13 Setembro 2021
“Neste 'mundo endemoniado' em que vivemos, está se produzindo uma mudança radical, que não imaginamos. O 'desejo' é mais determinante e poderoso que a “proibição”. O 'horizontal' é mais poderoso que o 'vertical'. O que, aplicado ao tema do demônio e como expulsá-lo, nos vem a dizer que o grande exorcismo, que o mundo necessita, não virá do poder dos superiores, com seus títulos, seus poderes e suas cerimônias, mas que somente poderá vir da simplicidade, da insignificância, da vulgaridade dos que estão abaixo”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 12-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em um breve artigo, que publiquei em Religión Digital há poucos dias (e que foi traduzido para o português pelo IHU), terminei escrevendo que em breve publicaria uma reflexão sobre a homossexualidade. Porém, tendo em vista as tantas correções que me fizeram alguns leitores, estes defendendo a existência do demônio, compreendo que devo dar-lhes uma explicação, dado que nos Evangelhos os demônios são mencionados com frequência.
Pois bem, o Evangelho de Lucas, quando relata a missão evangelizadora que Jesus encomendou a um grupo de discípulos, que era muito maior que o dos “doze” apóstolos, o grupo dos “setenta e dois” (Lc 10, 1-20), este relato termina dizendo que “Os setenta e dois voltaram muito alegres, dizendo: ‘Senhor, até os demônios obedecem a nós por causa do teu nome’” (Lc 10, 17). E Jesus respondeu: “Eu vi Satanás cair do céu como um relâmpago. Vejam: eu dei a vocês o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões e sobre toda a força do inimigo, e nada poderá fazer mal a vocês” (Lc 10, 18-19).
Esta é a convicção que o cristianismo deixou latente: desde a vinda de Jesus, as forças demoníacas ficaram arrasadas; os demônios se submetem ao poder e ao nome de Jesus Cristo (F. Bovon, “El Evangelio según Lucas”, vol.II). O demônio foi derrotado para sempre.
Mas isto, sendo tão importante, não é toda a verdade que aqui é decisivo deixar latente. Se derrotou o demônio, mas como? Por rituais, exorcismos e cerimônias? Nada disto. Jesus não instituiu “exorcistas”, nem decretou ritos e liturgias para expulsar demônios. E menos ainda lhes pôs preço ou estabeleceu tarifas para anular os diabos satânicos. Como e quando Jesus viu Satanás cair como um relâmpago? Quando os discípulos dedicaram sua vida inteira a pôr em prática o Evangelho. Assim – e somente assim – podemos limpar este mundo de demônios.
Porém já, postos a explicar este assunto capital, vamos chegar até o fim. Como bem se sabe, ao final do século passado, o conhecido antropólogo René Girard publicou um livro que deu muito o que falar. O livro se intitula exatamente: “Veo a Satán caer como el relâmpago” (Ed. Anagrama, 2002). Girard tomou como ponto de partida um dado no qual muita gente jamais se fixou. No Decálogo, que a Bíblia nos apresenta no livro do Êxodo (20, 17), nos é imposto dez mandamentos, que são dez proibições: não matar, não roubar, não mentir... Porém, o último destes mandamentos não é um “fato” (matar, roubar...), mas um desejo: não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás sua mulher, nem seu servo, nem sua criada, nem seu touro, nem seu burro, nem nada a que pertença ao seu próximo.
Dado isso, atrevo-me a dizer que, neste “mundo endemoniado” em que vivemos, está se produzindo uma mudança radical, que não imaginamos. O “desejo” é mais determinante e poderoso que a “proibição”. O “horizontal” é mais poderoso que o “vertical” (cf. Peter Sloterdijk, “Has de cambiar de vida”). O que, aplicado ao tema do demônio e como expulsá-lo, nos vem a dizer que o grande exorcismo, que o mundo necessita, não virá do poder dos superiores, com seus títulos, seus poderes e suas cerimônias, mas que somente poderá vir da simplicidade, da insignificância, da vulgaridade dos que vem debaixo.
Em definitivo, segue em pé e se reforça o que Jesus disse aos setenta e dois discípulos, os que vinham de viver em meio ao povo: “Vejo o Satanás cair como o relâmpago”.
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A derrota do demônio. Artigo de José M. Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU