09 Agosto 2021
Tênis brancos, um casaquinho azul. Terá quatro anos, talvez cinco. Pode-se imaginar vê-la e ouvi-la enquanto acorda ao lado da mãe e do pai, talvez fazendo um pouco de birra, gostaria de brincar. Parar um pouco. Já andou muito, demais.
A reportagem é de Gianpaolo Sarti, publicada por La Stampa, 08-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas há apenas silêncio nos bosques de Dolina, acima de Val Rosandra, no Carso da zona de Trieste. É o meio da manhã. Eles, os migrantes, já saíram para chegar à cidade. Primeiro a periferia, depois o centro.
Eles deixaram tudo na grama, na lama, sob as árvores. Mochilas, blusas, casacos. Sapatos, muitos sapatos, como aqueles já gastos pela da menina ou aqueles da Disney com as fantasias principescas da "Frozen". Uma mochila vermelha e branca que algum pai usou para carregar seu filho ou filha nas costas pelas trilhas acidentadas.
Afegãos, paquistaneses, mas também sírios e iranianos. Muitas vezes, famílias inteiras. Eles chegam na Europa, na Itália, passando pela Grécia, Macedônia, Sérvia, Croácia, Eslovênia e Áustria. Um êxodo muitas vezes nas mãos das organizações criminosas de atravessadores que exigem até 6 -7 mil euros por pessoa para acompanhar os migrantes que, no Carso, se deslocam em grupos de cinco, dez ou pouco mais.
Eles descem noite adentro, depois de cruzar a fronteira com a Eslovênia, após meses de caminhada ao longo da rota dos Balcãs. Trieste é a meta. Mas, antes de entrar nos centros habitados do planalto acima da cidade, muitos param para dormir na mata. Fazem pequenos acampamentos nas clareiras: telas, sacos de dormir, cobertores. Esperam o amanhecer para entrar em Trieste. Não querem chamar demais a atenção. Tentam desesperadamente se confundir com a população local.
Sim, se confundir. Tornar-se invisíveis. Por isso, quando estão às portas da cidade, abandonam no chão, no bosque, tudo o que trouxeram durante os meses de caminhada. Jogam tudo fora. Roupas, cobertores, bolsas, sacolas que pertenceram a uma vida da qual fugiram.
O planalto próximo à fronteira está repleto de objetos que vêm de longe. Muitos pequenos sinais cotidianos. Lâmpadas, talheres, escovas de dentes, pastas de dentes. Espuma de barbear, lâminas de barbear. Gazes, cartelas de paracetamol. Cartões telefônicos, canivetes. Pacotes de biscoitos. Bebidas de todos os tipos. Os cobertores com as siglas das organizações sem fins lucrativos encontradas nos campos de refugiados da rota dos Balcãs. A Kola comprada na Bósnia, a garrafa de água Jana comprada na Eslovênia. Mochilas pretas ou verde camuflado. Algumas rasgadas, outras ainda inteiras. Existem às dezenas na lama. E sim, os sapatos. Mares de sapatos.
Sapatos enlameados e gastos. Sapatos molhados e rasgados. Não é preciso muito esforço para imaginar os pés lá dentro, martirizados pelo cansaço. Aqueles pés que os voluntários das associações humanitárias que operam em Trieste, muitas vezes jovens, muitas vezes médicos recém-formados, tratam na praça central da Libertà nos bancos, com desinfetantes e gazes.
Nos bosques o fluxo não para nem no inverno e se acentua com o verão. O que os migrantes abandonam na lama, na grama, é a história de meses de esforço. Traços de uma humanidade em fuga. Testemunhos silenciosos também das dramáticas negativas de permissão de entrada nas fronteiras da Bósnia e da Croácia.
“The game”, assim é chamada a tentativa de cruzar aquelas fronteiras, em meio a espancamentos e humilhações infligidas pela polícia, conforme documentado em numerosas investigações e reportagens.
Às vezes eles não conseguem. Há quem fique bloqueado durante meses nos Bálcãs. Quem perde a vida. E muitas vezes quem consegue chegar a Trieste tem hematomas nas costas e nas pernas. É assim há cinco anos. E o Carso se cobre de sinais desses trânsitos, correndo o risco de se tornar um enorme lixão a céu aberto. O Município de San Dorligo-Dolina equipou-se com a contratação de uma empresa - A&T2000 spa- para a limpeza dos bosques. A Região agora concede financiamentos. Porque a mão dos voluntários, dos cidadãos que se davam o trabalho de recolher o que encontravam aqui e ali, já não é mais suficiente.
A estimativa é que desde março - desde o início da contabilização da atividade de limpeza - tenham sido recolhidas 8 toneladas de material. Caminhões lotados circulando três vezes por semana entre o planalto e as centrais de descarte.
Somente na sexta-feira, em menos de duas horas, os funcionários encheram dezesseis sacos de quinze quilos cada. Roupas, sapatos, cobertores e tudo o mais, recolhidos em menos de 300 metros de bosques nas encostas do Monte Carso, próximo à cidade de Crogole, em Dolina.
“Limpamos uma área - explica Stefano Franceschetti, o contato da empresa - mas na semana seguinte temos que voltar e limpar novamente porque está cheio de coisas. Dói ver esse lixo, mas aí você olha o rosto das pessoas que o jogam fora. E você entende". O prefeito de Dolina, Sandj Klun, abordou o problema com paixão. Ele, de esquerda, um expoente da minoria eslovena, levou para aqueles bosques o assessor regional delegado para a imigração, Pierpaolo Roberti, da Liga Norte. E o convenceu a lhe repassar os fundos para enfrentar a situação. Cento e cinquenta mil euros por ano para os municípios cársticos. “A Região entendeu e sobre isso, felizmente, não há divisões políticas”, afirma Klun.
A população local, que obviamente não gosta de conviver com a vegetação atrás da própria casa pontilhada de centenas de mochilas, roupas e cobertores, não constrói muros. Entre os moradores, há quem ajude na limpeza. E quem ajuda os migrantes em dificuldade, oferecendo um pedaço de pão, água, biscoitos. No entanto, a atividade de limpeza está ficando cada vez mais difícil. Porque os migrantes não utilizam apenas as trilhas marcadas. Vêm de todos os lados, de todo o arco que vai do Rio Ospo, em Muggia, ao Monte Cocusso. “Como vamos chegar aos pontos mais inacessíveis? E trazer sacos e mais sacos de coisas?" pressiona o prefeito. Existe uma solução. Um retorno ao passado: as mulas. Sim, eles vão usar as mulas de um morador de Dolina para transportar o material encontrado nas áreas íngremes, onde o capim fica mais ralo e começam os cumes rochosos. Trilhas perigosas: em janeiro de 2020, um jovem argelino caiu em uma fenda. Para evitar acidentes e marcar melhor o caminho, grupos de migrantes deixam suas camisas e mochilas penduradas nas árvores e arbustos. Há algum tempo também as máscaras.
Assim, quem vem depois, sabe por onde ir.
O fluxo não para. Viajam em um ritmo de 30-50 por dia. “Em Trieste, o acolhimento funciona”, garante Gianfranco Schiavone, presidente da ICS, a entidade sem fins lucrativos que gere o setor. Schiavone é muito crítico em relação às patrulhas mistas nas passagens administradas em colaboração entre as polícias italiana e eslovena: "Quanto mais dificuldades são criadas, mais o sistema se estrutura e vai para as mãos dos criminosos".
O bosque fala, o bosque conta. A menina dos sapatos brancos que na outra noite ficou num saco de dormir ao ar livre, entre essas árvores, também vestia um casaquinho azul com uma pequena inscrição bordada: "Star gazing". Olhar as estrelas. Quase podemos vê-la com os olhos voltados para o alto, enquanto adormece.
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Os invisíveis que mudam de identidade nos bosques fronteiriços da Itália - Instituto Humanitas Unisinos - IHU