Interrompida por diversas vezes, Joenia destacou existir “Um Dossiê foi entregue ao presidente da CPI da Pandemia da covid-19, Omar Oziz, nesta terça-feira, 19, pela FAMDDI e organizações indigenistas.
A reportagem é de Adi Spezia e Lígia Kloster Apel, publicada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 20-10-2021.
“Que os fatos sejam incluídos nas investigações da pandemia, que a investigação seja abrangente para envolver todos os agentes do Estado que deram causa ao novo extermínio dos povos indígenas no Estado do Amazonas e em todo o Brasil, no âmbito da União, em particular o Presidente da República, o Ministro da Saúde, sem prejuízo dos demais e que sejam apuradas todas as responsabilidades e encaminhadas aos órgãos competentes a fim de que sejam promovidas as ações cabíveis para responsabilização criminal e administrativa dos agentes”.
Assim pede o Dossiê sobre a disseminação da covid-19 entre os povos indígenas do Amazonas e região entregue nesta terça-feira, 19, ao presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, senador Omar Aziz (PSD-AM), pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI), Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas e organizações indigenistas, entre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Além da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Amazonas (SJPAM) e da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Amazonas (Adua).
O relatório traz sérias denúncias de violações de direitos com depoimentos sobre o drama que a pandemia trouxe aos povos indígenas agravado pelo descaso, negligência e preconceito no atendimento aos indígenas. O Dossiê já havia sido enviado à CPI em maio deste ano, por meio eletrônico, e nesta terça-feira a entrega foi em mãos.
Durante a reunião, as entidades cobraram que a investigação envolva todos os agentes públicos que deram causa ao novo extermínio dos povos indígenas no Amazonas e em todo Brasil, também exigem que sejam apuradas as devidas responsabilidades e encaminhado aos órgãos competentes.
Reunião com o presidente da CPI da pandemia, senador Omar Aziz para a entrega do Dossiê da FAMDDI (Foto: Adi Spezia/Cimio)
Omar Aziz prometeu apurar os casos de covid-19 entre os indígenas do Amazonas e de todo o país, mas não deu garantias de que o crime de genocídio será incluído no relatório final da CPI da pandemia. A leitura do relatório está prevista para esta quarta-feira, 20, e a votação para a próxima terça-feira (26).
A FAMDDI, frente que reúne organizações indígenas e indigenistas da Amazônia, pedem que “a investigação seja abrangente para envolver todos os agentes de Estado que deram causa ao novo extermínio dos povos indígenas no Estado do Amazonas e em todo o Brasil, no âmbito da União, em particular o presidente da república e o ministro da saúde”. Também cobrou que as responsabilidades sejam apuradas a fim de que sejam promovidas as ações para responsabilização criminal e administrativa desses agentes.
Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, destacou que muitas vezes há uma confusão na interpretação da leitura, mas a gente tem que pegar na parte técnica. E o Estatuto de Roma, que justamente estabeleceu a Corte Penal Internacional, conhecida como Tribunal Penal Internacional (TPI), fala assim.
“O crime de genocídio, para efeito de entender como genocídio, qualquer um dos atos que praticado com a intensão de destruir o todo, ou em parte, grupo nacional étnico – no caso dos povos indígenas -, racial ou religiosos enquanto tal. Listo três: homicídio de membros de grupos; ofensas graves à integridade física ou mental dos membros; sujeição intencional do grupo em condições de vida com vista a provocar a destruição intrínseca total”, destacou a parlamentar que conhece muito bem a área do direito internacional da questão indígena. “O tema daria para fazer um seminário para discutir, mas existe uma intenção clara”, completou Joenia.
Existe uma intenção clara, afirmou a deputada Joenia Wapichana ao se referir a negligência do Estado Brasileiro em relação aos povos indígenas e a pandemia (Foto: Adi Spezia/Cimi)
Interrompida por diversas vezes, Joenia destacou existir “uma pressão muito grande para tirar a configuração de genocídio do relatório da CPI, mas todas as informações claras, nesse sentido, foram encaminhadas à Comissão tanto pela Frente Parlamentar Indígena quando agora no Dossiê da Frente Amazônia de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas. Agora, é aguardar as providências a serem tomadas. Eu espero que a CPI aja com coerência e todas as discussões acumuladas e documentos que receberam ajudem a configurar todos os crimes que Bolsonaro praticou”.
O vice-coordenador da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, José Ricardo (PT-AM), reforçou a importância do Dossiê organizado pela FAMDDI compor o relatório final da CPI.
“Esse relatório da FAMDDI é muito grave. São quase mil indígenas mortos e milhares que ainda sofrem as consequências da Covid, com a falta de assistência, falta de segurança e isolamento por parte do poder público. Nesse documento, há relatos de várias situações graves envolvendo os povos da região Amazônica, que a FAMDDI chega a chamar de tentativa de extermínio. Não podemos ficar calados frente a esses descasos e cobramos responsabilizações”.
A falta de providências por parte do Governo Federal foi destacada pelo secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionários (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira. Para ele, “a partir da política de integração dos povos indígenas, portanto uma política intencional, o Governo Federal tem feito a distribuição de medicamentos não comprovados cientificamente como a hidroxicloroquina e a ivermectina aos povos indígenas para o tratamento da covid-19, isso leva a um processo de genocídio, principalmente às populações de pouco contato. Isso tem que ser denunciado na CPI e colocado como tentativa de genocídio com relação aos povos indígenas no Brasil”.
Na avaliação das entidades, foi acertada a entrega do Dossiê, em mãos, ao presidente da CPI da pandemia. Agora, com o encaminhamento de reunir com o relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL), logo após a reunião no Gabinete de Aziz, as entidades esperam que ele possa adotar providências mais ágeis e ter de fato a questão indígena colocada no relatório da CPI com uma denúncia grave de violência contra os povos indígenas no Brasil.
Ao concluir a reunião, Omar Aziz afirmou, “importante é que criamos na CPI uma subcomissão para acompanhar todas as investigações junto ao Ministério Público e cobrar das autoridades e instituições que as providências sugeridas sejam implementadas”.
Povos Indígenas participam de movimento contra governo Bolsonaro no sábado, 19 de junho de 2021 (Foto: Tiago Miotto/Cimi)
A Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI) é composta por organizações indígenas e indigenistas da região Amazônica. Entre elas, o Fórum de Educação e Saúde Indígena do Amazonas (FOREEIA), Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN), Federação Indígena do Povo Kukami-Kukamira do Brasil, Peru e Colômbia (TWK), e as organizações da sociedade que apoiam o luta indígena, Associação dos Docentes da Universidade Federal do Amazonas (ADUA), Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação (SARES), Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Norte 1 e Serviço de Cooperação Yanomami (SECOYA).
Essas organizações e, também, lideranças e advogados indígenas, parlamentares e juristas indigenistas participaram, em abril desse ano, do Seminário Virtual “Violação dos Direitos e Genocídio no Amazonas”. O evento trouxe diversos relatos com dados estatísticos e depoimentos surpreendentes e reveladores de descaso, negligência e omissão, frutos do preconceito e da política indigenista assumida pelo atual governo. Tais relatos estão registrados e dão sustentação ao Dossiê.
Ato do acampamento Luta Pela Vida desceu a Esplanada dos Ministério em protesto contra a agenda anti-indígena no Congresso e no governo federal (Foto: Marina Oliveira/Cimi)
O Dossiê traz uma série de relatos e depoimentos de lideranças indígenas denunciando estar em curso uma política de extermínio dos povos indígenas, implementada pelo Governo Federal, que faz uso da pandemia para incentivar as invasões e exploração dos territórios indígenas. Por questões de segurança, os nomes das lideranças foram omitidas.
A liderança Yanomami da Associação Yanomami Kurikama da região do rio Negro (AM), conta que toda sua aldeia está doente, ou por Covid-19 ou de malária, e fala do descaso da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da invasão de garimpeiros no território. “A nossa saúde não está bem. A Sesai tá devagar. Por isso tá cheio de malária. Todos na comunidade estão doentes. Hoje temos Covid-19. Já pegamos… Já morremos… Precisamos acabar… Precisamos vacinar…”, relata, denunciando que a invasão de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami está chegando na parte da TI que fica no Estado do Amazonas. Segundo o relatório, “A invasão massiva de garimpeiros na TI Yanomami significa um risco constante à vida dos indígenas, seja pela transmissão de doenças como a Covid-19 e a malária, seja devido a conflitos violentos”.
Encontro Yanomami em frente à maloca Watoriki, antes da pandemia (Foto: Adriana Huber Azevedo/Cimi Norte 1)
O povo Juma perdeu seu último ancião, Aruká, vítima da Covid 19, que, segundo o relatório “foi contaminado na própria aldeia pois não foi feita barreira sanitária que poderia ter impedido a entrada do vírus. Morreu assim o último Juma que presenciou o massacre de 1964, por negligência do Estado.”
A liderança Kanamari relata, de acordo com o Dossiê, a situação na Terra Indígena Vale do Javari, localizada na fronteira do Brasil com o Peru, no Amazonas. Região de maior concentração de povos isolados do mundo, o Javari está suscetível à Covid 19 pelo livre tráfego de invasores nos territórios, de acordo com o dossiê:
“Os invasores – garimpeiros, madeireiros, caçadores e pescadores – agem com total liberdade. Eles são encorajados pelo Governo Federal e pela fragilização do sistema de proteção de índios isolados da Funai. A situação é ainda mais crítica com a propagação da Covid 19 em todo Vale do Javari, o que pode provocar o genocídio dos parentes isolados.”
Outra forma de disseminação da Covid-19 relatada pelo Dossiê provém dos missionários fundamentalistas que provocam a recusa dos indígenas à vacina. “Notícias chegam até nós de todas as regiões do estado do Amazonas. Há relatos sobre comunidades que resistem à vacinação, por influência de religiosos fundamentalistas, com a utilização de argumentos falsos como: a vacina traz o chip da besta, a pandemia veio pela vontade de Deus e só ele pode curar, a vacina mata em vez de curar”, revela o relatório, que analisa:
“É uma guerra de cosmovisões… de quem tem o direito de ser humano e de ter vida com dignidade. O fundamentalismo religioso tem um discurso alinhado com o atual governo. (…) A posição contra a vacina não pode ter respaldo do ponto de vista religioso, só pode ser explicada do ponto de vista político. Há um projeto político de cunho fascista de eliminação de grupos considerados como ‘estorvos’”.
Manifestação do Povo Pataxó Hã Hã Hãe (Foto: Povo Pataxó Hã Hã Hãe)
A situação dos indígenas residentes em áreas urbanas e terras indígenas não demarcadas é ainda mais crítica. O relatório aponta, de acordo com relatos das lideranças Witoto do Alto Solimões, do bairro indígena de Manaus, Parque das Tribos, e outras 35 comunidades urbanas indígenas “foram as primeiras afetadas pela Covid 19, mas o governo foi extremamente negligente com a falta de atendimento médico e assistência nessas comunidades durante a pandemia”.
Os depoimentos revelam que ao se identificarem como indígenas, os atendentes respondiam que “quem cuida da saúde dos povos indígenas é a Sesai e que não teriam como disponibilizar a ambulância do SAMU para a remoção dos indígenas nas comunidades. E quando procuravam a Sesai e o Disei [Distrito Sanitário Especial Indígena] diziam que tinham que procurar o SUS [Sistema Único de Saúde], o município e o Estado, pois a Sesai e o Disei só atendiam indígenas das aldeias”, deixando os indígenas sem atendimento.
Dramática também é a situação do povo Kokama do Alto Solimões, também na tríplice fronteira, denunciada pela liderança Kokama:
“O médico estava de férias e quando voltou estava contaminado com a Covid e infectou a agente de saúde da Aldeia São José, que foi a primeira indígena infectada na aldeia. E a doença se espalhou muito rapidamente, sem controle, sem medidas de proteção e sem atenção dos governos. Assim, nosso povo continuou morrendo aqui no Alto Solimões. É muito difícil ver o seu povo sendo enterrado em valas, em sepultura coletiva. E ainda tem algo muito sério porque meu povo ainda é enterrado como pardo. O que é pardo? Eu e meu povo não somos pardos, somos Kokama, somos povo originário. Mesmo assim, a gente briga todo tempo para que no atestado de óbito conste como indígena Kokama”.