10 Mai 2021
"Observada em perspectiva, a difusão da teoria de Maturana nos convida a relativizar a validade atual das divisões territoriais do conhecimento e, por outro lado, as possibilidades de que os avanços científicos produzidos na periferia do mundo sejam incorporados ao desenvolvimento do conhecimento científico e, portanto, sua memória constitui um importante estímulo e exemplo a imitar", escreve Marcelo Arnold-Cathalifaud, professor, acadêmico da Universidade do Chile desde 1977. Membro do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais. Presidente da Associação Sociológica Latino-Americana entre 2013 e 2015, em artigo publicado por Ateliê de Humanidades, 07-05-2021.
O grande mestre Humberto Maturana nos deixou, que é reconhecido por ter sido, juntamente com Francisco Varela, o teórico da “autopoiesis”. Sua contribuição, com a teoria dos seres vivos e a biologia da cognição e do amor, é trandisciplinar, influencia tanto as ciências naturais quanto as humanas.
Em sua homenagem, publicamos o texto do chileno Marcelo Arnold-Cathalifaud, que foi amigo de Maturana e pesquisa sobre teoria dos sistemas sociais.
Agradecemos a Arnold-Cathalifaud pelo generoso e pronto envio do texto.
O trabalho do Humberto Maturana é de incalculável relevância. A teoria da autopoiesis se desenvolveu juntamente com seus colaboradores, a partir da qual ele explica a reprodução da vida. De um simples laboratório de biologia na Faculdade de Ciências da Universidade do Chile, a teoria se espalhou pelo mundo científico e foi incorporada em múltiplas disciplinas.
A ressonância incomum obtida por um conceito biológico em outras áreas do conhecimento pode ser explicada por sua harmonia com ideias desenvolvidas em outros campos. A este respeito, Francisco Varela, seu mais importante colaborador, assinalou que: “Se a autopoiesis teve influência é porque soube se alinhar com outro projeto cujo centro de interesse é a capacidade interpretativa do ser vivo que concebe o homem não como um agente que ‘descobre’ o mundo, mas que o constitui”. É o que podemos chamar de ‘virada ontológica’ da modernidade, que no final do século XX é delineada como um novo espaço de vida e pensamento social que certamente está mudando progressivamente a face da ciência” (Varela, 1994: 2).
Com a publicação de “Das máquinas e dos seres vivos“, em 1973, a noção de autopoiesis começa a se espalhar. No entanto, esta ideia remonta vários anos antes, quando Maturana, de volta ao Chile em 1960, e após obter seu PhD em Biologia na Universidade de Harvard, começou a trabalhar no que ele identificou como a pergunta que o apaixonou por vários anos: que tipo de sistema é um ser vivo? No início de 1964 são especificadas suas primeiras elaborações “… percebi que o que definia e de fato constituía seres vivos como entidades autônomas que se auto-referiam em seu simples funcionamento era que eles eram unidades discretas que existiam como tais na contínua realização e conservação da circularidade produtiva de todos os seus componentes, de modo que tudo o que acontecia com eles ocorria na realização e conservação daquela dinâmica produtiva, que os definia e ao mesmo tempo os constituía em sua autonomia” (Maturana, 1994: 6).
Humberto Maturana (Foto: Ateliê de Humanidades)
Já em 1969 Maturana usava a noção de “organização circular”, no texto “Neurofisiologia da cognição“, para explicar os seres vivos dessa forma (Maturana, 1969). Mas é em abril de 1973, com a publicação da primeira edição do livro “Das máquinas e dos seres vivos“, que aparece o conceito de autopoiesis. O objetivo deste texto foi descrever a organização circular que caracterizou a vida e é o resultado do trabalho realizado entre Humberto Maturana e Francisco Varela. A palavra autopoiesis foi encontrada no processo de elaboração deste projeto e, aparentemente, foi o produto de uma inspiração que surgiu em uma conversa com um filósofo amigo de Maturana, o professor José María Bulnes. No início, as novas ideias não tiveram a aceitação que os autores esperavam porque, embora tenham terminado sua redação no final de 1971, somente depois de terem sido rejeitadas por várias editoras, somente no final de 1972 conseguiram que a Editorial Universitaria – de propriedade da Universidade do Chile, onde Maturana era acadêmico – decidisse traduzi-la, já que a versão original tinha o título “Autopoiesis: organização de sistemas vivos“. Assim, surgiu o livro, com o título espanhol “De Máquinas y Seres Vivos”.
Logo depois, em 1974, surgiu o primeiro texto em inglês onde o conceito foi utilizado: “Autopoiesis: the organization of living Systems, its characterization and a model” (Varela, Maturana, Uribe, 1974). Este artigo tinha apenas como objetivo observar um fenômeno específico de autopoiesis e modelar seu comportamento, mas permitiu que o conceito se espalhasse em círculos de língua inglesa. De fato, em 1976, na Reunião Internacional Sistêmica em Nova York, houve uma sessão especial chamada Autopoiesis. Neste processo também participaram cientistas como Heinz von Foerster, Lynn Margulis, Stafford Beer, Erich Fromm, Ivan Illich e Luigi Luisi. Por outro lado, surgiram os primeiros livros dedicados a este conceito: Autopoietic Systems (Benseler, F. Heil, P.; Kock, W., 1980) e Autopoiesis: uma teoria da organização viva (Zeleny, M. (ed), 1981). Nas ciências sociais, a aceitação do conceito é reforçada quando o eminente sociólogo alemão Niklas Luhmann incorpora a noção de autopoiesis ao próprio núcleo de sua teoria, que ocorre por volta de 1983.
Observada em perspectiva, a difusão da teoria de Maturana nos convida a relativizar a validade atual das divisões territoriais do conhecimento e, por outro lado, as possibilidades de que os avanços científicos produzidos na periferia do mundo sejam incorporados ao desenvolvimento do conhecimento científico e, portanto, sua memória constitui um importante estímulo e exemplo a imitar.
Mas Humberto Maturana não reduziu sua genialidade a um conceito especializado, ele explorou diferentes campos e suas contribuições à teoria do conhecimento, psicologia, educação, ética e ação prática são notáveis. Ele também expôs uma visão humana da sociedade que tinha o amor e a colaboração em seu centro e, simultaneamente, destacou as enormes limitações que as estruturas patriarcais acarretam para a evolução humana e seu destino.
Em nível pessoal, e no que diz respeito à nossa experiência, Humberto foi um homem generoso, entusiasta, rigoroso – mas não dogmático. Sempre uma contribuição. Em resumo, uma boa pessoa. Sentiremos falta de sua presença na mídia, de suas opiniões e escritos, ele permanecerá sempre entre nossas boas lembranças.
Benseler, F. Heil, P. Kock, W. 1980 Autopoietic Systems, Campus Verlag Frankfurt
Maturana y Varela, 1994 [1973]. De máquinas y seres vivos. Autopoiesis: la organización de lo vivo. Editorial Universitaria, Santiago de Chile.
Maturana y Varela, 1984. El árbol del conocimiento.
Maturana, H. 1969 Neurophysiology of cognition. en Cognition a Multiple View, editor: Paul Garvin, Spartan Books.
Varela, Maturana, Uribe, 1974. Autopoiesis: tile organization of living Systems, its characterization and a model, en Byosystems, 5:187-196.
Zeleny, M. (ed), 1981 Autopoiesis: a theory of the living organization. N. Holland, New York.
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O perfil de um mestre: Humberto Maturana Romecín (1928-2021) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU