Fornecedora da Cargill, a SLC Agrícola desmatou, em 2020, mais de 5 mil hectares de Cerrado para cultivar soja em Formosa do Rio Preto (BA). A trader estrangeira, maior empresa privada dos EUA, comprometeu-se a barrar a prática em suas cadeias produtivas.
Parte da soja da SLC adquirida pela Cargill provém de terras griladas, segundo uma investigação do Ministério Público Federal com o Supremo Tribunal de Justiça. O crime envolve terras do fundo americano TIAA, hoje arrendadas para a gigante agrícola brasileira.
Um dos supostos articuladores desta grilagem, Luiz Ricardi, foi sócio do fundo americano enquanto o esquema operava. O TIAA gerencia as aposentadorias de professores dos EUA e já foi acusado de participar de grilagens como essa no Cerrado.
À Mongabay, a Cargill garantiu que “não há restrição à soja comprada da SLC em 2020”. No ano anterior, a trader comprou mais de 25% de toda a produção desta empresa.
A reportagem é de Caio de Freitas Paes, publicada por Mongabay, 14-12-2020.
Quem viaja ao extremo oeste da Bahia se vê cercado por lavouras de soja preenchendo toda a faixa entre o horizonte e as margens de rodovias federais, como a BR-135, e estaduais, como BA-225 ou BA-459. Apelidada de nova fronteira do grão no Brasil, a região tem suas estradas tomadas por caminhões atulhados com insumos, rebanhos e toneladas da oleaginosa. A safra 2019-2020 foi a 2ª melhor da história no oeste baiano: mais de 6 milhões de toneladas de soja foram produzidas no estado. Este desempenho atrai grandes empresas, como a SLC Agrícola, uma das maiores produtoras de grãos do Brasil.
Durante o pico do contágio de coronavírus no país, em meados de junho, Aurélio Pavinato, executivo-chefe da SLC, chegou a dizer que “o agronegócio cumpre o papel de produzir alimentos de maneira sustentável”. O que Pavinato não contou é que sua empresa desmatou uma área de 5,2 mil hectares de Cerrado, só no oeste baiano, entre janeiro e março de 2020 – ou seja, mais de 5 mil campos oficiais de futebol. Em outubro deste ano, outros 4 mil hectares queimavam no mesmo local. A ONG Chain Reaction Research, que monitora o mercado global de commodities agrícolas, flagrou a devastação via satélite.
A fazenda Parceiro, palco da devastação, fica em Formosa do Rio Preto, município campeão de desmatamento em todo o Cerrado. Uma parte da área da fazenda, atualmente usada para o cultivo de soja, foi englobada por uma ambiciosa grilagem investigada pela justiça, em uma história que ilustra o domínio do agronegócio na savana brasileira, cujos efeitos impactam uma teia global de negócios e pessoas. Exemplo disso é a maior empresa privada dos Estados Unidos, a Cargill, que comprou pouco mais de 25% de toda a produção da SLC em 2019.
Desmatamentos e queimadas não afugentaram a trader americana, que segue comprando a soja produzida na fazenda Parceiro – fato confirmado à Mongabay pela própria Cargill. Suas escolhas atingem uma imensa cadeia de consumidores, pois ela é dona das marcas de óleo de soja Liza e Purilev e fornecedora de redes como KFC e McDonalds.
Porém, não são apenas problemas ambientais que cercam as terras da SLC no oeste da Bahia. Pesquisadores ouvidos pela Mongabay ressaltam a insegurança em torno de muitos títulos fundiários das fazendas na região, fato que envolve a companhia agrícola, seus clientes e consumidores.
“Povos tradicionais foram encurralados pela soja [no oeste baiano] e, conforme chegaram investidores internacionais, sua resistência ficou mais difícil”, afirma Carla Morsh, doutora em ciências sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Suas pesquisas estimam que mais de 17 mil km2 de Cerrado estejam sob o domínio de grupos internacionais, ou seja, mais de três vezes a área do Distrito Federal. É um drible na legislação, que limita a posse de terras a estrangeiros.
Grupos de várias nacionalidades se envolvem “com áreas que sofrem com grilagens desde os anos 1960” no Cerrado baiano, diz a cientista social. O caso de SLC e Cargill não foge à regra e revela ainda a presença de outro investidor de peso dos Estados Unidos, envolvido há anos com este tipo de crime na Bahia.
Centro de processamento e distribuição da trader Cargill no Cerrado do oeste baiano. (Foto: Victor Moriyama | Greenpeace)
O roubo de terras é um delito recorrente no oeste da Bahia. Grandes empresas e investidores se veem em um campo minado graças aos títulos fundiários fraudados, que lá proliferam. “Existe toda uma estrutura local, com diversas camadas de ilegalidade por trás da apropriação do território, profissionalizadas e até com participação de políticos”, afirma Carla Morsh.
O Ministério Público Federal e o Superior Tribunal de Justiça corroboram esta percepção. Uma investigação conjunta revela um esquema de corrupção e grilagem envolvendo inúmeras propriedades – entre elas, parte da fazenda Parceiro, da SLC, cuja produção é adquirida e exportada pela Cargill.
Indiretamente, o caso resvala ainda na Teachers Insurance and Annuity Association of America, fundo de investimentos mais conhecido por sua sigla, TIAA. São os gestores do dinheiro das aposentadorias de professores dos Estados Unidos.
O TIAA arrenda parte de suas terras em Formosa do Rio Preto à SLC por meio de uma nebulosa teia de empresas. Um dos antigos sócios do fundo americano neste negócio tem papel relevante na grilagem investigada pela justiça. A trama apurada pelo Ministério Público pede um mergulho em datas e nomes.
Em novembro de 2019, o órgão revelou, por meio da Operação Faroeste, um esquema de corrupção bilionário na Bahia, obra de um grupo de advogados, estelionatários e até mesmo desembargadores. Alguns deles estão presos desde então, com juras de morte contra possíveis delatores e queimas de arquivo relacionadas ao caso.
As investigações revelam que, por meio de propinas, o grupo conseguiu decisões favoráveis em uma disputa por terras em Formosa do Rio Preto. Uma destas sentenças fez a grilagem saltar de 43 mil hectares para 366 mil hectares, mais de três vezes a área do município do Rio de Janeiro. O esquema só foi possível pelo uso de um documento de gaveta, o título da fazenda São José, cujos limites aumentaram muitas vezes desde 2007.
A cada sentença favorável no Judiciário, propriedades vizinhas eram engolidas: foi o caso das fazendas United e Parceiros (com “s”). Estas duas são ligadas à Radar S/A, uma parceria entre o fundo dos professores americanos (TIAA) e a companhia agrícola brasileira Cosan. As fazendas United e Parceiros recebiam verbas por meio de uma rede de investimentos estrangeiros ligados ao TIAA, como o grupo Nuveen e os fundos Mansilla e TCGA I. O elo entre as fazendas e os investidores do exterior também foi identificado pela Chain Reaction Research e pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Os investidores americanos também contavam com sócios locais, como Luiz Ricardi, da ‘velha guarda’ do agronegócio na Bahia. Ele era um dos responsáveis, junto ao TIAA, pela fazenda Parceiros, avaliada em mais de R$19,2 milhões segundo a Receita Federal.
Mais que isso, Luiz Ricardi é um dos protagonistas da grilagem investigada pelo Ministério Público. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, ele estaria “preparando uma área dentro da fazenda [grilada]” para atividades agrícolas, dada sua experiência no ramo, e ganharia parte das terras roubadas. Os crimes referem-se a um período em que ele era sócio dos investidores americanos.
A Mongabay procurou representantes do fundo TIAA, mas não obteve retorno. Luiz Ricardi, também procurado, não foi encontrado.
Decisão judicial do Superior Tribunal de Justiça, autorizando a execução da Operação Faroeste. (Imagem: STJ)
Chama atenção que uma das propriedades do fundo TIAA siga sob o domínio dos grileiros. A empresa de fachada usada no esquema ainda detém o registro da “Parceiros (Fazenda São José – Parcela 01 – Remanescente II)“. O registro consta como ativo segundo o Sistema de Gestão Fundiária do governo federal, mas sem confirmação junto ao cartório responsável pelo título de terra.
Aqui, as histórias de desmatamento para cultivo de soja e grilagem se encontram.
Desde 2012, a SLC cultiva algodão e soja no que ela denomina como “fazenda Parceiro” (sem o “s”), desmatada e queimada em Formosa do Rio Preto durante a pandemia. É uma propriedade com mais de 42 mil hectares – cerca de um quarto deles são arrendados, sem detalhes sobre seus donos, como relata a própria SLC.
A Mongabay consultou os limites territoriais do imóvel e também os da fazenda do TIAA, englobada no esquema investigado pela justiça. A análise mostra como a SLC tem se valido de terras griladas para o cultivo de soja, exportada pela Cargill e outras traders para diversos continentes.
Questionada, a SLC Agrícola disse que “apenas as porções norte e oeste [da fazenda Parceiro] estão em operação atualmente”. Justamente na parcela oeste é onde se localizam as áreas envolvidas na grilagem investigada pelo Ministério Público. A empresa confirma que o arrendamento de parte desta fazenda deriva de uma parceria com a Radar S/A, ligada aos americanos do TIAA.
As terras arrendadas da SLC (tracejadas em amarelo) estão entre as áreas griladas com suposto apoio de Luiz Ricardi, antigo sócio do fundo dos professores americanos, TIAA. (Imagem: Prcros-SLC_imagem AidEnvironment. Fonte: Incra e SLC)
Tudo o que acontece nas terras da SLC dispara uma reação em cadeia global. Um exemplo é a pressão que seu principal sócio, o fundo de investimentos britânico Odey Asset Management, sofre por conta dos desmatamentos – mesmo quando legais – da gigante agrícola no Cerrado. A pressão se repete sobre quem compra da SLC Agrícola.
Somente em 2019, as traders Amaggi-Louis Dreyfus, Bunge e Cargill gastaram mais de R$1,4 milhão em produtos da SLC. Em tese, são companhias preocupadas com o meio ambiente, a ponto de criarem um fórum para coordenação de práticas sustentáveis no Cerrado – para elas, o oeste baiano é uma região prioritária para sua conservação.
“As três companhias comprometeram-se com o desmatamento zero”, diz a Chain Reaction Research. A organização também afirma que “as supressões recentes da SLC [em Formosa do Rio Preto] parecem uma violação direta [ao compromisso]”, uma prática que não é totalmente inédita.
Com base em imagens de satélite, a mesma ONG estima que a SLC derrubou 39 mil hectares só de Cerrado entre 2011 e 2017, área pouco maior que a da capital mineira, Belo Horizonte. Antes, entre 2007 e 2010, o Ibama multou a produtora brasileira de grãos em mais de R$12,5 milhões por desmatamento ilegal, como revelado pelo observatório De Olho nos Ruralistas.
A SLC, por sua vez, diz “que todas as áreas foram abertas respeitando a legislação vigente e com as devidas autorizações/licenças”. O Código Florestal realmente permite a derrubada de até 80% de matas nativas em fazendas no Cerrado – na Amazônia, o padrão é bem menor, 20%.
As consequências falam por si. O oeste baiano perdeu dois Distritos Federais (algo como 11 mil km2) só de Cerrado nos últimos 20 anos.
O mapa mostra a distribuição das fazendas da SLC Agrícola na região Centro-Norte do Brasil. A ONG Chain Reaction Research estima que a empresa seja responsável pelo desmatamento de 39 mil hectares de Cerrado. (Imagem: SLC)
Já a Cargill disse à Mongabay que não há restrição à soja comprada da SLC em 2020. A trader se comprometeu com uma política de desmatamento zero no Cerrado até o fim do ano, mas a diretora de sustentabilidade do grupo já admitiu que não seria possível. “Apesar de nossos esforços, nossa indústria ficará aquém da meta de eliminar, em 2020, o desmatamento”, disse Ruth Kimmelshue, da Cargill, em junho de 2019.
A própria Cargill já foi multada por incentivar o cultivo de soja em áreas proibidas no Cerrado, no estado do Maranhão. Uma recente investigação do Greenpeace mostra que o mesmo foi feito no oeste baiano. A mesma ONG endossa denúncias quanto à soja da SLC, comercializada durante a pandemia pela trader americana.
No fim de novembro, o Greenpeace rastreou a commodity cultivada em Formosa do Rio Preto até o mercado consumidor do Reino Unido e lembra que “as revelações surgem no momento em que o governo britânico debate uma nova legislação para excluir o desmatamento das cadeias de abastecimento” do país.
Esta reportagem contou com o apoio do Fund for Investigative Journalism (FIJ).