros que organizou, destacamos Diferencia minoritaria en Latinoamérica (Georg Olms, 2008), O carnaval carioca de Mário de Andrade (Azougue, 2011) e Música Chama (Circuito, 2016). Ainda é autor de Renato Rezende por Eduardo Guerreiro B. Losso (EdUERJ, 2014).

 

Eis o artigo. 

 

Introdução


Os três primeiros LPs da banda de rock Os Mutantes são um feito único do rock em um país periférico. Há muitas boas realizações no rock latino-americano, contudo, é difícil achar alguma que faça frente ao melhor do centro estadunidense e especialmente inglês, da British invasion, dos anos 60. Os três primeiros discos dos Mutantes conseguiram tal reconhecimento, evidenciado nos anos 90 com os enormes elogios de Kurt Cobain, do Nirvana, e Sean Lennon, filho de John Lennon e Yoko Ono, que, por sua vez, é um dos maiores nomes da nova onda psicodélica do século XXI. Por conseguinte, Os Mutantes são o melhor e também mais reconhecido grupo de rock brasileiro no mundo.

 

 

A banda tem um papel central no tropicalismo, o grande movimento de renovação da MPB no final dos anos 60 e, como a MPB é fundamental na música brasileira, eles ganharam uma notabilidade que outros nomes do rock de sua geração não conseguiram alcançar. Seu reconhecimento dentro do Brasil está bem estabelecido, contudo, o que espanta é a parca bibliografia a seu respeito, especialmente a falta de trabalhos sérios de análise. Na crítica musical brasileira, abundam trabalhos sobre Caetano Veloso e Gilberto Gil, quase nada sobre Os Mutantes. O livro de Carlos Calado, A divina comédia dos Mutantes, de 1994, é uma ótima biografia e referência incontornável, porém, obedecendo aos limites de seu gênero, discorre muito pouco sobre a obra musical da banda e quase nada sobre seus aspectos formais. Outras biografias mais recentes tampouco darão conta dessa necessidade. Youtubers têm feito um trabalho válido de divulgação de LPs clássicos, porém, o que dizem sobre os Mutantes é sempre cópia de Carlos Calado. Há algumas dissertações e teses sobre a banda, mas nenhuma demonstrou algum trabalho mais consistente e relevante. Já escrevi um artigo que procurou diminuir o descaso (Losso, 2006, p. 74-91); o tempo passou e pouco foi feito desde então. Logo, o reconhecimento da banda é mais jornalístico e amadorístico do que qualitativamente crítico.

 

O primeiro disco dos Mutantes, de 1968, já é um feito artístico considerável junto de Rogério Duprat, especialmente devido ao trabalho minucioso e transbordante da primeira faixa, “Panis et Circenses”. As principais características da singularidade do trio paulista já se manifestam com vigor. No entanto, além da maioria das músicas não ser de autoria deles, algumas faixas são mais elaboradas, outras mais simples e o conjunto é oscilante. O segundo LP, de fevereiro de 1969, é que patenteia não só uma maioria de canções autorais como uma empreitada de grande porte, em que o trio e o arranjador estão no auge da fecundidade. Não à toa, Duprat recebe o troféu André Kostelanetz de melhor arranjador no 3º Festival Internacional da canção (FIC) de 1968 devido à última faixa do disco, “Caminhante noturno”.

 

No terceiro LP dos Mutantes, de 1970, A divina comédia ou ando meio desligado, a participação de Duprat diminui e a banda começa a ganhar mais autonomia. De qualquer modo, é inegável que tal parceria resultou numa das melhores obras do rock psicodélico do mundo; já os discos seguintes dos Mutantes, mesmo mantendo alto nível, vão reduzindo o fôlego escrupuloso para a abundância de ideias e variações internas da canção. Não há dúvida que um dos melhores feitos de Duprat enquanto arranjador esteja nesse disco, do mesmo modo, esse pode ser considerado o melhor trabalho dos Mutantes, daí minha escolha em examiná-lo.

 

 

A assimilação nacional do rock inicial dos anos 50, de Elvis Presley e Chuck Berry, ocorreu cedo e deu muitos frutos até a Jovem Guarda. Já a virada psicodélica não teve nenhum grande vulto representativo senão com Os Mutantes, que exploraram o slogan de ser uma sorte de Beatles tropical. O psicodelismo foi o momento em que o rock deixou de ser mais uma moda para se tornar a possibilidade, no universo pop, de transgredir seus próprios limites sempre tão estritos com uma abertura para experimentações construtivas de grande alcance, seja no plano contestatório e político, seja no plano do comportamento e da mentalidade, seja no plano artístico e musical.

 

O tropicalismo, por sua vez, foi a retomada, no contexto da música popular, do princípio antropofágico de absorver na periferia as novidades artísticas dos centros dominantes, afrontar visões nacionalistas puristas ou proibitivas e dar ao mundo uma leitura brasileira dos mais diferentes elementos em sincretismo, o que foi chamado na época de geleia geral. A crítica do tropicalismo segue, em geral, as coordenadas de Caetano de sua polêmica com as tendências nacionalistas antimetropolitanas e sua intervenção na linha evolutiva da música popular, porém, ela pouco ou nada examina da correlação entre tropicalismo e psicodelismo.

 

O rock psicodélico não introduziu um novo estilo fundamental reconhecível no repertório popular, ao contrário, ele assimilou outros estilos e ritmos de modo a deformá-los e reformulá-los com o avanço de aparatos eletrônicos de estúdio e uma abertura no rock para a variação orquestral da instrumentação. A expansão da consciência através das drogas e da busca espiritual tem como resultante estética a transformação do material utilizado segundo um princípio de alteração artificial criativa.

 

Basicamente, o que deflagrou a irrupção do psicodelismo no rock foi a emulação da cítara indiana na guitarra em bandas como The Yardbirds, The Kinks, The Byrds que, em seguida, levou ao emprego beatle da própria cítara e tabla em canções como “Love you to” e “Within you without you”. Canções como “Tomorrow never knows” e “Blue jay way” já são uma metamorfose vanguardista do modelo da música clássica indiana no uso ostensivo de técnicas deformadoras do estúdio de gravação. Podemos dizer que o psicodelismo estadunidense e, principalmente, inglês foi uma antropofagia executada pelos centros preponderantes do gosto exótico da música indiana e, logo em seguida, o psicodelismo se tornou apropriação de todo e qualquer estilo, ocidental, latino ou oriental.

 

 

Seguindo o raciocínio, o tropicalismo foi a antropofagia periférica das metrópoles centrais, tanto de seus exotismos quanto de seus fundamentos pops, como o jazz, o blues, o country e o rock. Ele não existiria se não estivesse no momento psicodélico da música mundial, dado que pode ser visto, no final das contas, como um tipo singular de psicodelismo. Do ponto de vista “gringo”, digamos assim, o tropicalismo é um psicodelismo, por mais que nós brasileiros saibamos ser outra coisa e não é possível, de forma alguma, retirar essa impressão da audição de um estrangeiro de seus discos principais. Psicodelismo e tropicalismo, na música popular, são grandes exemplares daquilo que depois foi chamado de pós-modernismo cultural. Os Mutantes são, por conseguinte, o mais nítido e característico ponto de encontro entre o tropicalismo e o psicodelismo. Entretanto, não é o único, pois os discos do Gilberto Gil de 1969, chamado de Cérebro Eletrônico, e Expresso 2222, de 1972, também são outro ponto de encontro importante. De qualquer modo, os três primeiros discos dos Mutantes em sua aliança com Duprat, nosso George Martin, são, portanto, um tropicalismo psicodélico, especialmente o segundo, o qual pode ser considerado, por sua vez, o nosso Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band tropical.

 

 

As faixas

 

Um obstáculo que dificulta a tarefa de qualquer um que se debruça sobre o disco sem repetir o já dito é a falta de uma ficha técnica detalhada. Rogério Duprat usou diversos instrumentos e Os Mutantes também recorrem a equipamentos específicos, especialmente devido às invenções de Claudio César, o chamado quarto mutante. Alguns são apontados por Calado (wooh wooh e teremim) e outros permanecem no escuro. Podem ser parcialmente rastreados por suposições razoáveis, mas vão permanecer na zona da incerteza, a não ser que os membros se disponham a rememorar detalhes um dia. Espero que o artigo seja um estímulo para tal.

 

A primeira faixa inaugura o disco em tom épico: a abertura de “1-Don Quixote” foi retirada da Aida de Verdi segundo Calado (Calado, 2012, p. 156), Sergio Dias o corrige dizendo que foi do filme Ben Hur (Tatini, 2005; Bay, 2009, p. 93). Uma percussão bélica (tímpano) em marcha, metais e uma multidão urrante se aproximam do ouvinte em volume crescente até a conclusão de um acorde ressonante e pratos. Segue-se algo completamente diferente: flauta, sino e um gemido de Rita Lee, como se relutasse em despertar. O coro mutante acompanhado de cordas começa a arrolar a letra cheia de aliterações numa atmosfera fantasista e, diante de pausa e suspiro, zombeteira: a novidade dos versos “Do Sancho o Quixote/ chupando chiclete” transgride a aura medieval assim como o delírio de Quixote colide com a realidade. Nesse momento, a mistura do personagem clássico e da moda jovem dessublimadora é escancarada. Quando entra a marcação da caixa da bateria, mal ela engrena, a multidão, que agora mistura cenário antigo com o festival contemporâneo, engole a instrumentação e dá lugar a uma guitarra wah wah. A letra é repetida com flautas e cordas ao fundo no dobro da velocidade, desafiando o fã com trava-línguas. Até aqui, a alternância da instrumentação épica orquestral com outra amena (sinos e flautas) conjuga uma textura introdutória muito sugestiva e devaneadora.

 

A partir desse momento, a canção introduz uma segunda parte instrumental de baixo, bateria e orquestra. Um momento notável é a longa virada de bateria reverberada no meio da seção, marca típica do rock psicodélico, que flexibiliza o ritmo várias vezes com ondulações percussivas deste tipo. Tal seção instrumental termina com um breve solo de guitarra resplandecente. Aliás, o som distorcido dela se confunde com os comentários estridentes do teremim ao longo da faixa e mesmo do disco. Quando a letra da canção chega à última parte “Vê, vê que tudo mudou [...]”, a marcha de uma harmonia descendente com baixo, bateria e guitarra limpa dá logo lugar ao coro em região aguda que descamba para o retorno dos metais da orquestra e ao segundo engolimento desorientador da multidão. Diz-se que tal abarcamento ocorreu devido a retirada de um trecho da letra censurado; aqui o que interessa são menos tais detalhes biográficos picantes do que a descrição e compreensão estética de seu efeito.

 

Depois de um trêmolo grave dos instrumentos, a banda se ausenta, um trecho dramático da orquestra conduz cordas e metais a se espiralarem. Uma curta pausa suspende tudo para exibir o rebaixamento banal da buzina do Chacrinha. Ela abre a última parte da canção, infantil, feirante e circense (tópico também característico do rock psicodélico), com uma mancha de vozes de rua soltas a brincar, seguidas de mais uns acordes de metais com pratos concludentes. Mais uma pausa curta (com os pratos ressoando) que resulta no encerramento: um violino enxerta um motivo da canção “Disparada”, de Geraldo Vandré, seguido de risadas galhofeiras dos irmãos Baptista.

 

 

A constante alternância drástica entre o sublime e o banal não elimina a prevalência quimérica: a presença de Dom Quixote na TV é a realização do sonho, a síntese da oposição irreconciliável entre realidade e delírio. Foi necessário descrever a sequência da abundante variedade da canção para corroborar a primeira ocorrência da maior qualidade deste disco: o esmero compositivo de segmentações mínimas da canção na ininterrupta entrada e saída de orquestra, banda, diferentes instrumentações, arranjos vocais e efeitos sonoplásticos. “Don Quixote” é um verdadeiro carnaval luxuoso de possibilidades empreendidas no curto tempo de uma faixa e o sentido geral do todo é a asserção da fantasia que incorpora seu presumível oposto, a banalidade e o humor. Por trás da carnavalização de “Don Quixote”, a intenção é transformar a percepção do real: dar ao disparate quixotesco a legitimação de uma realidade entranhada. Os Mutantes e Rogério Duprat incorporam fragmentação dos sketches de TV para dar-lhes uma espessura neles inexistente, assim como as vanguardas do início do século se apropriaram do molde da propaganda.

 

Em “2-Não vá se perder por aí”, uma menina levanta a voz pronunciando algo como “iaiii” (talvez ecoando o advérbio dêitico locativo do título; do mesmo modo, mais adiante, o acréscimo das vozes do trio da interjeição materna “aiai!”) e um risinho divertido “riririri”. O violão introduz o riff e logo quando o baixo e a bateria iniciam o primeiro compasso, paralisam, como um motor que não arrancou. Depois de uma pausa silenciosa, a menina repete o risinho. Dessa vez, a banda engrena; a guitarra provavelmente com distorção fuzz (própria dos princípios do rock dos anos 60) repete o riff com o violão.

 

 

Qual o sentido dessa interrupção e repetição? A estrutura da canção nos responde: ela é um country rock cujo tema está no aconselhamento ao jovem para não malograr na existência. O swing da batida representa o andar desengonçado, o vai e vem do jovem desnorteado, também patente na letra, cujo ritmo marcado em cada tempo joga com a orientação de avanço e recuo “vem vai vem”, da investida e do retrocesso. A introdução interrompida com a voz da menina figura, de forma extremamente inteligente, o lugar do jovem entre a criança e o adulto, a dificuldade de engrenar e ganhar autonomia. Como a letra reproduz o discurso dos pais aos filhos e sabe-se do quanto Os Mutantes são zombeteiros e possuem, inclusive, a função de servirem como reflexo identificatório de transgressão para os fãs, levanta-se a dúvida de até que ponto a música está ironizando aquilo mesmo que diz, isto é, como ela porventura inverte, a partir de determinados signos juvenis, no meio significante sonoro, a mensagem do significado. A própria voz caricatural, vinda de desenho animado, fornece a solução: ela exorbita o posto do canto ao retirar a gravidade do dito para o mundo do recreio, o que não significa invalidar o discurso. A mofa do adolescente relativiza o ensinamento do professor, porém não deixa de assimilá-lo. A canção guarda com astúcia a ambiguidade. O ingrediente semiológico do country com violão bluezeiro contribui para ela porque perfaz o entremeio do primitivo e do moderno. A bateria reverberada cintila o uso massivo do chimbau que frequentemente invade o conjunto (num momento até parece que há um overdub invertido) e na seção instrumental Os Mutantes optaram por uma sobreposição do solo do violino e do violão, o que redunda num enredamento sinuoso que, mais uma vez, figura o desnorteamento do destinatário da letra.

 

Nessa canção, começa a se delinear o que considero o assunto central do LP: o itinerário existencial do andarilho espiritual. Trata-se de um tópico que atravessa os séculos: do eremita no deserto de Santo Antão, passando pela Bildungsroman de Goethe, Stendhal, Balzac e Thomas Mann até chegar aos protagonistas dos romances de Hermann Hesse, orientalizados e pré-psicodélicos, há uma tradição e uma coerência nessa história que comparece no processo iniciático, digamos assim, desse disco. Pode parecer, à primeira vista, uma superinterpretação, porém, no seguimento da reiteração do motivo, ele vai se tornar mais perceptível. Se Dom Quixote é o personagem iludido cujo delírio chega à TV para encantá-la, o jovem atrapalhado da segunda faixa é quixotesco e precisa aprender a se estabelecer: “ir seguindo seu caminho /Sempre errando até um dia acertar”. A tentação do jovem é de se perder: o psicodelismo é a estética da errância, o sonho de Quixote. A dialética entre peregrinação e sabedoria é decisiva no universo psicodélico. Tais considerações talvez pareçam excessivas para uma faixa mais simples do que a primeira, mas contém, de fato, vasto alcance especulativo no cotejo com a totalidade.

 

3-Dia 36” contrasta com a anterior por ser lenta e encerrar um conteúdo grave, no duplo sentido da palavra. Fora a presença do tom-tom e do bumbo, a bateria está quase apagada, a guitarra sem distorção é lânguida, arpejada e faz um par com a preeminência do violoncelo, que alterna entre o mesmo glissando descendente junto à guitarra em dois acordes seguidos e a função de baixo. A novidade excepcional desta faixa está no uso de um efeito inventado pelo “quarto” mutante, o irmão Claudio Baptista, intitulado wooh wooh, que traga as frequências para baixo, em vez de oscilar, como é o caso do wah wah. A estrutura da canção, por ter a novidade do violoncelo e do efeito, eliminou a seção instrumental, normalmente presente nas outras, e desdobra uma letra desmantelada numa voz que passava pelo canal do órgão (solução de Claudio Baptista), feita do fluxo de consciência incoerente do eu lírico perturbado que esboça uma narrativa caótica da passagem dos dias (“Hoje é dia 26 [...] Não é mais dia 26 [...] Hoje é dia 36 [...] Não é mais dia 36”). A tópica do andarilho está nítida, em continuidade com a faixa anterior: “E andando, vê passando/ Tudo aquilo que errou”. O sentido da errância psicodélica, de indistinção onírica, também comparece: “Toda uma vida embaça o seu olhar”. A vaga presença erótica de uma mulher se mistura com impressões festivas de idas e vindas (também condizente com a faixa anterior) e de outro tópico que vai se repetir, o do rodeio (“Tudo alegre, indo e vindo/ tudo em volta a brilhar” e “O amor a faz girar”). Tais momentos extáticos se alternam a momentos entediantes “Não é mais dia 26/ tudo começa outra vez”. Precisamente no início, meio e fim da canção, o verso “Esquece, não pensa mais!” comparece. Ele parece ser uma espécie de instância superegóica da mente que deve negar o gozo alcançado e se resignar ao cotidiano.

 

Como se vê, toda a atmosfera é introspectiva e grave, logo, trata-se de uma verdadeira catábase cancional que promove níveis reforçados de aprofundamento psíquico.

 

“4-2001 (Dois mil e um)” é a faixa mais marcante de toda a banda e explicita seu principal modus operandi para a canção: o contraste entre as partes. Se Beatles raramente se serve desse procedimento (exceções: “A day of life” de Sgt. Peppers e “The Continuing Story Of Bungalow Bill” de The White Album), Os Mutantes fazem dele marca frequente, especialmente nesse disco e, se não compareceu nas duas canções anteriores, foi para manter o equilíbrio. A singularidade tropicalista e psicodélica mutante é precisamente a de alternar o rock (geralmente o rock dos anos iniciais) com outros estilos, que fazem o papel de componentes nostálgicos, de fontes puras para a colagem pós-moderna. No caso dessa faixa, o ouvinte se depara com o efeito de contraste mais extremo: o estilo sertanejo brasileiro e o rock pesado.

 

No contexto mundial, o country americano de “Não vá se perder por aí” não absorve tanto sentido de primitividade exótica quanto o do sertanejo, especialmente quando o sotaque é voluntariamente empregado cheio de variações dialetais gritantes. O camponês dos centros dominantes não é tão primitivo quanto a periferia da periferia, ao contrário, a country music é internacional, especialmente se ligada ao rock. A primeira parte da canção, que reúne viola caipira, chocalho e sanfona, é tocada pelos sertanejos Zé do Rancho & Mariazinha, dupla importante dessa tradição. A letra de Rita Lee e Tom Zé encena uma “vida” que supera o eu do emissor, sua “rota”, variação espacial do itinerário espiritual. Seu “grito no escuro” envolve sentido transcendente, pois, nos filmes de ficção científica, a vastidão sublime do espaço negro imenso é metáfora do inconsciente. O eu do astronauta é solto, “libertado” dos limites da mortalidade animal. Tal mensagem, dita pelos sertanejos, já sintetiza, dentro da primeira das partes contrastantes, o extremo entre o caipira e o herói futurista. Quando entra, de forma notavelmente brusca, o rock pesado se firma com um baixo (talvez com flanger) cheio de notas ligadas e o vocal de Rita canta dois versos, o de Arnaldo um, no quarto os dois se juntam; o modelo se repete mais uma vez, numa estrofe de oito versos.

 

Tal variação interna, dentro da parte roqueira, enuncia superpoderes: o astronauta se autoreproduz “na velocidade da luz”, supra-liricamente, a natureza o molda como soberano e a máquina soluciona seus problemas. Ele se apaixonou pela velocidade, se casou com os planetas; “calculo dentro do passo”, isto é, controla o seu destino matematicamente; seu corpo é maquinal (“meu sangue é feito de gasolina” e “meu peito é de ‘sar’ de fruta”, o efeito mágico da ciência do medicamento fervente na água é utilizado como imagem de avanço). O peso da bateria, seu ritmo flexível, cheio de viradas, e do baixo opulento fundamenta a soberania desse verdadeiro Quixote de sucesso, herói supremo “parceiro do futuro”. A segunda parte termina com uma onomatopoese do wah wah efetuada pelo coro mutante. Tal piscada de olho para o fã se repete na transição para o solo de guitarra de “Ando meio desligado”, o que adensa a dialética entre o humano e o maquinal: assim como o ser humano mimetiza a natureza e os animais, para se tornar poderoso mimetiza os efeitos eletrônicos e produz um curto-circuito metalinguístico do estilo psicodélico.

 

Depois do segundo ciclo entre a primeira e a segunda parte, a banda se retira e ouve-se um interlúdio ostensivamente experimental, feito de coro de vozes assustadas reverberadas e ecoadas, ao modo de filme de terror, vibratos de teremim e notas aleatórias de teclado representando o espaço sideral. A terceira parte abertamente alucinógena radicaliza o efeito de contraste já existente nas duas anteriores. O momento sertanejo retorna, agora cantando a quarta e última estrofe, ao sabor de comentários euforizantes (Mariazinha: “Tá ficando bão, né?”, Zé do Rancho: “Barbaridade, uai!”), que se torna a deixa para a quarta parte.

 

Esta é uma síntese do sertanejo e do rock. Os Mutantes, como foi dito, produziram uma maioria de canções de contrastes entre as partes, portanto, essa não é uma característica singular da canção. Ela somente radicaliza o procedimento. O que ela tem de singular, contudo, está justamente na síntese, que, além do mais, contém um quarto elemento: um twist com guitarra wah wah, que repete o clássico “baptchuba”, abrasileiramento do “bop shuop, m’bop bop shuop”. O twist iniciou a dança dos primeiros rocks, cujas sílabas não-lexicais, por sua vez, são herança do doo-wop de coros americanos negros dos anos 40. O twist foi iniciado por Hank Ballard & The Midnighters em 1958 e popularizado por Chubby Checker em 1960. No mesmo ano, um grupo de mulheres negras intitulado The Shirelles lançou “Boys”, canção que depois será executada no primeiro álbum dos Beatles em 1963.

 

Em outras palavras, a síntese entre sertanejo e rock pesado, que naquele momento é o rock contemporâneo, está no rock primordial, que já possui conotação nostálgica. Nesta canção tão basilar dos Mutantes está explícito o fundamento do rock primordial para a banda. Os Mutantes são um desdobramento ultra-psicodélico de uma base tradicional do rock que sempre está presente (mais do que na fase madura dos Beatles, por exemplo) e nunca será abandonada. As quatro partes da canção podem, por conseguinte, ser resumidas num esquema básico. A primeira parte significa a base cancional “primitiva” brasileira; a segunda o rock pesado contemporâneo; a terceira a trip alucinógena misteriosa e transcendente; a quarta é a síntese que soluciona os contrastes anteriores com um retorno à fonte do rock.

 

5-Algo mais” é o único hard rock íntegro do disco. Vale dizer que Os Mutantes demoraram um pouco para chegar neste estilo que foi iniciado por Jimi Hendrix e Cream e só foi solidificado com Deep Purple e Led Zeppelin. No terceiro disco, a primeira parte de “Quem tem medo de brincar de amor” e “Jogo de calçada” representam melhor a assimilação dele. “Algo mais” é uma primeira incursão nesse sentido, de todo modo, brilhante. O carimbo da qualidade mutante está na colaboração instrumental do riff de piano de Arnaldo Baptista com resposta do acorde de Sergio Dias: um compósito sofisticado, simples e único ao mesmo tempo. No refrão, a ordem entre eles se inverte: a guitarra fuzz toca três notas descendentes e o piano (mais adiante teclado) responde com um motivo bluezeiro. No final, o coro repete o acorde sus4 seguido do acorde maior, efeito harmônico dileto da banda neste disco. Numa curta parte de transição a guitarra executa uma escala descendente rápida, bateria no tom-tom, Rita cantarola e o teclado e a caixa da bateria batem juntos três vezes, em seguida o vocal e a banda passam por um cromatismo que destoa do otimismo geral da letra (feita para uma campanha publicitária da Shell), dizendo “Giro aflito/ beijo e grito”, isto é, repetindo a ideia de rodeio. A letra em geral associa a liberdade jovem da sensação de voo e passeio com a posse do carro, algo bem propagandístico, mas se coaduna com o motivo da andança, do trânsito, que motiva o imperativo “acelere a vida”, “a vida tem algo mais para dar”.

 

Em “6-Fuga n. II” o motivo da viagem encontra um momento especialmente dramático. A música de Rita Lee buscou reler “She’s living home” do Sgt. Peppers dos Beatles que, curiosamente, também é a sexta faixa do disco: simetria notável. A canção inglesa trata da fuga de casa de uma filha insatisfeita. A versão mutante assume o ponto de vista da protagonista feminina, feito também surpreendentemente feminista. Esta é uma típica canção contrastante, em que a primeira parte é feita de harpa, baixo, conga e sino, instrumentação leve, e o refrão é uma espécie de gavota, de banda e orquestra, primeiro com cordas e depois metais. O verso do refrão é “pra onde eu vou? aahh”: uma pergunta genuinamente existencial com acréscimos românticos vagos, aliás, essa é outra característica mutante: raramente produzir canções românticas, mas espalhar temperos desse tipo na maioria das letras.

 

7-Banho de lua” segue o que afirmei acima sobre a base no rock primordial: é uma versão mutante de uma canção de trajetória bem marcante. Lançada primeiro pela cantora italiana Mina, “Tintarella di luna”, em julho de 1959, em seguida, com letra em português, foi transposta pela precursora do rock no Brasil Celly Campelo, como “Banho de lua” em janeiro de 1960.

 

 

A introdução é faustosamente experimental: ruídos de baixo, tom-tom, teremim histérico e uma variação instável de aumento e diminuição de volume da guitarra sobrecarregada de efeitos. A banda ensaia engrenar um ritmo e o desfaz de novo (repetindo o padrão da introdução de “2-Não vá se perder por aí”) nesta típica introdução psicodélica sem medida de tempo. A canção tem um ritmo ligado ao twist e pode ser considerada um Brill Building, rock pop do início dos 60 estrelado por cantoras jovens, isto é, uma versão feminina do rock, o que não deixa de ser curioso. A presença da guitarra fuzz de Sergio é a grande deformação contemporânea da canção, além, no final, dos overdubs de pratos de bateria invertidos e acordes cromáticos que provocam sensação de vertigem. Em outras palavras, trata-se de uma clara releitura psicodélica do rock básico.

 

8-Rita Lee”, por sua vez, é um caso raríssimo de canção com o nome de um dos membros da banda. Dentro do motivo do itinerário espiritual, a letra demonstra a andança (“Rita Lee foi passear”) da menina mutante para encontrar seu par. Inicialmente suas mãos estão frias, é infeliz; na última estrofe o motivo do rodeio se expõe (“Rita Lee está a girar/ véu, arroz, Igreja a rodar”), suas mãos não estão frias e ela encontrou seu par. A canção segue o modelo da faixa infantil e leve “Ob-La-Di, Ob-La-Da” dos Beatles, quer dizer, é um ska com tack piano (piano típico de saloon de velho oeste americano) e tempo bem marcado por tônica do acorde e oitava. No refrão, o coro emite uma voz caricatural de criancinha, algo como os sete anões da Branca de Neve, mais uma ocorrência do procedimento depois de “2-Não vá se perder por aí”. Com esta oitava canção, fecha-se um ciclo de canções (junto de “6-Fuga n. II” e “7-Banho de lua”) que ocupam a parte central do disco e são encaminhadas ao público feminino jovem.

 

Em termos estritamente psicodélicos, “9-Mágica” é um dos maiores feitos da banda tropicalista. Nela a tópica do rodeio é central: consiste numa cantiga de roda brasileira totalmente a serviço de um propósito atordoante. A faixa começa com uma passagem sem medida temporal com um longo glissando descendente de harpa, guitarra wah wah, risos de Rita e talvez de Arnaldo num ambiente cósmico de vibrato e delay. O violão entra logo com o riff decadente bem blues de três notas respondido pelo glissando descendente de harpa (agora dentro do tempo) e duas batidas graves de bateria, provavelmente surdo, e o teremim com forte trêmolo, talvez incluindo wah wah.

 

Quando um dos irmãos canta “Gira menina na palma da mãaaaaooo”, a última palavra é um longo, deslumbrante e soberbo glissando descendente de vocal e guitarra distorcida, seguido de um prato ressonante. Como vários elementos demonstram direcionamento declinante, constata-se na canção uma outra modalidade de catábase do aprofundamento vista em “Dia 36”. O ambiente é extremamente ritualístico, preenchido ocasionalmente por comentários soltos de guitarra wah wah e a singular cor timbrística exótica da tuba. Ela contribui para o andamento ternário subdividindo-o também em sequências de três, o que sugere imaginariamente algo como a marcha de um animal corpudo, um elefante, por exemplo. A presença peculiar da tuba é mais um dos trunfos de Duprat que deveriam estar na ficha técnica e que, por isso mesmo, ninguém comenta, assim como o tack piano de “Rita Lee”. Aliás, Calado fala de violoncelo em “Mágica” (Calado, 2012, p. 157) e não em “3-Dia 36”, o que é um erro, talvez por confusão entre as duas faixas. Esse tipo de equívoco é repetido por youtubers e mesmo pesquisadores sem verificação pessoal.

 

Depois de uma virada de bateria, a segunda parte é, mais uma vez, bem contrastante com toda a pompa ritual da primeira: violão e caixa de bateria, bem marcados no tempo, firmam uma base para um raro destaque da linha de baixo de Arnaldo, enquanto a letra liga a ideia de ciranda inicial com o “portão de ouro” da “máquina do tempo” e confessa a transformação voluntária da ciranda popular brasileira em portal para viagem no tempo, isto é, o giro como fórmula mágica de uma ficção científica. Em seguida, um ritmo mais flexível de rock pesado, com guitarra wah wah, teremim e o coro cantando “a rodar”, com vozes alternando oitavas, simula o giro já numa batida roqueira. A transição para a primeira parte repete o trecho sem medida de risos e ambiência aquática para voltar à primeira parte. Nesse momento o ouvinte se dá conta que a primeira parte é o refrão, isto é, a estrofe que se repete, e a segunda, roqueira, é a variação. Tal inversão estrutural funciona para avigorar o clima ritualístico predominante da canção, que é propriamente circular.

 

Depois da segunda repetição da segunda parte, dois acordes cromáticos se alternam e o ritmo se acelera cantando o refrão e, bruscamente, vai para o final da segunda parte: uma mistura resumida, e meio caótica, desfragmentada, de todo o percurso percorrido. A última parte surpreende: entra o riff principal de “(I Can't Get No) Satisfaction” de Rolling Stones. Para além do contraste existente entre as duas partes, o conjunto delas é ainda mais divergido dessa terceira parte. Se a ciranda possui o feitio infantil, mesmo que já tenha sido profanada pelas veementes deformações psicodélicas, a banda ainda pretendeu enxertar a malícia final ao antropologizar o ingrediente báquico dos Stones.

 

Vale ressaltar que o uso do giro como forma de atontar remete ao ritual Sama do sufismo, corrente contemplativa do islã. Nele, os dervixes atuam na dança giratória sagrada para atingir uma espécie de embriaguez espiritual. Os Mutantes, de certo modo, criaram uma versão musical psicodélica brasileira cirandeira do Sama sufi, uma mágica que devorou ciranda e Stones para se converter num novo tipo de rodopio inebriante místico. O feito criativo é considerável; mais uma proeza mutante que passou despercebida em meio às várias lendas e histórias menos significativas que o achado artístico propriamente dito.

 

10-Qualquer bobagem” é uma das raras canções românticas da banda, cheia de imperativos ao destinatário. Estiliza um vocal gaguejado, que se desdobra, no final, num desencaixe proposital dos instrumentos. O trompete que Calado diz vir de “Penny Lane” (Calado, 2012, p. 157) dos Beatles entra atrasado, o órgão eletrônico improvisa arbitrariamente e a consequência é uma bela desagregação geral.

 

Observe-se que, em todo o disco, cada canção resguarda uma forte identidade, oferece sempre uma ideia nova especial, sem se confundir com as outras. Não há espaço no repertório mutante para repetição de fórmulas. O procedimento fundamental deles, em boa parte das canções, de partes contrastantes é uma marca infalível da banda, no entanto, ele é desenvolvido sempre com novo material, estrutura variada e diferentes instrumentações.

 

A concorrência com outras bandas psicodélicas inglesas como Pink Floyd, Pretty Things, Tomorrow é dura, porque constituem o suprassumo da vanguarda pop e, mesmo assim, a banda tropicalista se ombreia a elas com toda segurança.

 

O itinerário mutante termina com uma faixa cujo nome confirma a importância nuclear da tópica da jornada espiritual: “11-Caminhante noturno”. Assim como a primeira faixa, “1-Don Quixote”, a última comporta uma enorme variedade de acontecimentos, na verdade, supera-a, até por ser a canção mais longa do LP, de 5:11. Metais barrocos em contraponto abrem a canção com um excesso de vozes superpostas que se unificam no acorde de ré maior. Metais dão lugar à base de baixo e guitarra a alternar acorde sus4 e maior numa marcha palaciana em tempo ternário, sob os quais uma trompa anuncia a entrada do coro mutante. A letra “No chão de asfalto” é ilustrada por sons de passos; a palavra “eco” ecoa (mais uma astúcia metalinguística), dito “um sapato”, metais ressoam. A pompa barroca enobrece o protagonista, o caminhante noturno. Uma voz de alto-falante bem estridente solta um daqueles fragmentos eróticos, as cordas e o coro esboçam uma valsa com sílabas não-lexicais “laraia raraia” em que, finalmente, a bateria e o refrão engrenam: “vai, caminhante, antes do dia nascer/ Vai caminhante, antes da noite morrer”. O conselho do emissor para o caminhante se apressar durante a madrugada se confunde com uma torcida para ele obter algo. Curiosamente, agora está mais nítido o quanto todas as letras sempre descrevem uma situação em movimento, seja no rodopio, em “Mágica” e outros momentos isolados, seja no passeio (à pé, em “8-Rita Lee” ou de carro, em “5-Algo mais”), seja na caminhada. Em outras palavras, o mutante nunca está parado: é um ser dinâmico.

 

A segunda estrofe já é uma terceira parte: a bateria pausa, o coro emite um ruído lábio-lingual e o baixo executa um esquisito ostinato de cinco notas com três delas em síncope. Metais dramáticos, bem dupratianos (lembram “Construção” de Chico Buarque), fragmentos de conga e a sonoplastia do passo criam um cenário de cinema explicitado pela letra, cheia de sugestões cênicas, contudo, menos narrativas do que poéticas. Repete-se a rodo que esta canção é cinematográfica, mas eu prefiro vê-la como videoclíptica. Esta parte é particularmente aquática, úmida, cavernosa, ao que tudo indica retomando o gosto pela fantasia das texturas de “1-Don Quixote”, o interlúdio instrumental de “4-2001” e a introdução e transição de “9-Mágica”.

 

 

A quarta parte é instrumental e substitui o tempo ternário para o quaternário: metais percorrem uma melodia melancólica em polifonia com o coro, que toma a dianteira e introduz um momento especial de emulação de passagens manifestamente psicodélicas dos Beatles. Primeiro, é possível reconhecer uma mímese da marcha ferroviária, digamos assim, na introdução de “Baby, You're A Rich Man” de Magical Mystery Tour. Em seguida, enquanto um solo de guitarra se desenrola, ruídos vocais de trem se introduzem mimetizando os chiados de “Lovely Rita” de Sgt. Peppers, mas de modo diferente, porque uma voz parece imitar mesmo é a cavalgada do cavalo e outra o chiado do trem, isto é, Os Mutantes estão retirando a ideia dos Beatles, mas embaralhando os elementos. Logo adiante, emulam outro trecho: os bramidos tribalistas do final de “I am the warlus”, também de Magical Mystery Tour (“Umpa, umpa, stick it up your jumper”). Logo, há nesse trecho uma concentração de diversos trechos semelhantes dos Beatles, quase como se a banda paulista quisesse mostrar seu conhecimento preciso, coerente e selecionado das onomatopoeses dos garotos de Liverpool.

 

No seguimento de outra estrofe, mais uma novidade: a bateria produz num novo tipo de marcha ferroviária valsada, retornando ao tempo ternário. Os metais, em dois compassos, seguem-na atrasados, na síncope, para depois entrar corretamente. Esse detalhe é minúsculo, mas não deixa de ser impressionante: ele mimetiza o arranque do trem na estação, em outras palavras, mais um toque genial de Duprat. Essa parte é breve, conduz para o refrão quaternário, muda para o momento aquático, depois para a marcha ferroviária, tudo em mais uma sequência resumida e sintética de todas as partes, como no final de “9-Mágica”.

 

A última parte também se assemelha à “Mágica”: introduz um ritmo vindo claramente de “Sympathy for the Devil” do Rolling Stones, recentemente lançado em dezembro de 1968 (o disco dos Mutantes é de fevereiro de 1969). Nos Stones, ele é tocado com conga, um tempero exótico cubano; nos Mutantes, é uma tarefa para tom-tom de bateria, pandeiro e outros elementos (cordas, vago improviso da guitarra etc.). Neste momento de coda e despedida do ouvinte, o coro mutante repete somente a última palavra do disco, que condensa todo o tópico da caminhada espiritual e nunca chega ao fim: “vai, vai, vai, uuuu”. Nos últimos momentos uma voz distorcida repete “Rota de colisão! Perigo! Perigo! É proibido proibir!” e o coro da plateia do FIC grita “bicha!”. Como se trata de uma mancha ruidosa conclusiva, o ouvinte dificilmente identifica o que é dito.

 

 

O conjunto dos fatores é significativo: o pacto do diabo dos Stones tem nexo com o perigo de se expor em público no pior ano do sistema ditatorial, ao mesmo tempo em que a plateia de esquerda dos festivais reage com preconceito às inovações dos tropicalistas. Os Mutantes repetem o dito de maio de 68 recuperado por Caetano, isto é, produzem uma devoração da devoração. Diante de todos esses obstáculos num meio obscuro, o coro instiga o caminhante noturno a avançar, não parar nem retroceder, ao contrário do “vai vai vem” instável, do ensaio de avanço e recuo de “2-Não vá se perder por aí”.


Jornada jovem

 

Agora é possível entender o processo da jornada espiritual jovem no decorrer do LP. Em “1-Don Quixote”, o sonhador aparece na TV e cruza o sublime com o banal, o clássico com a moda. “2-Não vá se perder por aí” encena um jovem desorientado que é aconselhado em seus ímpetos e freios e, diferentemente de Quixote, precisa lidar com a realidade. “3-Dia 36” aprofunda o exame das dificuldades e enceta uma vasta catábase introspectiva que opõe prazer e repressão. “4-2001”, ao contrário, é operada por um verdadeiro Quixote de sucesso, um cavaleiro futurista: o astronauta libertado superpoderoso, síntese do mais primitivo e mais avançado. “5-Algo mais” também ostenta a vitória da liberdade do jovem na posse do carro. “6-Fuga n. II” é o outro lado dessa leveza: manifesta o conflito entre jovens e adultos numa menina fugida de casa, que empreende uma viagem, teme os perigos, assume as ilusões e se pergunta sobre seu destino. “7-Banho de lua” retrocede ao rock primordial em um lírico olhar feminino sobre a força da magia do amor figurada pela lua e seu clareamento estético; daí, o jogo entre natureza e artificialidade se desdobra na extrema deformação formal da versão psicodélica, o que é uma agressão artística do jovem atual frente à geração anterior. “8-Rita Lee” é uma integrante da banda tornada personagem que busca encontrar seu par, saindo do estado de isolamento e infelicidade para o de encontro e felicidade. “9-Mágica” mistura ciranda infantil com experiência extática alucinógena figurada pela máquina do tempo de ficção científica e centraliza o tópico do rodeio. Em “10-Qualquer bobagem” um gago discorre imperativos para amada e, na estilização da gagueira, a banda acompanha os retardos vocais com uma deleitosa desagregação temporal dos componentes da engrenagem cancional e reflete algo do impasse entre impulso e freio de “2-Não vá se perder por aí”. Por fim, “11-Caminhante noturno” é o derradeiro peregrino que, ao enfrentar os perigos da madrugada deve avançar sem parar, sem retrocessos, “antes da noite morrer”. Numa leitura alegórica, a noite pode ser vista como a própria juventude diante de um mundo que desafia as inércias conservadoras da direita e da esquerda mas, de qualquer jeito, é dominado por uma ditadura.

 

O disco percorre uma variedade de figuras e acontecimentos musicais, porém, mesmo assim, podemos subdividir em três seções constituintes principais. A primeira parte, da faixa 1 a 5, introduz os conflitos determinantes: a oposição entre sublime e banal, avanço e recuo, erro e sucesso, prisão e liberdade. A segunda parte, da faixa 6 a 8, se concentra no olhar e nas preocupações do público especificamente feminino. A terceira parte, da faixa 9 a 11, radicaliza os extremos e enfrenta os impasses. Em termos de estrutura, outra divisão se impõe: as faixas uniformes são “2-Não vá se perder por aí”, “3-Dia 36”, “5-Algo mais” e “7-Banho de lua”; as contrastantes são “6-Fuga”, “8-Rita Lee” e “10-Qualquer bobagem”; as hiper-contrastantes são “1-Don Quixote”, “4-2001”, “9-Mágica” e “11-Caminhante noturno”. As faixas que apresentam elementos infantis são “1-Don Quixote”, “2-Não vá se perder por aí”, “8-Rita Lee” e “9-Mágica”; as mais sérias são “3-Dia 36” e “11-Caminhante noturno”. Algumas faixas apresentam particularidades timbrísticas instrumentais: o violoncelo de “3-Dia 36”, a harpa em “6-Fuga n. II” e “9-Mágica”, a tuba também em “Mágica” e o trompete em “10-Qualquer bobagem”. O teremim de Rita se tornou uma presença quase constante.

 

Quanto às intertextualidades, “1-Don Quixote” cita “Disparada”, de Geraldo Vandré; “4-2001” retoma o “baptchuba” twist, sucesso entre 1958 e 1963; “7-Banho de lua” é uma segunda versão de “Tintarella di luna”, da cantora italiana Mina, lançada em julho de 1959, que foi transposta para o português pela precursora do rock no Brasil Celly Campelo como “Banho de lua” em janeiro de 1960; “8-Rita Lee” segue o modelo de ska com tack piano de “Ob-La-Di, Ob-La-Da” do The White Album dos Beatles; a última parte de “9-Mágica” contém o riff principal de “(I Can't Get No) Satisfaction” de Rolling Stones; na seção instrumental de “11-Caminhante noturno” há diferentes emulações reconfiguradas de onomatopoeses de “Baby, You're A Rich Man” e “I am the warlus” de Magical Mystery Tour e “Lovely Rita” de Sgt. Peppers.

 

No ponto de encontro entre tropicalismo e psicodelismo, Os Mutantes e Rogério Duprat geraram uma obra magnífica sem deixar de ser zombadora, sublime sem deixar de ser banal, densa sem deixar de ser acessível. Minha análise procurou destrinchar tal densidade aberta ou disfarçada. Se acertei ou não, cabe ao leitor decidir; necessário é a crítica encarar o desafio mutante e levar mais a sério a imensa riqueza e preciosidade que o seu legado representa para o rock mundial.

 

Bibliografia

 

BAY, Eduardo Kolody. Qualquer bobagem: uma história dos Mutantes. Universidade de Brasília, dissertação de mestrado, 2009.

CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. São Paulo: Editora 34, 2012.

ECHARD, William. Psychedelic popular music: a history through musical topic theory. Bloomington: Indiana University Press, 2017.

JULIEN, Olivier (Org.). Sgt. Pepper and the Beatles: it was forty years ago today. London: Ashgate, 2008.

LOSSO, Eduardo Guerreiro B. Elogio à megalomania pop: culto do eu e delírio auto-irônico na “Balada do Louco”, dos Mutantes. Cultura Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, ano 1, n. 1, nov. 2006, p. 74-91.

TATINI, Giuliana. Entrevista com Sérgio Dias. “Astronauta libertado”. Revista Trip. Edição n. 116, São Paulo, 2005.

 

Discografia

Mutantes. Mutantes. Brasil: Polydor, 1969.

 

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