05 Novembro 2020
"Na oficialidade da igreja católica e apostólica, durante longos séculos não se fala no espírito, na luta, no empenho dos pobres. Isso numa Europa secularmente assolada pela pobreza. Os prelados parecem viver num outro planeta, falam em temas que não interessam os pobres. Só em 1962, após tantos séculos, um papa católico, João XXIII, fala em igreja dos pobres. Ao longo desses séculos, os bispos cedem aos encantos do poder, aprendem modos ‘corteses’ de se apresentar e passam a adotar o modelo romano em termos de organização eclesiástica. Montam um sistema religioso calcado na organização da religião romana, passam a administrar e ‘controlar’ o espírito do cristianismo. Ao drenar o dinamismo espiritual dos povos subjugados em direção a fins políticos particulares, o cristianismo oficial subordina o Espírito Santo à instituição", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), em artigo publicado em seu blog, 03-11-2020.
Criou-se, em certos ambientes, a ideia que a teologia da prosperidade estaria oposta à teologia da libertação. Em que sentido se diz isso? Não há como dizer que a teologia da prosperidade combina com a teologia da libertação? Quais são as condições para tanto? E quando é que ambas se contrapõem? Eis uma questão que me proponho aprofundar com você nestas páginas. Agradeço o pessoal do núcleo brasileiro da RELEP (Rede Latino-americano de Estudos Pentecostais), que - uns tempos atrás - me convidou a falar sobre o tema, o que aguçou meu interesse num tema que até então ficara fora de meus horizontes: a teologia da prosperidade.
O tema ressuscita em mim memórias de mais de quarenta anos atrás, quando vivi ao longo de nove anos num bairro periférico de Recife, chamado Alto do Pascoal. Ainda vejo diante de mim a imensa ondulação de casas inacabadas, telhados de Eternit, alguns ainda de palhas de coqueiro, paredes sem reboco, lajes em construção. Ao lado daquelas casas, um monte de tijolos encostados, pedaços de madeira, por vezes algumas barras de ferro, telhas amontoados. Neste momento, tudo isso me parece expressar – sem palavras e sem argumentos, pelo simples fato de estar lá – um imenso apelo à prosperidade.
Eu morava num ponto da linha do ônibus que vinha do centro da cidade. Ainda vejo Pedro pedreiro, no final da tarde, descer do ônibus, sempre segurando algo nas mãos ou em baixo do braço: uma prancha de madeira, uma barrinha de ferro, algum embrulho, algo na mochila. Na parede externa da casa de Pedro pedreiro, um monte de tijolos encostados, algumas telhas, madeira, ferro. Parece que estou ouvindo Pedro pedreiro falar consigo mesmo: ‘vou sentar uma janela, vou tirar o tabique que fecha a cozinha e sentar uma porta. Vou rebocar as paredes do quarto dos meninos. Talvez venha a bater uma laje, pois a família é grande. Já tenho as barras, falta comprar uns sacos de cimento. Assim faço um andar superior’. Pedro pedreiro sonha com prosperidade.
Pedro pedreiro tem fé em Deus. Ao pensar nas crianças, na mulher, na família, Pedro pedreiro pensa em Deus. Está convencido que Deus compartilha sua luta. ’Deus vai me dar sucesso na vida, Deus vai me ajudar a conquistar a prosperidade’.
Ao longo da história se criaram diversas palavras a expressar o que vive dentro da mente e do coração de Pedro pedreiro. Uns dirão que ele é devoto (de São Sebastião, por exemplo, o padroeiro da paróquia), outros que ele tem fé, outros ainda que ele é um sonhador, um homem animado. Palavras não faltam. Para descrever o que se passa dentro de Pedro, prefiro o termo bíblico ‘sopro’, ruah em hebraico. Pedro pedreiro anda animado por um ‘sopro de Deus’. Embora o termo, nos dias que passam, soe mal, por causa da pandemia de 2020 e da precaução decorrente com ‘sopros’, o termo é de uma impressionante riqueza semântica. Ao correr dos tempos a ruah bíblica foi traduzida pelo grego ‘pneuma’ e, mais tarde, pelo latino ‘spiritus’, para desembocar no ‘espírito’ de nossas línguas neo-latinas. Traduções aproximativas, que fazem com que a ruah, ao longo dos tempos, perca muito de sua riqueza original. Pois a ruah hebraica não só significa sopro, ventania, ar e respiração, mas também energia vital, ímpeto, entusiasmo, arrebatamento, impulso, ardor, vontade, decisão, ou - negativamente - angústia, desânimo, amargura e tristeza. O profeta Ezequiel vê como um Sopro de Ihwh transforma um campo de ossos secos em guerreiros dispostos a entrar em combate (Ez. 78, 39), Elias sente o Sopro de Deus numa leve ventania, Isaías o ressente como um carvão ardente a lhe queimar os lábios. Os profetas vivem ‘inspirados’, Jesus age pela força e pelo poder do Sopro Santo. Todos exibem um extraordinário poder transformativo.
Pedro pedreiro do Alto do Pascoal anda animado por um Sopro Santo? Para além das palavras, temos de reconhecer que estamos aqui diante de algo primordial, anterior a qualquer institucionalização, algo que motiva a humanidade desde tempos imemoráveis. Obras inacabadas são uma marca registrada da história, um apelo para o futuro. Nesse sentido, pode-se dizer que Pedro representa, de certo modo, a humanidade desde suas origens: a marcha da história é a marcha da ruah, do espírito, da fé, do sonho, da devoção, da religião. É, como demonstra a casa inacabada de Pedro e de seus vizinhos, a marcha do espírito da prosperidade. As casas inacabadas falam por si. Delas emana uma força vital, uma energia, um ímpeto, uma vontade forte: a de se conseguir ‘terminar a obra’ e chegar ao reino da prosperidade para a família, as crianças, a mulher querida, os vizinhos, o bairro, o mundo. Pedro pedreiro, nesse sentido, representa uma inspiração humana originária, vivida numa periferia da cidade de Recife.
Na parede da pequena sala onde Helder Camara, bispo de Recife em tempos de Pedro pedreiro, recebe suas visitas, se pendura um pequeno quadro com os dizeres:
Sonhar só é só sonhar
Sonhar juntos é realidade.
Sonhar juntos. Pedro pedreiro vai à igreja, à assembleia de Deus, à igreja católica, à igreja universal do reino de Deus, ao candomblé, à macumba, ao culto de Jurema, pouco importa. Aí ele está junto a outras pessoas, escuta o sermão, se senta e se levanta, canta e bate palmas, ao lado de outros devotos que também sonham em bater laje, sentar porta, cobrir a casa da família com telha. Implícito no pensamento de Pedro ao ir à igreja: ‘posso sonhar a vida toda com prosperidade, se não encontrar algum suporte institucional, meu sonho nunca se realizará’. Pedro sabe por intuição que a instituição fortalece o ‘sopro’, o impulso, o entusiasmo, o empenho. Eis como Pedro pedreiro entende as rezas, os sermões, os cânticos, as regras da congregação.
Falando de modo mais teórico: a religião, vivida concretamente, comporta duas forças históricas que, desde tempos imemoráveis, modelam a história humana: o espírito e a instituição, a inspiração originária e seu sustentáculo indispensável. A religião funciona a contento quando a instituição cumpre seu papel de sustentáculo de um espírito que, ao brotar da natureza e das necessidades humanas, é autodeterminante. Ou seja, quando a instituição está a serviço do espírito, o sonho da prosperidade é capaz de se concretizar em realidades vividas. A boa engrenagem entre devoção e instituição resulta em religião benéfica para a humanidade.
Dou um exemplo. Quando abrimos os Atos dos Apóstolos, que contam a primeiríssima institucionalização do espírito cristão, nos deparamos, já no versículo 2 do primeiro capítulo, com uma fala de Jesus que fala em instituir uma organização, um movimento, liderado pelo Sopro Santo: o movimento apostólico. No versículo 5, Ele diz: ‘vocês serão batizados no Sopro Santo’. E no versículo 8, sentindo que os apóstolos andam desanimados, Ele diz: ‘ O Sopro Santo vai dar forças a vocês, para ir até os confins da terra’. Mas os apóstolos têm medo. Medo da população de Jerusalém, que apoiou a condenação de Jesus à morte e lhes demonstra hostilidade. Aluga-se uma ampla residência, em Jerusalém, que comporte uma sala, um ‘cenáculo’, vendem-se algumas propriedades particulares e assim se forma uma impressionante comunhão fraterna, na reclusão.
Chega a tradicional festa de Pentecostes e a cidade se enche de judeus vindos da diáspora, alguns de lugares muito distantes. De repente um barulho estrondoso, seguido de uma forte ventania em torno da casa onde estão os apóstolos. Aparecem línguas de fogo ardente em cima da cabeça deles. E, ‘cheios do Sopro Santo, falam o que o Sopro lhes dá a dizer’ (2, 4). Abre-se a porta e Pedro fala, à multidão de curiosos que acorre, de modo tão inspirado e corajoso (ele critica os de seus ouvintes que apoiaram o crime cometido contra Jesus), de modo tão convincente, que todos entendem o que ele diz, mesmo os que falam outras línguas. Muitos se convertem.
Estamos no início ‘pentecostal’ do movimento de Jesus, na sua primeira institucionalização, que se realiza no dia de Pentecostes. O pentecostalismo originário constitui a primeira institucionalização do cristianismo, a serviço do Sopro, do sonho inacabado de prosperidade. Pentecostalismo, em sua origem, significa supremacia do espírito sobre a instituição. Quando dizemos que o cristianismo é um movimento que, em suas origens, dá a primazia ao fator ‘espírito santo’, dizemos que, em suas origens, o movimento de Jesus é um movimento pentecostal. O espírito agindo por meio da instituição.
A mesma ideia se encontra, em outras palavras, na Primeira Carta escrita por Paulo Apóstolo, a Carta aos Tessalonicenses, escrita no ano 49 (o primeiro texto da literatura cristã) em Corinto. Paulo está satisfeito com o resultado de uma experiência empreendida por um grupo de três missionários do jovem movimento de Jesus, vindos de Antioquia da Síria a levar o espírito de Jesus a uma cidade distante, na Macedônia. A Carta deixa entender, nas entrelinhas, que esses missionários aí encontram um grupo já organizado, uma assembleia, uma ekklèsia (em grego) já constituída, provavelmente em defesa de direitos trabalhistas. Alguns desses trabalhadores se sensibilizam com o espírito que se manifesta no discurso de Paulo. E ele escreve, com alegria: ‘constituímos, nós também, uma assembleia, uma ekklèsia, uma igreja’. O termo expressa a subserviência da instituição ao espírito. Fez, e continua fazendo, enorme sucesso, ao longo dos dois mil anos de história do cristianismo, pois mostra, a seu modo, que a organização vem fortalecer o espírito transmitido pelos missionários de Jesus. A organização a serviço do Sopro Santo, sustentáculo e ampliação do impulso vital que anima Pedro pedreiro.
Essas histórias das origens do cristianismo são bonitas demais. Mal correspondem ao que os registros históricos, em geral, relatam. Na história humana, a correta engrenagem entre espírito e instituição, que acabo de traçar, só rarissimamente se concretiza. Na história das religiões, quase sempre se verifica uma subordinação do espírito aos ditames da instituição. O sonho de prosperidade de Pedro pedreiro mal encontra eco numa instituição (qualquer que seja sua denominação) que deixe de ser servidora do espírito e se torne subalterna a interesses particulares. Quem estuda a história das religiões, desde os tempos mais remotos do Oriente Médio, verifica que nem na religião egípcia, nem nas mesopotâmicas (babilônica, assíria, persa), nem na helenística, nem na romana, nem na ortodoxa, nem na católica, se observa a correta correlação entre o sonho de Pedro pedreiro e as instituições. Há exceções esporádicas, como o caso de Bartolomé de las Casas e de outros. Gente ligada a instituições religiosas, que luta pela primazia do espírito. Casos tão raros que acabam confirmando a regra geral. O que se constata, em geral, é a instituição desviando a força criativa do espírito para interesses específicos, seja a fortalecer o poder político reinante, seja a beneficiar os mais variados grupos de interesse.
Contei acima a história da primeira institucionalização do espírito de Jesus, evocada nos Atos dos Apóstolos. Aqui vai um pequeno relato de uma nova institucionalização desse mesmo espírito, ocorrida no século IV, que passou para a história sob o nome de ‘reviravolta constantiniana’.
Na época, há tensões dentro do movimento cristão. Dois centros, em torno dos quais gravitam comunidades, disputam a hegemonia: Antioquia na Síria e Alexandria no Egito. O primeiro insiste na humanidade de Jesus, o segundo em sua divindade. As discussões, acaloradas, ameaçam romper a unidade do movimento cristão. Então, os bispos resolvem se reunir para discutir a questão.
É um empreendimento importante que necessita de um esforço não desprezível de infra-estrutura: viagens, hospedagem, alimentação etc. Administradores do império romano, que acompanham atentamente a evolução de um movimento que cresce muito e ganha influência nos recantos mais remotos do império, percebem que, oferecendo facilidades logísticas em termos de transporte e hospedagem para um grupo calculado em umas trezentas pessoas, a instituição imperial pode influenciar o curso da nascente cristandade. Informado, o Imperador Constantino, se mostra sumamente interessado. Ele não demora em oferecer aos bispos hospedagem em sua Residência de Verão, situada em Niceia (atual Iznik, no interior da Turquia), não tão distante de Constantinopla e mais acessível para quem vem da Capadócia, das cidades litorâneas de Ásia Menor (Esmirna etc.), da Síria (Antioquia) e do Egito (Alexandria). Além disso, ele manda que se ofereçam aos bispos as facilidades de viagem reservadas a funcionários públicos, por meio dos eficientes serviços de correio pelas ‘vias romanas’ (rotas terrestres).
Finalmente, 318 bispos se reúnem em Niceia, no ano 325. São recebidos com ‘protocolo senatorial’, demonstrações de honra que vivamente impressionam aqueles homens vindos do mundo rural. Um deles, o bispo Eusébio de Cesareia (269-339) relata tudo por escrito, sem omitir detalhes. Ele conta que, quando Constantino se senta num sofá ao lado de alguns bispos, um deles exclama: ‘parece Cristo!’.
A assembleia leva a bom termo a questão cristológica e emite um ‘Símbolo’ (o termo grego significa: emenda de pedaços quebrados de um vaso), um Credo que toma partido por uma definição divina de Jesus de Nazaré:
Um só Deus, Pai todo-poderoso,
Um só Senhor Jesus Cristo
Filho de Deus
Consubstancial ao Pai.
Deus de Deus
Luz da Luz
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.
Esse Credo atravessa os séculos. Com ele nasce a ortodoxia. Quem fica satisfeito mesmo é Constantino, que pensa nos possíveis efeitos políticos da unificação do movimento cristão. Assim, pensa ele, será mais fácil conseguir a unificação de tantos e tão diversos povos que convivem dentro do imenso império.
Não vou contar a história toda. Basta dizer que, com a virada do século IV, a instituição cristã toma a dianteira, postergando o espírito de Jesus. Niceia pouco tem a ver com o espírito de Pedro pedreiro, com seu empenho por prosperidade. Na oficialidade da igreja católica e apostólica, durante longos séculos não se fala no espírito, na luta, no empenho dos pobres. Isso numa Europa secularmente assolada pela pobreza. Os prelados parecem viver num outro planeta, falam em temas que não interessam os pobres. Só em 1962, após tantos séculos, um papa católico, João XXIII, fala em igreja dos pobres. Ao longo desses séculos, os bispos cedem aos encantos do poder, aprendem modos ‘corteses’ de se apresentar e passam a adotar o modelo romano em termos de organização eclesiástica. Montam um sistema religioso calcado na organização da religião romana, passam a administrar e ‘controlar’ o espírito do cristianismo. Ao drenar o dinamismo espiritual dos povos subjugados em direção a fins políticos particulares, o cristianismo oficial subordina o Espírito Santo à instituição. Uma situação que perdura até nossos dias.
1. Quando uma teologia expressa o espírito que move pessoas em direção a uma vida mais próspera, não existe contradição entre teologia da prosperidade e teologia da libertação. Pelo contrário: os dois modos se completam.
2. Para tanto se necessita uma correlação entre o espírito de prosperidade que anima as pessoas e uma instituição que eventualmente o sustente. A instituição entendida como sustento e fortalecimento do espírito.
3. Isso raramente se concretiza. Há de se agir, transformar a instituição em instrumento do espírito por meio de ações concretas.
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Teologia da prosperidade, sim ou não? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU