21 Abril 2021
No Pará, a Terra Indígena Alto Rio Guamá sofreu com incêndios florestais e viu o desmatamento crescer em meio à pandemia.
imagem : Cacique Reginaldo Tembé (Foto de Cícero Pedrosa Neto | Amazônia Real)
O Pará é a unidade da federação que mais desmatou e o segundo estado que mais queimou suas florestas neste ano, num ritmo que já vinha acelerado desde 2015 e se acentuou mesmo durante a pandemia. Entre o ano de 2020 e 12 de abril de 2021, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Pará acumulou cerca de 39.191 focos de incêndio, liderando o ranking entre os nove estados da Amazônia Legal que mais desmatou.
A estimativa da taxa de desmatamento na região, que compreende nove estados, foi de 11.088 quilômetros quadrados de corte raso entre 1º de agosto de 2019 e 31 julho de 2020. Neste ano, o número de focos de incêndio no bioma amazônico chegou a 102.707, mais de quatro vezes e meia a quantidade registrada no pantanal.
Mais de 40% das queimadas se deu em áreas de desmatamento recente no Pará e, ainda mais preocupante, em patamares acelerados no terceiro trimestre de 2020. Só no mês de outubro foram detectadas 10.876 focos de incêndio pelo Inpe, mais que o dobro do registrado no mesmo período em 2019. Quando praticamente metade do desmatamento da Amazônia vem acontecendo em solo paraense e ainda assim as notícias da destruição não cessam nem mesmo com uma pandemia, a própria sobrevivência parece uma luta perdida.
Os focos de queimadas consumiram com rapidez árvores centenárias e espantaram ou mataram os animais, como jabutis e macacos na Terra Indígena Alto Rio Guamá (Tiarg), na divisa do Pará com o Maranhão. As lideranças da povo Tembé Tenetehara convidaram a reportagem da Amazônia Real para visitar a região, entre 26 e 28 de setembro de 2020, e documentar o cenário de destruição.
“O que eu sinto é que um pouco de nós indígenas está se acabando, porque o índio tem uma relação muito próxima com a floresta, com a natureza. Isso [as queimadas] descaracteriza o índio, porque o índio vive na floresta, ele é da floresta”, disse Valdeci Tembé, de 53 anos, liderança da comunidade Cajueiro. Ele gravou em 15 de setembro um vídeo com as primeiras cenas da devastação do território pelo fogo e clamou por socorro aos órgãos de fiscalização como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Fundação Nacional do Índio (Funai). A equipe de brigadistas militares e do Previfogo do Ibama combateram os incêndios.
Para se manter distante dos indígenas, a reportagem optou em fazer imagens aéreas de drone para mostrar não só a continuidade de focos de queimadas em diversos pontos do território, mas também como eles eram numerosos e de difícil acesso em alguns casos.
TI Alto Rio Guamá sofreu com as queimadas em 2020 (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
A entrevista com o cacique Reginaldo Tembé também foi à distância. Ele surgiu na estrada de máscara, por entre a densa fumaça que cobria o sol na mata em chamas, desviando de troncos caídos – alguns ainda em brasa e estalando. Enquanto limpava os olhos vermelhos do calor na manga da camisa em meio a um ar irrespirável, ele explicava: “A gente nunca tinha visto uma queimada como essa; isso assustou muito a gente, ainda mais agora com esse vírus solto por aí”.
Ao chegar na cancela que separa o território tradicional das numerosas fazendas e colônias da região, o cacique Reginaldo explicou que antes da descoberta do fogo próximo às aldeias Cajueiro e Ka’a kyr, os 40 homens de diferentes comunidades que integram o grupo dos Guardiões da Floresta revezavam-se para tentar impedir a entrada da Covid-19. As queimadas mudaram os planos. Era preciso combater a ameaça de destruição dos 280 mil hectares do território – um dos mais antigos a ser demarcado pelo Estado brasileiro, e palco de inúmeros conflitos agrários, perseguições e ameaças diretas à vida de lideranças indígenas, que resistem.
O território possui outras 33 aldeias, habitadas também por membros dos povos Timbiras, Ka’apor e Munduruku, divididas entre as margens do Rio Guamá e Gurupi em quatro municípios: Paragominas, Esperança do Piriá, Santa Luzia do Pará e Garrafão do Norte.
Nem os Guardiões, que surgiram diante da inação do governo federal para reverter a invasão das terras indígenas, nem os 10 brigadistas do Prevfogo, que havia sete dias combatiam o fogo na Tiarg, quando a equipe da Amazônia Real os encontrou, sabiam dizer exatamente onde e como o fogo tinha se originado.
“Não dá pra falar com precisão da onde é que veio, quem tocou fogo, a maior preocupação nossa foi não deixar esse fogo avançar, mas não se descarta que possam ter sido pessoas com más intenções e faltas de cuidados também, porque a floresta no verão é complicada, o fogo se alastra muito rápido”, disse Valdeci Tembé, liderança indígena que em 2012 precisou se afastar de sua aldeia para não ser assassinado depois de uma operação deflagrada pelo Ibama para retirada de madeira ilegal das terras indígenas. Durante a ação, acompanhada também pela Polícia Federal (PF), os agentes e os indígenas foram alvos de disparos desferidos por madeireiros.
Posseiros, madeireiros e grileiros são problemas históricos na Tiarg. O Ministério Público Federal (MPF) informou que entre 2017 e 2020 foram ajuizadas 15 ações por invasões ilegais na terra indígena, e que no mesmo período o MPF requisitou à PF a abertura de 15 inquéritos para investigar outros casos de invasões, 14 por extração ilegal de madeira e 1 por plantio de psicotrópicos. Em setembro do ano passado, o órgão chegou a pedir também à PF e ao comando do Exército na capital paraense, que por meio da Garantia de Lei e Ordem (GLO), fosse feita uma operação urgente para evitar ataques de madeireiros contra os indígenas da região.
Em 11 de dezembro, meses depois da visita da Amazônia Real, dez serrarias ilegais foram fechadas nos municípios de Mãe do Rio, Capanema e Cachoeira do Piriá, com o cumprimento de 13 mandados de busca e quatro de prisão preventiva. A ação, organizada pelas Forças Armadas, Ibama e Secretaria Estadual de Meio Ambiente, desarticulou uma quadrilha que roubava e vendia a madeira para a região Nordeste. Serrarias atuam no entorno da Tiarg livremente. A Associação das Mulheres Indígenas do Gurupi (Amig) encaminhou ao MPF um pedido para que os recursos do leilão da madeira apreendida fossem revertidos para as comunidades indígenas.
Guardiões da Floresta da etnia Ka’apor na aldeia Cajueiro: lutaram sozinhos (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Desde que os primeiros focos de queimadas foram identificados, já a partir de julho deste ano, uma extensa mobilização foi realizada pela Amig – única entidade legalizada atuando no território atualmente – e pelos caciques das aldeias do Alto Rio Guamá. Vários ofícios clamando por ajuda para conter o fogo foram enviados ao Ibama, MPF, Corpo de Bombeiros, à Funai e aos governos estadual e federal. Os primeiros resultados demoraram muito para chegar e, quando vieram, não foram suficientes.
“A Funai não mandou nenhuma pessoa pra cá, o que eles fizeram foi ajudar a informar o MPF e o Exército, mas da Funai mesmo não veio ninguém até o momento”, denunciou, em setembro, Reginaldo Tembé. Para a líder Valsanta Tembé, a maior dificuldade sentida pelos indígenas dizia respeito ao fato deles não possuírem os instrumentos necessários para combater as queimadas.
O apoio imediato que chegou às aldeias veio dos Guardiões da Floresta do povo Ka’apor, do Maranhão. Eles passaram cerca de uma semana combatendo o fogo com os Tembé. O cacique Reginaldo conta que os “parentes Ka’apor”, como ele se refere, precisaram voltar mais cedo do que previam, mas que a ajuda foi fundamental para conter o avanço do fogo que, por pouco, não queimou as casas das aldeias Cajueiro e Ka’a kyr, distantes cerca de 2 quilômetros uma da outra. As roças não conseguiram escapar.
Bombeiros do 1º Grupamento de Proteção Ambiental de Paragominas estiveram com alguns homens na TI durante o mês de setembro. A equipe da Amazônia Real constatou a presença de um destacamento do Prevfogo/Ibama, vindo do município de Itaituba, composto por dez brigadistas e dois coordenadores.
Em nota, o Comando Conjunto Norte do Exército informou que, após contato da Funai, 30 militares estiveram entre 12 e 24 de setembro na TI Alto Rio Guamá, combatendo “51 focos de incêndio”, em parceria com o Corpo de Bombeiros do Pará. A nota afirmava ainda que ação fez parte da Operação Verde Brasil 2 e que “após não ser identificado mais nenhum foco de incêndio na região, fato ocorrido por volta do dia 24 de setembro, as tropas do 2º BIS retraíram para sua sede”.
O cacique da aldeia Cajueiro, Reginaldo Tembé, tem estado na linha de frente do combate ao fogo que quase consumiu sua aldeia. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real-26/09/2020)
As queimadas iniciadas no início do mês de setembro, atingiram fortemente a aldeia Ka’a kyr, na Terra Indígena Alto Rio Guamá. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real-26/09/2020)
As queimadas iniciadas no início do mês de setembro, atingiram fortemente a aldeia Ka’a kyr, na Terra Indígena Alto Rio Guamá. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real-26/09/2020)
Os Tembé decidiram isolar por completo a entrada que serve como rota principal de acesso às 18 aldeias localizadas às margens do Rio Gurupi, duas das quais situadas no estado do Maranhão. Ângela Amaral, técnica de enfermagem que trabalha no posto polo da aldeia Cajueiro, explicou, em setembro, que o protocolo de isolamento social adotado pelo cacique Reginaldo Tembé em março foi fundamental para o controle dos casos de Covid-19 na aldeia.
Até hoje, já com as flexibilizações, os indígenas que precisam ir até a cidade são testados antes de sair e, quando retornam, são testados na Casa de Atenção à Saúde Indígena (Casai), em Paragominas. O município paraense até o dia 12 de abril deste ano, tinha confirmados 6.335 casos de infecção pelo novo coronavírus e 159 óbitos. Segundo o boletim epidemiológico da Sesai, o Dsei Guamá-Tocantins, que abrange cerca de 7.760 indígenas de 21 povos, divididos em 17 municípios no Pará e 1 no Maranhão, havia registrado 17 óbitos por Covid-19 e 1527 casos confirmados, dos quais 10 ativos atualmente.
Questionada pela Amazônia Real sobre o número de casos da doença na Tiarg, a Sesai informou em nota que não disponibiliza dados do avanço do novo coronavírus por povo ou Terra Indígena.
Valsanta Tembé, de 36 anos, presidente da Amig, associação criada em 2018 para lutar por melhorias na Tiarg, afirmava que a fumaça sentida nos mais de 70 dias consecutivos de queimadas, tinha afetado a saúde nas aldeias, sobretudo de idosos e crianças. Eles apresentaram tosses, falta de ar e dores de garganta. Os sintomas, segundo Valsanta, eram temidos porque se confundiam com os causados pelo novo coronavírus.
“Olha, eu como mulher indígena Tembé me preocupo bastante com esse vírus. Temos um histórico de resistência grande aqui, mas teve um período em que a nossa etnia quase foi extinta e uma das causas para chegarmos nisso, foram doenças como a Covid-19”, explicou Valsanta se referindo às epidemias de sarampo que matou um número expressivo de Tembé entre os séculos XIX e XX.
Desde o início da pandemia de Covid-19, antes mesmo do avanço das queimadas, a Associação das Mulheres Indígenas do Gurupi (Amig) e os caciques das aldeias solicitaram aos órgãos de assistência social do município de Paragominas, o envio de cestas básicas e produtos de limpeza para garantir a segurança alimentar das famílias e as medidas de prevenção contra o novo coronavírus na Terra Indígena Alto Rio Guamá.
Em setembro, seis meses do pedido inicial, o número de cestas que havia chegado era insuficiente. Segundo a assessora técnica da Amig Claudia Kahwage, os indígenas precisaram fazer uma campanha nas redes sociais pedindo por alimentos. Segundo o Instituto Socioambiental, existem cerca de 1.727 pessoas vivendo no território.
Viatura da SESAI em visita de rotina à casa de um indígena na aldeia Cajueiro (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real- 26/09/2020)
O Ministério Público Federal no Pará, em 12 de junho de 2020, havia entrado com uma ação na Justiça Federal contra a União e a Funai, visando garantir o fornecimento mensal de 4.758 cestas básicas e de 4.758 kits de higiene para atender as comunidades indígenas do Baixo-Tocantins. O pedido foi acatado pela Justiça que estabeleceu o prazo máximo de 10 dias para o início do cumprimento da liminar, sob pena de multa diária de R$ 10 mil. O governo federal descumpriu os prazos estabelecidos e, em 5 de outubro, o MPF pediu à Justiça que procedesse com a aplicação imediata da multa.
Em 15 de dezembro a Funai apelou da decisão, mas não conseguiu comprovar que havia acatado a decisão da justiça. Diante disso, em 21 de janeiro deste ano, reconhecendo a urgência no atendimento das demandas dos indígenas daquela região, a justiça não só aumentou o número de cestas e kits de higiene para 5.042, como também aumentou para R$ 20.000,00 a multa diária pelo descumprimento da decisão.
A Funai e a União voltaram a apresentar recursos e no dia 18 de março o MPF se manifestou contra-argumentando os recursos apresentados pelos órgãos federais. O processo agora aguarda novas decisões da justiça.
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A luta dos Tembé contra invasores, queimadas e Covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU