O presidente-eleito, assim como o atual Papa, enfrenta uma tarefa assustadora de cura e dar unidade à comunidade que o escolheu.
O artigo é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor na Villanova University, publicado por La Croix International, 09-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Há muitos paralelos entre o papado católico romano e a presidência dos Estados Unidos. Em ambos casos, há responsabilidades políticas com dimensões morais e religiosas, embora em níveis inversos.
A eleição de Joe Biden como o segundo católico a vencer a presidência tem sido vista como um reminiscente momento político americano da eleição de João XXIII para o papado em 1958.
Biden, que chama a si mesmo de “um homem de João XXIII”, assumiu seu cargo aos 78 anos. O papa João começou alguns dias antes de completar 77 anos.
Mas há um paralelo com outro Papa que é menos otimista: é entre a vindoura presidência de Biden e o atual pontificado do papa Francisco.
Há muitas razões para que os estadunidenses, e as pessoas de todo o mundo, possam esperar que os próximos quatro anos sob Biden seja um retorno à normalidade, similar às expectativas de muitos católicos depois da renúncia de Bento XVI.
Francisco e Biden foram eleitos para seus respectivos cargos em uma idade avançada (o Papa argentino já estava com 76) e como um segundo ato em suas longas vidas de serviço.
Ambas as vidas foram moldadas por infortúnios pessoais, tragédias, introspecções espirituais e reposicionamento ideológico.
A ascensão ao poder também se deu por expectativas de que eles eram os homens certos para curar e dar unidade às comunidades e engajá-las novamente com o resto do mundo.
A esperança e a renovação que era esperada vir de Francisco não é inteiramente diferente do tipo de ministério político que muitos estadunidenses esperam que o presidente-eleito Biden possa entregar.
Mas, à luz dos últimos oito anos do atual pontificado, nós deveríamos estar conscientes que alguns desses poderiam vir a se tornar pensamento positivo.
Deixando de lado o fato de que Biden tentará fazer o que é bom para os EUA, o que não necessariamente é bom para o resto do mundo. E o fato do que a plataforma política do Partido Democrata e a Igreja Católica ensinam sobre questões da vida, especialmente sobre o aborto.
Os outros paralelos entre Francisco e Biden são menos confortáveis de um ponto de vista sistemático.
As diferentes comunidades que os dois homens representam estão profundamente divididas e tem reagido a suas eleições de forma polarizada. Um fator importante que explica a popularidade de ambos os homens é que eles são muito diferentes (para dizer o mínimo) dos seus predecessores.
Tanto Francisco quanto Biden têm uma tarefa assustadora de liderar durante um período de disrupção em todos os níveis: ambiental, econômico, social, cultural e político. Suas eleições representam um encorajador sinal de vitalidade enviado pelo sistema institucional.
Mas não está claro o quanto o nível institucional consegue fazer para lidar com a disrupção em todos os outros níveis.
O fato preocupante é que Francisco e Biden foram eleitos por sistemas que são vistos por muitos membros da comunidade católica e da comunidade política americana como indiferentes à necessidade de uma mudança radical, se não de uma revolução.
Há uma grande lacuna entre a maneira como muitos católicos pensam sobre a Igreja e a maneira como as elites católicas (clericais e não clericais) pensam sobre a Igreja.
É semelhante à grande lacuna entre a maneira como as elites políticas e intelectuais estadunidenses pensam sobre os Estados Unidos e a maneira como muitas pessoas ao redor do mundo pensam sobre o país.
Esta é uma época de raiva na política mundial, bem como na Igreja Católica.
E há um paralelo na forma como os Estados Unidos e a Igreja Católica estão lidando com essa raiva: ela é chamada de “Síndrome do Império perdido”.
Em 1962 – quase 60 anos atrás – o secretário de Estado dos Estados Unidos, Dean Acheson, disse em um discurso na Academia Militar de West Point: “A Grã-Bretanha perdeu um império, mas ainda não encontrou um papel”.
Agora, no final do “século americano”, isso vale também para os Estados Unidos. E é verdade para a Igreja Católica também, embora a Igreja provavelmente esteja mais ciente do que os EUA da necessidade de se libertar das fantasias do passado.
Tanto na Igreja Católica quanto nos Estados Unidos, há um choque entre a realidade e os sonhos do imperialismo passado.
Isso incluiria imperialismo cultural, político, militar e econômico para os EUA. Isso se traduziria em imperialismo espiritual, religioso, cultural e político para a Igreja Católica.
A síndrome do império perdido está na raiz da raiva que Francisco e Biden precisam enfrentar. Dentro da onda global anti-establishment, há um componente católico, tanto de direita quanto de esquerda, que não terminou com a eleição de Biden – nem nos Estados Unidos, nem na Europa, e nem mesmo na Itália.
Francisco e Biden têm em comum o fato de que, de maneiras diferentes, eles devem explorar o significado e as consequências de um mundo não mais centrado em um modelo de civilização ocidental liberal que é incapaz de cumprir suas promessas.
É um modelo que se infiltrou no estado de espírito católico de uma forma bipartidária e produziu um sentimento de humilhação e impotência, raiva e frustração entre muitos membros da Igreja.
Por exemplo, a raiva católica visível em reação à crise dos abusos sexuais também é um produto do choque entre um sistema social eclesiológico católico tradicional e um modelo moderno que promete transparência, responsabilidade e igualdade.
Para Francisco, a ruptura católica global tem profundas implicações na viabilidade de sua visão da reforma da Igreja com base nas trajetórias teológicas do Concílio Vaticano II (1962-65).
A crise religiosa da Igreja Católica nos Estados Unidos hoje é uma posição privilegiada para observar como, do ponto de vista global, o Vaticano II pode não ter sido o início de uma nova e irreversível fase na história do catolicismo.
Talvez seja apenas um parêntese, temporariamente inscrito no período da ordem global que se estendeu entre 1945 e o início do século XXI.
Essa velha ordem global política e religiosa está agora à disposição em nosso atual tempo de ódio.
A Igreja Católica faz parte dessa raiva e, ao mesmo tempo, é alvo dela.
O espírito do ressentimento teológico no cerne do Vaticano II pouco pode fazer para aplacar o animus do ressentimento global contra as elites que, institucionalmente, Francisco e Biden representam.