20 Outubro 2020
"As mulheres encontram-se, ainda, ausentes dos postos reservados à hierarquia e das decisões sobre leis e regras", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais e vice-presidente do SPM – São Paulo.
No decorrer da história, a aliança entre Religião e Estado, trono e alta, cruz e espada, deuses e políticos – mais que a confusão entre público e privado – tem deixado um rastro macabro de violência e de sangue em páginas trágicas da história. De início, deve-se distinguir os conceitos de religião e de fé. Enquanto esta última permanece viva e vibrante, aberta, carismática e dinâmica, a primeira tende a esquematizar-se em estruturas rígidas e estáticas. A espontaneidade cede o lugar a um tipo de formalismo pesado e ritualista. O vigor jovem e primaveril esmorece, dando lugar à apatia e ao desencanto do mundo (Max Weber). Não são poucos os casos em que a religião começa onde a fé deixou de ter sentido. O aceno do governo Bolsonaro para essa vizinhança entre igrejas e administração pública, em particular com as denominações pentecostais, corre o sério risco de desenterrar fantasmas há muito mortos e sepultados.
O primeiro desses fantasmas representa o fundamentalismo fanático e intolerante das certezas. Ao longo dos séculos, poucas coisas foram tão perniciosas à sociedade como as “verdades” prontas, acabadas e absolutas. Quem as possui – ou porque se diz enviado do alto, ou porque vem eleito como referência do sagrado e do mistério – torna-se facilmente um policial ético dos demais. E aqui é muito curta a distância entre esse tipo de atitude policiesca, de um lado, e, de outro, o uso e abuso da discriminação, da tortura, da perseguição e da morte. Que o digam as prisões, as fogueiras, as mutilações, as “limpezas” étnico-religiosas. Quando se age em nome de um deus absoluto, com seus “preceitos” igualmente absolutos, o julgamento jamais escapará desse absolutismo excludente e execrável. De resto, a verdadeira fé nasce, cresce e se consolida no terreno dos medos e da angústia, da insegurança e das interrogações. Onde a dúvida foi banida pela certeza, para que servem os deuses?!...
O segundo fantasma atende pelo nome de o moralismo: dúbio, ambíguo e hipócrita. A hipocrisia costuma ser a filha bastarda de toda religião. Uma vez que esta última lida com a busca da perfeição e uma vez que a condição humana é permeada de fraquezas e debilidades, impõe-se a necessidade de criar máscaras para encobrir a verdade nua e crua. Máscaras que, de uma forma ou de outra, passarão a fazer parte do guarda-roupa do “fiel”, como as camisas, calças e vestidos. A realidade se defronta brutalmente com o idealismo. Como numa espécie de palco iluminado, as pessoas passam a representar no cotidiano o heroísmo dos santos e mártires que as precederam. O resultado é uma esquizofrenia peculiar de dupla face: a aparência de um bom comportamento esconde os instintos, desejos, paixões e erros próprios das entranhas humanas – tão selvagens e desconhecidas quanto as larvas de um vulcão.
Por fim, decorrente dos anteriores, temos o fantasma do patriarcalismo histórico. Deus é um conceito masculino. Difícil a religião onde a mulher não esteja alguns degraus abaixo do homem, quando não lhe é inteiramente submetida. Muito presente na base da pirâmide eclesial, ela começa a rarear à medida que se sobe na mesma, e desaparece por completo no topo. Nos templos de praticamente todas as religiões ou igrejas é comum vê-las no trabalho de limpeza e arrumação, de preparação das cerimônias, de cuidado com o Livro, a ornamentação dos santos e dos altares. Também é possível encontrá-las prostradas, no silêncio de suas dores e devoções privadas. Quando se trata da participação nos cultos, cerimônias e celebrações, elas formam a multidão. Mas a palavra ainda é prerrogativa dos homens. As mulheres encontram-se, ainda, ausentes dos postos reservados à hierarquia e das decisões sobre leis e regras. Chamadas a obedecer, não a coordenar. Há casos em que o homem é o único intermediário entre o divino e o humano, restando à mulher a função de mera expectadora.
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Deuses e políticos costumam ser masculinos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU