Governadores cedem a interesses de produtores rurais e bloqueiam ou dificultam acesso a dados públicos que poderiam apontar quem está derrubando a floresta ilegalmente.
A reportagem é de Fernanda Wenzel, Pedro Papini e Naira Hofmeister, publicada por ((o))eco, 27-10-2021.
Na complexa tarefa de manter a Amazônia em pé, tão importante quanto ter um plano de combate a incêndios florestais é ampliar a transparência de dados ambientais. Quem sustenta essa tese é o Banco Mundial, que colocou entre os pilares de um contrato de empréstimo milionário concedido ao Mato Grosso, em 2019, a obrigatoriedade de haver acesso público a informações do Cadastro Ambiental Rural – sistema que revela ao cidadão se uma propriedade está cumprindo o Código Florestal ao mostrar as porções da terra dedicadas à produção e à preservação ambiental.
A transparência também vem sendo foco de cobranças cada vez maiores de investidores interessados em garantir que seus negócios não estimulam o desmatamento. Por isso, se tornou uma das promessas do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, criado por governadores da Amazônia para atrair recursos financeiros e ocupar o vácuo deixado pelo governo federal na área ambiental.
“A disponibilidade e transparência das informações beneficiarão governos subnacionais e locais, agentes financeiros e econômicos, iniciativa privada, organizações sociais e populações locais”, justifica o plano conjunto dos estados.
Mas um levantamento realizado pelo ((o))eco mostra que a prática ainda está distante do discurso. Entre os nove estados integrantes do consórcio e abrangidos pelo bioma amazônico, um (o Tocantins) não disponibiliza nenhuma das informações relevantes para o controle público sobre a política ambiental e o combate ao desmatamento, enquanto dois (Amapá e Acre) disponibilizam apenas uma. O Maranhão, governado por Flávio Dino (PCdoB) – presidente da iniciativa interestadual – publica apenas dois desses conjuntos de dados. Amazonas, Roraima, Rondônia e Pará estão numa faixa intermediária de transparência, com quatro bases que podem ser consultadas pela sociedade.
Mesmo o estado que está mais avançado, Mato Grosso (com cinco informações abertas), mantém lacrada uma informação-chave para o controle do desmatamento: as Guias de Trânsito Animal (GTA), documento essencial para o controle da cadeia da carne, atividade que responde por 90% das derrubadas na Amazônia. A razão, apontam especialistas, é a pressão do agronegócio por manter em sigilo dados que poderiam ampliar o controle social sobre atividades potencialmente desmatadoras.
“A exposição ampla das GTAs tornaria muito difícil ocultar problemas ambientais. A falta de transparência gera, sem dúvida, um aumento do descontrole do desmatamento”, critica o procurador do Ministério Público Federal, Ricardo Negrini, que atua no Pará.
A análise do ((o))eco sobre transparência ambiental levou em consideração seis itens essenciais para o planejamento de ações de fiscalização e a manutenção da floresta em pé. São dados de licenças, multas, embargos, autorizações de supressão vegetal, guias de trânsito animal e informações sobre a conformidade ambiental de fazendas e de seus proprietários (detalhes no box).
“Na construção de política pública, se a gente não tem um dado preciso é muito difícil traçar um plano. Precisamos saber exatamente onde e por quê o desmatamento está ocorrendo”, explica Taciana Stec, bióloga coordenadora da equipe de dados da plataforma Política Por Inteiro, que monitora atos oficiais dos poderes executivo e legislativo.
Apenas informações geradas e armazenadas por governos estaduais foram levadas em conta, excluindo, por exemplo, licenças, multas ou embargos emitidos por órgãos federais ou municipais. No caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR), só foram considerados transparentes os sistemas que permitem a identificação do proprietário do imóvel (veja o box abaixo).
Entre todos os estados, o único que reconhece o problema da transparência é o Acre: “É fato que para atendermos a transparência atualmente exigida pela legislação de acesso às informações ambientais, há necessidade de novo sistema, com as especificidades que atendam o anseio da sociedade referente a informações atualizadas da área ambiental”.
O Maranhão informou que seu site está em manutenção e a impossibilidade de acesso é temporária. A íntegra dos esclarecimentos de todos os estados pode ser lida aqui. Amapá, Roraima, e Pará não responderam nossos questionamentos.
O licenciamento ambiental é obrigatório para qualquer empreendimento que utilize recursos naturais ou tenha potencial poluidor. A transparência no processo de licenciamento permite à sociedade verificar o impacto ambiental do empreendimento, suas condicionantes e se as licenças estão em dia.
São os autos de infração emitidos pelos órgãos de fiscalização ambiental dos estados. Se tornadas públicas, oferecem métricas para o cidadão avaliar o desempenho das equipes de fiscalização, descobrir quem são os infratores, quais as irregularidades e onde elas ocorrem.
O fazendeiro que cometeu um crime ambiental pode ter a área embargada pelos órgãos de fiscalização, quando o uso dessa parte da propriedade para a produção fica vedado até que a vegetação se regenere. De posse destas informações, frigoríficos podem evitar comprar gado criado em áreas embargadas, e a sociedade fiscalizar se o embargo está sendo respeitado.
Nem todo desmatamento é criminoso: o estado pode autorizar a remoção de vegetação nativa através de uma ASV, configurando o desmatamento legal. Sem estes dados, é impossível separar o desmatamento legal do ilegal.
O CAR é um registro obrigatório a todos os imóveis rurais. Nesse documento constam o nome do dono do imóvel e informações como as áreas de proteção ambiental e de reserva legal, dados essenciais à responsabilização dos desmatadores. O governo federal possui uma base centralizada de CAR, mas que não informa o nome do proprietário. Daí a importância de os estados disponibilizarem bases completas.
As GTAs são documentos que registram toda a movimentação de um lote de bois, do nascimento ao abate. Se fosse público, esse documento permitiria eliminar da cadeia da pecuária os produtores que desmatam ilegalmente.
Desde os anos 1980, a dinâmica de desmatamento na Amazônia acompanha o avanço da pecuária no bioma. Não é à toa que as curvas nos gráficos de perda florestal e área de pasto são praticamente idênticas.
Muitas vezes, o gado entra como uma etapa no processo de grilagem de terras, explica Paulo Barreto, pesquisador do Imazon. “O grileiro desmata e coloca gado para ocupar a área enquanto espera a terra valorizar”. Outras vezes, o objetivo é realmente abastecer os frigoríficos estabelecidos na Amazônia. “As políticas que facilitam a grilagem de terras estimulam parte dos fazendeiros a migrar para novas fronteiras agrícolas, ao invés de melhorar os pastos degradados nas suas propriedades. Em 2018, havia cerca de 95 milhões de hectares de pastos degradados no Brasil, mas os fazendeiros continuaram desmatando novas áreas”, afirma o pesquisador.
No ranking estadual, as três unidades da federação que detém os maiores rebanhos da Amazônia Legal são também as que perderam maiores extensões de floresta. Apesar disso, nenhum dos nove estados do bioma divulga as Guias de Trânsito Animal (GTA), medida que poderia ampliar o controle social sobre a atividade. “A falta de transparência da GTA é resultado da pressão do setor rural”, assegura Barreto.
A GTA é emitida sempre que um lote de animais é transportado de uma fazenda para outra ou de uma fazenda para o frigorífico, identificando quantidade, origem e destino do gado. O documento, obrigatório até para transações feitas entre propriedades do mesmo dono, nasceu com uma função sanitária: rastrear o caminho do boi na hipótese de aparecimento de uma doença contagiosa.
A mesma lógica poderia ser aplicada ao controle ambiental, recompondo o caminho do gado até o frigorífico e verificando se alguma das fazendas por onde ele passou teve desmatamento ilegal – um animal pode passar por até dez propriedades entre o nascimento e o abate. Governantes e pecuaristas alegam que abrir as GTAs iria expor sua estratégia comercial, ideia que é rechaçada pelo MPF, que desde 2009 cobra, sem sucesso, a abertura dessas informações à sociedade. “A falta de transparência da GTA é absolutamente injustificável”, lamenta Negrini. No Pará o caso foi parar na Justiça Federal, onde ainda aguarda julgamento.
Desde 2009, quando assinaram os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs da Carne) com o MPF do Pará, várias indústrias com plantas de abate na Amazônia se comprometeram a monitorar a conformidade ambiental de seus fornecedores diretos e indiretos. Mas o controle dos indiretos nunca saiu do papel, e o sigilo da GTA é a principal justificativa das empresas para a demora.
O lobby do agronegócio também está prestes a derrubar outra tentativa de ampliar a transparência no Pará, que é líder do ranking de desmatamento há quinze anos. A plataforma Selo Verde – que usa informações da GTA e do CAR para mostrar se determinada fazenda teve desmatamento ilegal ou se comprou gado de outra propriedade nesta condição – gerou um levante de produtores contra o governador Helder Barbalho (MDB), que agora está avaliando voltar atrás e restringir o acesso às informações. Questionado pelo ((o))eco, o governo do Pará não se manifestou.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, alguns estados disseram que disponibilizam as informações – em alguns casos, inclusive em portais de transparência. O problema é que os dados só podem ser acessados mediante cadastro prévio, o que contraria o conceito de publicidade como regra no poder público, previsto na Lei de Acesso à Informação.
É o caso do Tocantins, que afirma que “todas as informações em relação a planejamento e ações executadas pela Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos estão disponíveis no site”, mas solicita cadastro para quem os consulta. Outra falha de transparência do estado é disponibilizar consulta completa ao CAR, contendo o nome do dono do imóvel, apenas para quem sabe o CPF e data de nascimento do proprietário. A situação é similar na consulta de Rondônia, onde o nome do proprietário também é mantido em sigilo — nos dois casos, os sistemas não foram considerados transparentes. Como comparação, no sistema do Pará é possível localizar a fazenda no mapa e acessar sua ficha completa.
“Transparência não é só a disponibilização dos dados, mas a possibilidade de se trabalhar com eles. Um bom dado precisa seguir um padrão pré-estabelecido e inclui uma espécie de dicionário que explique como ler aquele dado”, explica Taciana Stec.
O Mato Grosso disponibiliza os dados de GTA apenas para quem tiver o código de barras do documento – informação que não é pública. Já as multas aplicadas no estado estão disponíveis através do Geoportal, mas o sistema não fornece o valor nem o motivo da multa. Além disso, os dados não podem ser baixados e analisados na sua totalidade. A título de comparação, no site do Ibama, com poucos cliques é possível verificar nome, valor da multa, descrição da infração e CPF ou CNPJ de quem desrespeita a lei ambiental, e os dados completos estão disponíveis no portal de Dados Abertos do governo. O Mato Grosso informou que está trabalhando para que os dados do Geoportal possam ser baixados na forma de tabelas.
No Maranhão, a justificativa para a impossibilidade de consultar Autorizações de Supressão Vegetal (ASV) é tecnológica: o site está em manutenção. “Em breve, as informações estarão disponíveis na plataforma da transparência da Sema”, informa a pasta.
“Já recebi respostas de estados dizendo que o arquivo é físico e a busca, manual e por isso, levaria meses para levantar os dados. Claro que há o problema da defasagem tecnológica, mas eu acho que é muito fruto da falta de vontade política de dar transparência”, complementa Stec, do Política por Inteiro.
Amapá, Acre e Tocantins também não publicam ASVs. Amazonas e Rondônia divulgam as informações completas, mas no formato de planilha, enquanto o ideal é apresentar os dados em um mapa que permita visualizar o conjunto de informações. É assim no Mato Grosso, o único dos estados que oferece essa funcionalidade. O problema lá é que o cidadão precisa acessar dois sistemas diferentes para obter a informação completa: o mapa do Geoportal e a página do Simlam — o governo informa que está trabalhando para unificar todos os dados no Geoportal.
Em Roraima, são três sistemas diferentes que apresentam dados e documentos em formatos que não conversam entre si. Ou seja, não é possível checar integralmente as informações sobre supressão vegetal e licenciamentos. “Não adianta ter o dado disponível mas ter um monte de links, um de formato diferente do outro, de modo que você não consegue unificar isso em uma análise”, critica a coordenadora da equipe de dados da Política por Inteiro.
Além disso, a confiabilidade dos dados também deixa a desejar, como evidenciam algumas licenças localizadas sobre o Oceano Atlântico, bem longe do território do estado. “Estas falhas na transparência permitem que poderosos locais sejam beneficiados, sem que ninguém fique sabendo ou possa tomar uma atitude”, lamenta Taciana Stec.