Numa entrevista concedida ao Le Monde, a filósofa italiana explica como a sabedoria dos Antigos, sejam epicuristas, estoicos ou pitagóricos, pode nos ajudar a vivenciar tanto os colapsos do confinamento como os alívios do desconfinamento.
A entrevista é de Nicolas Truong, publicada por Le Monde, 30-05-2021. A tradução é de André Langer.
A filósofa e romancista italiana Ilaria Gaspari publicou Lições de felicidade. Exercícios filosóficos para o bom uso da vida (Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020), um conjunto de exercícios de filosofia aplicada que narra como os preceitos das escolas de sabedoria antiga podem nos ajudar a superar as rupturas e as feridas da vida. Hoje, ela explica ao Le Monde como esses pensamentos nos permitem apreender os tormentos e os impulsos de uma existência perturbada pela pandemia da Covid-19.
Como outros países, a França está levantando algumas das restrições ligadas à crise de saúde. Como apreender esta alegria e estas felicidades redescobertas, que apesar de tudo permanecem muito condicionadas?
Como Sócrates diz no Fédon, o prazer nasce também da cessação de uma dor. Ou seja, nada é mais agradável do que o alívio... E acredito que se tratará, justamente, de um momento de tranquilidade que tanto esperávamos. Essas coisas que antes considerávamos quase banais, como compartilhar um copo no terraço, obter um sorriso, ouvir conversas de vizinhos, sair com os amigos, ir comer no bistrô, viver um ao lado do outro... Depois dessa interminável interrupção, elas voltarão como novas. E tenho que admitir: mal posso esperar para experimentar esse momento.
Existe uma atitude filosófica que poderia nos preparar para esse súbito “excesso” de prazeres?
Certamente! Toda a filosofia antiga, em certo sentido, é uma educação para a moderação, um princípio que perdemos de vista, mas que poderia muito bem nos ajudar agora. O que tentarei fazer todas as manhãs é sondar quais são as minhas necessidades de acordo com a prescrição de Epicuro: perguntar a mim mesmo, em relação a cada um dos meus desejos despertos, a que categoria ele pertence. Se é uma necessidade, uma necessidade natural ou mesmo imperiosa ou, pelo contrário, se não corro o risco de sofrê-la – de me tornar “escravo” deste novo prazer e, assim, desenvolver uma dependência. Já sei que não será fácil, mas este momento, este acontecimento que se avizinha, parece-me uma boa oportunidade para se testar e prestar-se a um novo exercício espiritual.
Por que você procurou os pensadores gregos da Antiguidade para encontrar maneiras de sobreviver ao desespero?
Depois de uma ruptura amorosa dolorosa, decidi ir para a escola dos filósofos gregos, seguindo suas regras de conduta de vida às vezes misteriosas. Após estudar a doutrina de seis escolas antigas diferentes, bem como a vida dos mestres, tentei seguir seus preceitos durante seis semanas: fui sucessivamente pitagórica, eleata, cética, estoica, epicureia e finalmente cínica. A minha ambição era perder os automatismos e os hábitos diários para me reorientar e modificar a ideia que tinha da vida.
Por que faz bem ler Pitágoras ou Epicuro, Epicteto ou Diógenes ao passar por uma provação, como a de uma pandemia?
Durante o primeiro confinamento, fiquei impressionada com a forma como os gregos falaram conosco neste momento crítico. Porque essas escolas, em particular as escolas helenísticas, também floresceram em um período de crise, se por crise entendemos uma mudança seguida de uma perda de pontos de referência: a época das conquistas de Alexandre marcou uma passagem traumática através da qual os cidadãos da polis se tornarão sujeitos, à medida que as fronteiras do mundo se expandiam.
Os gregos têm uma palavra para falar do tempo, não num sentido cronológico, mas qualitativo: kairós. Na medicina antiga, o kairós, o momento certo para intervir, é o momento da crise. Estamos em uma crise coletiva que nos obriga a nos repensarmos. Pensar filosoficamente significa sentir a tensão do desejo de compreender, sem esperar respostas prontas, receitas a aplicar. Não se trata de desenvolvimento pessoal, mas de um ideal pedagógico de educação de si mesmo. Entre os filósofos antigos, existe a ideia de uma filosofia viva, vivida como um “exercício espiritual”, como muito bem disse o filólogo e filósofo Pierre Hadot (1922-2010).
Pode nos dar exemplos desses exercícios espirituais?
Refletir sobre os fragmentos de Pitágoras no contexto do confinamento significa concentrar-se em minúsculas mudanças de hábito, na extensão do rastro que deixamos em nossas vidas. Ler Epicuro, para refletir sobre a natureza de nossos desejos, para não nos deixarmos governar pelo medo. Fazer-se discípulo de Epicteto, lendo seu Manual, para distinguir as coisas que dependem de nós daquelas que estão além do nosso alcance, para concentrar nossos esforços naquilo que realmente podemos mudar. Sem esquecer o cinismo de Diógenes que nos estimula a questionar nossa tendência ao conformismo, e nos obriga a nos perguntar: “do que realmente temos necessidade?” É assim que a filosofia pode nos ajudar a viver os infortúnios, bem como as alegrias de nossos tempos difíceis.
Como não ceder ao medo, mas também superar o sentimento de opressão e às vezes até de colapso que estamos passando neste período?
Sobre este ponto, o filósofo que mais claramente nos fala é Epicuro, um personagem revolucionário à sua maneira, que abriu sua escola não só para as mulheres, o que já era muito raro, mas também para as escravas! Por meio de seus ensinamentos, ele garantiu que ninguém fosse exposto à chantagem do que temia. Ele inventou um tetrapharmakos, uma espécie de medicina lógica, um pensamento racional para ajudar aqueles de nós que o medo aliena: o medo dos deuses, da morte, da dor, de não poder alcançar o prazer da vida, etc. Medos que persistem ainda hoje, seja você um politeísta ou não. É um patrimônio precioso, sobretudo porque testemunha um grande amor pelos outros: o amor de um filósofo generoso que, apesar das perseguições de que foi alvo, nunca desprezou a fraqueza dos homens. Epicuro também aprende a fazer um exame muito sério de seus desejos, sem, no entanto, reprimi-los.
Por que a amizade é um dos laços mais importantes em tempos de provação?
“De todas as coisas boas que a sabedoria nos oferece para a felicidade de toda a nossa vida, a amizade é a maior”, diz Epicuro. Mas ele não fala apenas da amizade entre amigos, mas de uma atenção devotada aos outros, até mesmo aos desconhecidos. É um vínculo subterrâneo que permeia qualquer relação: sempre se pode adotar a postura da amizade, isto é, de uma atitude generosa, semelhante à benevolência desinteressada que constitui o segredo de toda amizade verdadeira. Essa disposição decorre do reconhecimento dos sinais universais da condição humana no outro. Penso que essa terrível pandemia, que nos obriga a admitir nossa própria vulnerabilidade, nos oferece uma oportunidade valiosa de exercer esse olhar e essa atitude.
Por que nossa relação com o tempo e inclusive com o espaço pode ser compreendida de forma diferente graças aos pensadores antigos?
Ao tentar interpretar os paradoxos de Zenão como uma chave existencial, eu refleti sobre o que a pandemia nos apresentou na sequência: que o tempo é apenas uma coleção de momentos que estão todos presentes. O esforço que os anos 2020 e 2021 nos exigiram, nomeadamente o de desistir de nos projetarmos no futuro, é difícil. A menos que você seja um sábio estoico, acho que é impossível para um ser humano viver completamente no presente; mas pensar criticamente sobre a forma que damos ao tempo em nossa própria imaginação pode ser de grande ajuda.
Graças aos gregos, que eram muito apegados ao tempo livre (schole é a palavra para designá-lo, da qual deriva nossa “escola”), aprendi (um pouco) a me libertar das injunções contemporâneas para capitalizar o tempo, para investi-lo. Devo acrescentar que tive outro mestre para isso: meu cachorro, adotado após minha semana cínica. Os cães têm um sentido maravilhoso do presente: observar outras formas de vida, partilhar momentos de vida com eles, é um excelente exercício de filosofia!
Depois deste ano doloroso, a felicidade pode voltar a ser uma ideia nova na Europa?
Penso – espero, embora seja uma atitude pouco estoica – que sim. Nossa imagem muito fotogênica de felicidade, concebida como um momento de euforia, um sorriso no Instagram, mostrou seus limites. E se aproveitássemos esse momento para retomar a ideia grega de felicidade? Ou seja, a eudaimonìa, “o apaziguamento do seu daemon pessoal”. Uma jornada repleta de armadilhas, certamente, mas que leva a se conhecer, a se tornar o que se é.
Nascida em Milão em 1986, Ilaria Gaspari estudou primeiro filosofia na Escola Normal de Pisa. Neste ambiente ao mesmo tempo “gentil e competitivo”, a jovem filósofa tem a impressão de viver “como numa escola socrática”. Ela extrairá de suas memórias de impetuosa erudita, ao mesmo tempo alegre e melancólica, um romance sobre essas portas fechadas de estudante, L'Ethique de l´aquarium (Grenelle, 2017). Depois de um mestrado dedicado à teoria dos afetos de Spinoza, ela parte para Paris e obtém o doutorado na Universidade de Paris-I – Panthéon-Sorbonne, sob a supervisão de Chantal Jaquet, uma especialista do corpo e particularmente conhecida por seu estudo filosófico da passagem de uma classe social para outra (Les transclasses ou la non-reproduction, PUF, 2014).
Instalada entre 2012 e 2016 em um estúdio de 17 m2 próximo à estação de metrô Pireneus – “Um paraíso”, lembra-se ela –, Ilaria Gaspari não abre mão da literatura. Fã de Mark Twain, Denis Diderot e Charles Dickens, ela agora dá cursos de redação autobiográfica em Turim e Roma, e colabora com vários jornais on-line, mas também com o jornal Corriere della Sera, no qual escreve crônicas filosóficas.
Um rompimento amoroso brutal leva-a a retornar aos filósofos antigos. E perceber que “a filósofa se tornou acadêmica demais”. Porque Epicuro ou Epicteto não são apenas teóricos, mas mestres de vida. “Desesperada, escreve, largada da noite para o dia após dez anos de amor”, ela tem que se mudar e se encontra diante de “trinta caixas de pura sabedoria humana”, que a reenviam à sua história, porque “esvaziar uma biblioteca é como se inventar arqueólogo de si mesmo”, mas também à sua relação com o saber: uma disciplina estudada no “tanatófilo” como uma “ciência morta”. Ela então decide literalmente desempacotar tudo e a viver de acordo com os preceitos dessas escolas, algumas das quais, como a de Pitágoras, “não são tão diferentes de uma seita”, admite.
Seis semanas de questionamentos depois, ela volta a se encontrar com as cores, à semelhança das suas roupas e de seu interior: “Desde que perdi minhas velhas certezas e aprendi a me deixar dominar pelas regras das escolas antigas, encontrei um prazer há muito tempo perdido”, escreve esta jovem que adora os clássicos, ao mesmo tempo se mantém firme nas preocupações de sua geração e de seu tempo. Este desejo de lutar contra as paixões tristes continua no seu último livro, Vita segreta delle emozioni (A vida secreta das emoções), que acaba de ser publicado pelas Edições Einaudi na Itália. Não surpreende, vindo de uma autora que se arrisca a “redescobrir a juventude da filosofia”.