“Com a pós-modernidade entramos de forma total na sociedade da eterna juventude, que não representa uma questão puramente estética, mas constitui a pedra angular do estar no mundo do humano que é comum. O espírito de seu ser e de seu existir. Aqui se origina o mal-estar do Cristianismo, que durante séculos providenciou respostas e felizes indicações de sentido a um sujeito humano destinado essencialmente a uma vida breve, árdua, dura, com muitas doenças, com tanta pobreza, com grandes instabilidades políticas e com uma constante situação de frustração e, sobretudo, privado de qualquer conhecimento mínimo”, escreve Armando Matteo, professor de teologia fundamental da Pontifícia Universidade Urbaniana e subsecretário adjunto da Congregação para Doutrina da Fé convocado pelo Papa Francisco.
Prof. Dr. Armando Matteo proferiu a palestra de abertura do XX Simpósio Internacional IHU sobre o tema “(Ir) Relevância pública do cristianismo em um mundo em transição”, no dia 04-06-2021, a qual reproduzimos aqui, em formato de artigo, em português. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao falar, gostaria de agradecer de coração ao Instituto Humanitas Unisinos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e em particular à equipe de Teologia Pública por este convite para o XX Simpósio Internacional IHU sobre o tema “(Ir) Relevância pública do cristianismo em um mundo em transição”.
O título da minha apresentação - Presença Fragmentada - lembra deliberadamente as pesquisas pioneiras do jesuíta Michel de Certeau, que, já por volta dos anos 1970, intuiu a nova posição do cristianismo dentro da cultura ocidental. Não era mais uma colocação central. Não era mais uma colocação clara para todos. A preocupação do famoso jesuíta parisiense, na época, era especificamente quanto ao uso dos escritos e dos ritos cristãos para indicar outro do que eles pretendiam expressar e propiciar na existência humana. Algumas de suas palavras:
“O corpo dos escritos e dos ritos cristãos é percebido, isto é, utilizado como um conjunto de belas obras de arte, poéticas e sugestivas: as igrejas, os textos, as liturgias oferecem um material para a criação teatral, para as poéticas secretas da leitura, para as novas composições do imaginário social. Já não são mais os testemunhos de uma revelação, os sinais de uma verdade doada à fé cristã, mas as ruínas admiráveis de um simbólico que se oferecem a cada possibilidade de invenção e de expressão. A reação da percepção crente é medida de acordo com o avanço da percepção estética [...] a linguagem cristã é falada pelos não crentes como um texto que expressa seus itinerários e não mais a própria verdade. Uma religião se transforma na estética de uma experiência diferente da sua. Restam-nos textos e objetos praticados hoje de forma diferente daquela em que foram criados, percebidos e vivenciados pelos fiéis”.
Em suma, o Cristianismo não se entende mais por si só. Este é o drama, a questão, o verdadeiro ponto de ruptura e de virada. Trata-se de uma mudança verdadeiramente marcante que encontrou sua descrição mais feliz nas seguintes palavras de Charles Taylor:
"a mudança que eu gostaria de definir e explorar é aquela que nos conduziu de uma sociedade na qual era virtualmente impossível não acreditar em Deus, para uma em que a fé, mesmo para o fiel mais devoto, é apenas uma possibilidade humana entre outras. Talvez eu possa achar a ideia de abandonar minha fé inconcebível, mas existem outras pessoas, incluindo algumas que me são particularmente caras, e cujo estilo de vida eu não posso honestamente reprovar como simplesmente depravado, cego ou indigno, que não têm fé (ou pelo menos não têm fé em Deus ou no transcendente)".
Ao longo desse caminho e na companhia desses grandes pensadores, coloca-se também a minha pequena e mais modesta pesquisa teológica que gostaria de sintetizar em algumas perguntas: por que o tempo que nos é dado para viver tornou-se o tempo de um profundo mal-estar do Cristianismo? Por que para muitos homens e mulheres de nosso tempo - especialmente os jovens - se tornou simplesmente inimaginável ser cidadãos e cidadãs do século XXI, no Ocidente avançado, e ao mesmo tempo discípulos e discípulas de Jesus? Por que um cristão não deveria “se sentir em casa” no século XXI?
Para enfrentar agora essas questões é necessário questionar em profundidade este nosso tempo e é a partir disso que nasceu meu interesse pela categoria de "pós-modernidade".
E imediatamente, como outros antes de mim, também eu declaro que esta categoria não está isenta de problemas, mas mantém boas razões para evocar o tempo em que nos encontramos e nisso pode ajudar-nos a apreender aquele mal-estar do Cristianismo que faz com que, hoje, somente para poucos o Evangelho represente a boa nova de sua existência, o que significa que hoje a imagem pública do cristianismo esteja “fragmentada”, opaca, não transparente de sua verdadeira capacidade de nos tornar mais humanos. E, como todos sabemos, quando se compreende o que já não funciona bem, numa dada situação, quase simultaneamente surge a oportunidade de experimentar outras opções.
Este, então, é o propósito específico desta minha intervenção: entender o que não está mais funcionando bem hoje na presença pública do Cristianismo graças a uma análise detalhada do advento da pós-modernidade. Mas, então, o que é a pós-modernidade?
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Gostaria de tentar responder à pergunta "O que é a pós-modernidade?" de uma forma curta, quase como Immanuel Kant faz em sua resposta à pergunta sobre a essência do Iluminismo. Pois bem, a pós-modernidade é a época da emancipação do homem comum. Este é o sinal específico do nosso tempo: o advento de um homem livre e absolutamente ciente da própria singularidade.
Trata-se, na verdade, de uma emancipação que se dá ao longo de um processo e de um percurso de transformação das condições de pensamento e de vida da cultura ocidental clássico-moderna que teve início em meados do século XIX e se cumpre no final do século passado. Dele, vamos tentar agora, de forma breve, repercorrer as principais etapas.
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A emancipação do homem comum que, como já referi, na minha opinião é a cifra da pós-modernidade, começa em 1859. Naquela data, com o livro A origem das espécies, Charles Darwin liberta o aparecimento do homem na terra do vínculo com Deus: convida a olhar para a origem da espécie humana, mais do que para o topo do empíreo divino, na direção do parentesco comum com outros animais. Este é o gesto inaugural da pós-modernidade: acontece ali uma inversão de baixo, elementar, em nome da busca da verdade científica, da sempre reconhecida primazia da instância do infinito sobre o finito; em suma, forma-se um questionamento radical da necessidade do pensamento de Deus: do pensamento de que Deus é necessário para a mente humana em busca de respostas sobre a origem, a consistência e o destino das coisas do mundo. Não precisamos mais de Deus.
Pouco tempo depois da chocante revelação oferecida por Darwin, acontecem a Primeira e a Segunda Internacionais que pretendem transformar o protesto de Marx - não podemos esperar pelo paraíso! - no programa político; dessa forma, o céu divino também perde sua antiga função de lugar último ao que aspirar a fim de enfrentar a dura vida vivida na terra. Some-se a isso a operação central operada por Freud, que reformula o conceito de alma como estação de agregação energética, despojando-a de qualquer aura transcendental: a alma não representa mais o cordão umbilical de nossa origem divina. Por fim, o início do que normalmente costuma ser indicado como segunda revolução industrial, lança as bases daquela expansão global do mercado, de que hoje somos espectadores, às vezes temerosos; naqueles anos, de fato, se desenvolveram a empresa da General Motors e a de Henry Ford, nascem a Coca Cola e a Fiat: a terra não é mais percebida como "vale de lágrimas", à espera da vida eterna, mas como um lugar onde podemos nos instalar confortavelmente e ganhar muito dinheiro.
Para compreender o sentido e a dimensão dos dados citados até aqui, devemos nos reportar a 1882, quando Nietzsche escreveu o celebérrimo parágrafo 125 de A Gaia Ciência, que com ampla antecipação pressente os gemidos da nova época. “Procuro Deus, procuro Deus” grita o louco e depois diz: “Nós o matamos!”. Aquele anúncio não é uma proclamação de ateísmo por parte de Nietzsche, mas sim a denúncia pública de que o homem ocidental não precisa mais da hipótese de Deus, do pensamento de Deus, para dar fundamento e respaldar sua origem, seu autêntico ser, seu destino final e até mesmo o sentido do seu estar no mundo. Viemos da cadeia evolutiva como os outros seres vivos, somos pura energia, somos chamados a seguir rumo a uma sociedade menos injusta e estamos aqui para ganhar dinheiro: muito dinheiro.
Não é por acaso que é no mercado que acontece o grito nietzschiano Gott ist tot (Deus está morto).
Não leva muito tempo para a humanidade compreender os efeitos revolucionários que comporta a desconstrução da necessidade do pensamento de Deus, iniciada por Darwin e levada a cumprimento por Freud, Marx e Nietzsche. Basta esperar o período entre 1905 e 1908.
E é assim que já no mês de junho de 1905 Albert Einstein publica o artigo "Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento", ou seja, a teoria da relatividade restrita ou teoria especial da relatividade; no mesmo ano, Freud publica Três Ensaios sobre Teoria Sexual, nos quais argumenta que, ao lado daquela entre os dois sexos, existem outras formas de atração que não devem ser escondidas, mas examinadas, e que a sexualidade não se esgota na função reprodutiva; também naquele mesmo ano, Picasso dá a primeira pincelada a Les demoiselles d'Avignon, depois concluído em 1907: com a pintura inaugura uma gestualidade pictórica inédita e inaudita, que está na origem de uma ruptura dilacerante e profunda em relação à tradição oitocentista. Sempre em 1905 Matisse amadurece um trabalho de essencialização das imagens, de transformação da perspectiva e do uso despótico e antinaturalista das cores, muitas vezes justapostas que encontram uma indelével fixação no impactante Retrato de Madame Matisse com uma Linha Verde.
Les demoiselles d'Avignon, de Pablo Picasso
Entre 1904-1905 Joyce se dedica a Um retrato do artista quando jovem, Pascoli publica os Poemas Conviviais, nos quais, mesmo voltando seu pensamento para a Grécia antiga, projeta nela a angústia moderna, e Schönberg inicia a composição de suas Seis peças para piano Op. 19, que, concluídas em 1911, introduz um horizonte atonal. Foi em 1906 que Proust inicia a escrita de À la recherche du temps perdu, enquanto datam de 1907 as primeiras publicações de Kafka: são 8 contos publicados na revista Hyperion, e já se anunciam a ironia trágica de Pirandello e o olhar desencantado de um Robert Musil e de um Thomas Mann.
Paralelamente, deve-se registrar o aparecimento de um novo modelo de pensamento, que parte da filosofia do diálogo de Martin Buber, da fenomenologia de Edmund Husserl, dos movimentos do romance do já citado Kafka.
Finalmente, não se pode deixar de lembrar – ampliando um pouco o arco temporal - do teorema da incompletude de Kurt Gödel e da lógica intuicionista de Luitzen Brouwer, que cortam pela raiz o ideal da autofundação do conhecimento matemático; bem como do advento das geometrias não euclidianas.
O que acontece então neste primeiro segmento do século XX? Acontece que pela literatura, pintura, música, ciência e em particular pelas novas ciências humanas é cada vez mais contestada a ideia de viver em um mundo unidimensional, estruturado de acordo com leis e formas que a inteligência humana poderia apreender e governar; é jogada no sótão a convicção de viver à sombra de uma verdade única e de uma única verdade.
Emerge, ao contrário, o fascínio da subjetividade, da emotividade, do lado noturno do humano, da diferença, da alteridade e da alteração, da abertura ao olhar diferente e alheio e à sua hospitalidade no coração da própria autodefinição, do prazer da transformação infinita do finito: um fascínio sustentado finalmente pela certeza da impossibilidade de qualquer fundamentação e da recondução de coisa nenhuma a princípios últimos.
Um terceiro momento bastante decisivo que decide a imposição da mentalidade que hoje distingue o contexto cultural atual é dado pela transformação, em 1942, de Auschwitz no principal campo de extermínio nazista. Aqui - segundo uma intuição original de Günter Anders, mais recentemente retomada por Umberto Galimberti - nasce a era da técnica, que se caracteriza pelo fato de que a pesquisa voltada para a potencialização de meios mais rápido para matar os prisioneiros marca a desvinculação da técnica da ligação direta com as necessidades do sujeito humano, destruindo assim o tabu da vida e da morte.
Nascida ao serviço do melhor sucesso da vida humana com o ambiente circunstante, no momento em que se separa do serviço àquela vida, aliás, aponta frontalmente contra a mesma, a técnica muda de sinal e coloca-se como seu fim último e absoluto. A Natureza, entendida como um conjunto de substâncias estáveis e fixas, dotadas de uma normatividade interna, inexoravelmente cede lugar ao poder técnico da mão humana, cuja única lei será a da experimentação potencialmente infinita.
Tal modelo teve sucesso imediato, logo após a Segunda Guerra Mundial, devido às grandes mudanças que realizou na melhoria das condições médias da vida dos ocidentais, da higiene à saúde, das viagens às comunicações e talvez seja aqui que aparece a maior dádiva ao homem comum de hoje: sua incrível longevidade. O cientista político francês Marcel Gauchet calculou que se trata de um aumento médio de 30 anos de vida a mais!
Neste ponto, ainda será necessário avaliar corretamente a força avassaladora do Holocausto no nível inconsciente da imagem de Deus. Diante daquele enorme evento, quem agora está com a razão: o sujeito crente que afirma a criação divina dos homens ou Darwin que demonstra sua derivação dos macacos? Quem está com a razão: o catequista que proclama a santidade celestial da alma ou Freud que a diagnostica como pura energia disponível tanto para o eros como para o thanatos - para o amor e para a morte? E que justiça divina, que paraíso poderia ressarcir as vítimas de Hitler, de Mussolini e de Stalin?
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A emancipação do homem comum encontra agora um lugar privilegiado de confirmação e relançamento na revolução cultural de 1968, marcada pelo duplo slogan "somos todos iguais" e "cada um é único". Com um gesto rápido e repentino, a partir do fatídico maio de 1968, são eliminadas as distâncias e as diferenças que a cultura tradicional, aquela clássico-moderna, endossava para dar uma ordem à convivência civil, familiar e intrapsíquica e, obviamente, para poder controlá-la. Não há mais destinos marcados para ninguém.
Em primeiro lugar, não existem mais para as mulheres: emblemático nesse sentido é a sua emancipação sexual e social, possibilitada pelo direito de voto, pela "pílula", pelo acesso ao ensino superior, pela eliminação dos obstáculos ao seu ingresso para o mundo do trabalho, pela refundação do direito da família, pela desobrigação de grande parte do trabalho doméstico graças à chegada dos eletrodomésticos, além disso coincidindo o início da década de 1960 com o boom econômico e, portanto, com a consequente disseminação da riqueza nas camadas médias da população.
Não existem mais para os jovens que, com as suas manifestações, com a sua música, com a nova coragem de invocar "a imaginação no poder" e "o proibido proibir". Enfim, não existem mais para os homossexuais, sinal de toda a marginalização e formas de repressão de uma cultura religiosa “de bem” e, não raramente, de dupla moral.
É sobre essa base que lentamente vão se redefinindo a ponto de quase desaparecer as idades da vida, as formas canônicas e os ritmos de uma existência, a representatividade social das próprias profissões.
Mais a fundo, no entanto, dever-se-á evidenciar que aqui desmorona definitivamente a barragem da moral, desaparece o freio do senso de culpa e com toda a prepotência o eros vinga-se do universo clássico, que havia profundamente plasmado o espírito ocidental, com os seus temas do pecado, da graça, do contemptus mundi e sobretudo do amor de Deus ligado à necessária renúncia de si, enquanto positivamente tinha apostado quase tudo no poder da categoria do sacrifício.
Justamente o Movimento de 1968 rebela-se contra o casamento entre vida e sacrifício: por outro lado, torna-se um dever libertar-se dos sensos de culpa, da obsessão pelo pecado, da ideia de privações e sofrimentos necessários. O contemporâneo vive, portanto, à luz do ideal da liberalização dos costumes sexuais e da necessidade de uma nova imaginação para a vida humana, feita de liberdade, explorações e espontaneidade.
Afinal, com a conquista da lua, em 20 de julho de 1969, o homem parece lembrar a si mesmo de que tanto as fronteiras quanto os limites são estabelecidos unicamente para serem transcendidos. Infinitamente transcendido.
Ainda precisamos indicar duas outras fontes da pós-modernidade, que marcam, a primeira, a emancipação do homem comum do vínculo da lei, a segunda do excesso de exposição social.
Passemos, portanto, para novembro de 1989, quando o Muro de Berlim cai. É o gesto de uma libertação há muito esperada em relação a uma divisão não natural e violenta da cidade alemã em nome de ódios ideológicos. Mas a queda daquele muro presta-se a significar muito mais. Trata-se de um evento que sinaliza abertamente a perda da confiança incondicional na força das estruturas políticas, das normas, das leis e das instituições por elas previstas e garantidas. Indica o fim da antinomia total entre amigo e inimigo, semelhante e diferente, concidadão e estrangeiro. Aquele muro derrubado é, portanto, o símbolo da vitória da democracia como sistema sociocultural da convivência não violenta dos diferentes, que não depende da força das instituições, mas do consenso dos cidadãos.
Além disso, o início dos anos 1990 é caracterizado pela descoberta de vínculos criminosos entre o mundo político e aquele econômico (lembre-se do caso italiano de "Mãos limpas"); isso obviamente lançou uma sombra sinistra sobre as reais intenções daqueles que se candidatam à liderança das nações.
De repente, as instituições públicas são reconduzidas a uma esfera de naturalidade, de criação humana, passíveis de falibilidade e de corrupção. Já não reconhecemos mais ideias ou teorias caídas do céu que possam orientar a convivência civil e o seu desenvolvimento, mas o que importa agora é a proposta eleitoral e o poder de convicção.
É fácil imaginar como tudo isso prive o espaço público de sua aura e de sua capacidade de orientar os cidadãos para uma presença responsável e ativa na custódia da civitas: já não tem mais fisionomia ética. Nasce uma forma até aqui inédita de cidadão comum, que investe apenas em si mesmo ou, no máximo, em e para aqueles que fazem parte de sua cada vez menor tribo familiar.
A tornar as coisas ainda mais difíceis é o fato de que o cenário global nos anos sucessivos a 1989 rapidamente se caracteriza por forte insegurança, devido às guerras desencadeadas pelo e para o terrorismo de matriz islâmica justamente contra o mundo ocidental; ao mesmo tempo, esse cenário se estreita progressivamente, produzindo indiscutíveis vantagens, mas também suscitando consideráveis preocupações: a economia em escala global desencadeia na verdade grandes formas de concorrência, que não poupam iniciativas de exploração ilícita e que não levam em justa consideração as capacidades não infinitas de resistências que o planeta possui. Tampouco se pode ignorar a imponência que o fenômeno migratório tem assumido nos últimos anos com todos os problemas relacionados com a questão da integração e da segurança, a começar pela própria segurança de quem se aventura em viagens muitas vezes simplesmente desesperadas.
Diante de tudo isso, a política e as suas leis parecem mais um apêndice do que a parte principal de um governo do mundo cada vez mais nas mãos de financistas sem escrupulosos e sem ideais autênticos.
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A última peça dessa reconstrução das origens da pós-modernidade é a invenção, no início da década de 1990, e a subsequente rápida expansão da World Wide Web. Em suma, estamos falando da “revolução digital”, ou seja, da presença cada vez mais maciça na existência cotidiana da Internet e das novas tecnologias de comunicação; o fenômeno é de tal magnitude que é possível calcular que cada um de nós passa mais horas em um dia típico diante de um dispositivo eletrônico do que na companhia de um seu semelhante.
As possibilidades inesperadas e impensadas que a rede oferece estão obviamente redefinindo em grande medida os contextos de trabalho, os processos econômicos, as formas das comunicações institucionais, as práticas educacionais, formativas e escolares, a organização do tempo livre, as formas como ganham vida e são mantidos ao longo do tempo as relações de amizade e afetivas e muito mais. Em particular, vale destacar a oferta que a rede disponibiliza para um processo contínuo de autoformação e autoinformação, a ponto de chegar hoje ao excesso de infodemia!
O que muda graças a tudo isso é a experiência da comunicação, que é uma das principais características do ser humano. O traço mais evidente da comunicação humana, no tempo da web, é a possibilidade inédita de um forte investimento narcísico do próprio "eu" oferecido ao homem comum.
Disso deriva a crescente importância que todos agora atribuem não mais, ou melhor, não só, à própria imagem social, e portanto ao próprio pertencimento social, mas mais à própria imagem na mídia social, que ao contrário da primeira é muito mais afetada pela capacidade do sujeito de utilizar melhor os recursos posto à disposição pelas plataformas de comunicação do que do entrelaçamento com a alteridade real de outros homens e mulheres, que de fato nunca está inteiramente sob o controle de ninguém.
A revolução digital, portanto, completa aquele processo de emancipação do homem comum que é a cifra da pós-modernidade: graças a ela é agora possível ter uma inédita e fascinante apreciação do próprio eu, que marca a verdadeira vitória deste último em relação a todas as hierarquias, a todas as elites, a todos os aparatos e a todos os governos que até agora pretenderam falar em nome de todos e, portanto, em seu nome.
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Neste ponto, podemos tentar fazer uma síntese. E nos perguntar novamente: o que é pós-modernidade? A pós-modernidade, entendida como a época da emancipação do homem comum e, portanto, como a época do homem comum emancipado e continuamente em emancipação, é a "espiritualidade inconsciente" do Ocidente contemporâneo.
Com a pós-modernidade, portanto, ganha espaço um sujeito mais livre, mais consciente de sua própria singularidade, mais aberto a toda forma de experiência, sedento de vida, poder, sexualidade, crescimento; um sujeito, em suma, que encontra seu centro de gravidade no ideal de uma vida para sempre jovem. Com a pós-modernidade entramos de forma total na sociedade da eterna juventude, que não representa uma questão puramente estética, mas constitui a pedra angular do estar no mundo do humano que é comum. O espírito de seu ser e de seu existir.
Aqui se origina o mal-estar do Cristianismo, que durante séculos providenciou respostas e felizes indicações de sentido a um sujeito humano destinado essencialmente a uma vida breve, árdua, dura, com muitas doenças, com tanta pobreza, com grandes instabilidades políticas e com uma constante situação de frustração e, sobretudo, privado de qualquer conhecimento mínimo. Foi o tempo do cristianismo da consolação, da luz, da esperança, do além, da contenção de uma alma ocidental seriamente provada e privada de muito.
Esse cristianismo não funciona mais. Mas publicamente esta é a imagem difundida do Cristianismo (e é aqui que sua relevância/irrelevância está em jogo): a de uma religião que dá consolo a pessoas que não precisam mais dele, que dá esperança para o além-vida a pessoas que não precisam dela, que oferece contenção de sofrimentos e frustrações a pessoas que já não precisam mais e que hoje sofrem, ao contrário, por excesso de prazer e por excesso de usufruição.
Nem é preciso dizer que é necessário ir além do cristianismo da consolação. Que é urgente sair desse imaginário e tentar encontrar-se corajosamente com o sujeito pós-moderno, com sua fortíssima consciência de liberdade e de singularidade e com sua real condição de emancipação.
E é precisamente isso - me parece - a grande tarefa a que hoje o Papa Francisco chama todos os fiéis. Pode-se ser cristão de outra forma daquela que o foram os nossos pais e avós. Não se deve ter medo de mudar. Além disso, é necessário recordar - e cito para encerrar o bom Michel de Certeau evocado no início - que “a tentação é a fixação. Onde Deus é revolucionário, o diabo parece fixista”.