04 Setembro 2020
"As revoluções na Igreja nunca são clamorosas ou barulhentas, mas sempre feitas com luvas de pelica, com diplomacia, tanto para não ofender os conservadores sempre aguerridos e suscetíveis, prontos a gritar como galinhas depenadas a cada mínima vírgula que é retirada, quanto para não dar a ideia de rupturas com o passado, mas sempre de continuidade, mesmo quando isso claramente não é verdade".
O texto é de Alberto Maggi, em artigo publicado por Il Libraio, 01-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alberto Maggi é frade da Ordem dos Servos de Maria, estudou na Pontifícia Faculdade de Teologia Marianum e Gregoriana de Roma e na École Biblique et Archéologique française de Jerusalém. Biblista, ele é uma das vozes da Igreja mais ouvidas por crentes e não crentes. Seu novo livro é La verità ci rende liberi (A verdade nos liberta, em tradução livre, Garzanti, a ser lançado em setembro), uma conversa com o vaticanista do jornal Repubblica Paolo Rodari.
Como explica no ilLibraio.it o biblista Alberto Maggi “lentamente, de maneira quase imperceptível, algo se move” na Igreja. Que, com Francisco, "de uma rígida instituição regulada pela imutável doutrina, se transforma em uma comunidade dinâmica animada pelo Espírito ..." - A reflexão "Eppur si muove ...!". A famosa expressão, atribuída a Galileu Galilei, forçado pela doutrina infalível da Inquisição a renegar o movimento da terra, combina perfeitamente com a Igreja Católica.
É como um paquiderme que parece imóvel, pesado e travado por séculos de detritos e entulhos teológicos, tão distantes da agilidade dos Evangelhos, que exigem uma mudança contínua para poder colocar o vinho novo do Espírito em odres novos (Mt 9, 17).
No entanto, lentamente, quase imperceptivelmente, algo se move e a Igreja, de uma rígida instituição regulada pela imutável doutrina, se transforma em uma comunidade dinâmica animada pelo Espírito. Claro, as mudanças são leves, nunca acontecem de forma traumática, para não parecer um salto ou pior, uma ruptura com a tradição. Então, nos movemos pé ante pé, com muita diplomacia, e é preciso descobrir essas mudanças nas entrelinhas. Um passo que parece pequeno, mas, ao contrário, foi gigantesco, é aquele realizado pelo Papa Francisco.
Surpreendeu a todos quando, na noite da sua eleição, se apresentou ao mundo como o “Bispo de Roma”, sem todos os adereços anacrônicos, inclusive externos, de seu cargo de Sumo Pontífice. Era apenas a premissa de uma mudança do pontificado que teria como linha mestra a conversão gradual da Igreja ao Evangelho, um caminho que não seria indolor.
Sinal dessa mudança são os títulos do papa (do grego papas, "pai"), publicados no Anuário Pontifício 2020. Nas edições anteriores, o grande título que se destacava sob o nome de papa era de “Vigário de Jesus Cristo", depois seguido por "Sucessor do Príncipe dos Apóstolos", "Sumo Pontífice da Igreja Universal", "Primaz da Itália", "Arcebispo e Metropolita da Província Romana", "Soberano do Estado da Cidade do Vaticano" e, finalmente, por último, "Servo dos Servos de Deus”.
Agora, embora permanecendo, esses títulos foram delicada, mas significativamente deslocados e separados, de modo que em uma página em branco aparece a inscrição, em duas linhas, "Francisco - Bispo de Roma" e, na outra página, todos os outros títulos, com fonte menor, abaixo de uma linha divisória e as palavras: “Títulos históricos”. Em outras palavras, títulos colocados no sótão, como certos móveis do passado, que eram bonitos e gostávamos deles, mas agora são volumosos e inutilizáveis.
Isso é tudo? As revoluções na Igreja nunca são clamorosas ou barulhentas, mas sempre feitas com luvas de pelica, com diplomacia, tanto para não ofender os conservadores sempre aguerridos e suscetíveis, prontos a gritar como galinhas depenadas a cada mínima vírgula que é retirada, quanto para não dar a ideia de rupturas com o passado, mas sempre de continuidade, mesmo quando isso claramente não é verdade.
Muitos se surpreenderam ao ver colocados entre os "títulos históricos", mesmo o de "Servo dos servos de Deus", o único que parecia compatível com o papel do Papa. Mas mesmo esse título tem pouco de cristão. Os que creem não são "servos de Deus", mas seus filhos. O Pai não precisa de servos obedientes, mas de filhos semelhantes, e o próprio Jesus repetidamente declarou que não veio para ser servido, mas para servir (Mt 20,28) e, na Última Ceia, afirmou: “Eu estou entre vós como quem serve” (Lc 22,27).
Mas o que é sem dúvida significativo é a remoção (em linguagem curial "deslocamento") do título "Vigário de Jesus Cristo", denominação que havia tornado todo pontífice um ser semidivino, "o doce Cristo na terra", tratado e venerado como uma divindade, idolatrado como um faraó (basta pensar no uso dos flabelos egípcios, os grandes leques de penas brancas de avestruz que acompanharam a entrada na liteira do papa em uso até Paulo VI, que finalmente o aboliu).
Como os papas puderam atribuir para si o título de Vicarius Christi? Vigário é aquele que representa ou substitui quem não está presente, mas pode Cristo estar ausente? Dos evangelhos se deduz o contrário. No Evangelho de Mateus, as últimas palavras de Cristo ressuscitado são: "Estou convosco todos os dias" (Mt 28,20). Enquanto Moisés, sentindo que seu fim estava próximo, nomeou Josué como seu sucessor (Nm 27,18), Jesus ressuscitado não nomeia nenhum sucessor, muito menos seu vigário, mas, como escreve Marcos, o Cristo ressuscitado continua a estar presente com os seus discípulos: “cooperando com eles o Senhor e confirmando a palavra com os sinais que se seguiram” (Mc 16, 20). Cristo está, portanto, presente entre os que creem, pedindo apenas para ser acolhido e para colaborar com ele na comunicação incessante da vida para cada criatura. Certamente Jesus é invisível, mas não ausente, e estará sempre visível cada vez que os seus partirem o pão para torná-lo alimento de vida e de partilha ("Fora reconhecido por eles quando partia o pão", Lc 24,31,35).
Caso se queira usar a expressão "vigário de Cristo", esta é para os pobres, os necessitados, os marginalizados, os presos, os estrangeiros com quem Jesus se identifica ("quando o fizeste a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizeram”, Mt 25,40), e os Padres da Igreja, como São Gregório de Nissa, afirmavam que os pobres “nos representam na pessoa do Salvador” (De pauperibus amandis, PG 46.460 bc). Depois, no século XII, enquanto a luz de Francisco de Assis brilhava mais do que nunca, o verdadeiro alter Christus, foi um papa, o belicoso Inocêncio III, que colocou em segundo plano o título de "Vigário de Pedro" e se arrogou o de " Vigário de Cristo ", até então atribuído aos pobres, designação que foi sancionada pelo Concílio de Florença (século XV) com a bula " Laetentur caeli ", que afirma que o pontífice romano "tem primazia sobre todo o universo [...]” e o papa é “um autêntico vigário de Cristo” (Denz. 1307) ... e então veio o Papa Francisco.
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No entanto (a Igreja) se move... - Instituto Humanitas Unisinos - IHU