14 Agosto 2020
"Dissonância entre Bolsonaro e Guedes é real, põe em risco a aliança de ultradireita e pode se prolongar. Mas será em vão, se esquerda permanecer alheia à realidade do país e mergulhada em seu pequeno universo particular", escreve Antonio Martins, editor de Outras Palavras, em artigo publicado por Outras Palavras, 12-08-2020.
Segundo o jornalista, "perdida em pequenos cálculos eleitorais, a esquerda institucional mantém-se inerte. Talvez seja o caso de perceber que sua tarefa precisa ser iniciada por outras mãos. Por exemplo, o conjunto de organizações da sociedade civil que, embora sem poder de representação e com recursos políticos e materiais muito menores, insiste em buscar alternativas".
Exagerar a força do adversário é, às vezes, um estratagema de quem quer ocultar sua própria fraqueza. Na noite de terça-feira, dois fatos marcantes escancararam as tensões, que já se acumulavam, entre Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. Dois secretários do ministro – Salim Mattar e Paulo Uebel – demitiram-se. Ao invés de absorver os choques, ele amplificou-os, num encontro cordial com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, seguido de entrevista improvisada às TVs. Guedes deixou claro que sua orientação já não é a única ouvida pelo presidente. Mais: sugeriu que, caso prevaleça a posição contrária, o governo caminha para “uma zona sombria, uma zona de impeachment”. Por trás do tom de ameaça, claro e grave, há um desconforto que os parágrafos seguintes examinarão em mais detalhe. Ele pode afastar de Bolsonaro a oligarquia financeira, setor essencial à sua sobrevivência política. O ruído expõe a vulnerabilidade da coalizão de extrema direita, afeta a falsa imagem de um governo sólido e abre novas esperanças de vencê-lo. Mas também esta oportunidade pode ser desperdiçada se a esquerda continuar ausente do cenário, perdida em seus personalismos e incapaz de oferecer à sociedade um horizonte alternativo.
A divergência entre Bolsonaro e Guedes expressa, em meio à crise brasileira um contrapé mundial, ainda muito pouco percebido ou debatido aqui. Desde que começou a pandemia, rompeu-se um grande dogma, que ajudou a sustentar o neoliberalismo nos quase quarenta anos de sua dominação. A ideia da disciplina fiscal, segundo a qual os Estados – tal como as famílias – podem gastar apenas aquilo que arrecadam, foi abandonada pelos próprios partidários do sistema. Eles foram confrontados, de súbito, com a necessidade de criar do nada, sem lastro algum, trilhões (de dólares, euros, libras e até reais) para salvar o sistema financeiro em grave risco. Secundariamente, fizeram o mesmo para minorar o drama social causado pela crise sanitária. Foi devido a este artifício que surgiu um grande paradoxo. As economias estão despencando. Mas não há falências de grandes corporações e, desde março, as bolsas de valores acumulam altas extraordinárias. Os Estados financiam, em última instância, o dinheiro necessário para mantê-las em alta.
Embora tenha sido providencial, contra o risco de uma crise ainda mais devastadora, a ideia é perigosa. Ela confirma o que correntes econômicas muito heterodoxas – entre elas a Teoria Monetária Moderna – afirmavam, com audiência crescente. Se os Estados podem emitir livremente para salvar bancos e corporações; se isso, ao contrário do que diziam os cânones, não provoca necessariamente hiperinflação; por que, então, não seria possível criar dinheiro do nada para enfrentar a pobreza, oferecer serviços públicos de qualidade, transformar as cidades, proteger o ambiente e tantas outras necessidades sociais? Ou, por outro ângulo: se uma ínfima oligarquia já não é capaz de concentrar tanto dinheiro, um instrumento essencial de disciplinamento das sociedades perde eficácia.
O contrapé produz efeitos políticos em todo o mundo. No Brasil, ele criou uma situação particularmente delicada para o governo Bolsonaro. Embora não tenha desejado o Auxílio Emergencial de R$ 600 (a proposta original do Executivo era de um “voucher” de terço deste valor), o Palácio do Planalto apropriou-se dele. Tirou proveito, mais uma vez, da paralisia da oposição. Sua popularidade cresceu ligeiramente entre os mais pobres, que recebem o benefício. Mas este avanço é, também, uma cilada. Ninguém é capaz de prever o que sucederá quando terminar o auxílio. Por isso abriu-se, no interior do governo, uma fissura.
Um grupo de ministros liderado pelo general Braga Netto, chefe de gabinete da Presidência defende, além dos R$ 600, alguma retomada do investimento público. A novidade, que ganhou o nome de Plano Mais Brasil, teria em essência, a forma de concessões de obras de infraestrutura à iniciativa privada. O aporte do Estado, tímido, viria na esteira das novas regras monetárias, mais flexíveis. O próprio senador Flávio Bolsonaro, aparentemente favorável à proposta, afirmou, em 7/8, esperar que Paulo Guedes “arrume um dinheirinho” para tanto.
É contra este arranjo, que consideram um precedente indesejável, que se movimentam com alarde o ministro da Economia e seus partidários. Guedes e a oligarquia financeira costuram, há meses, uma alternativa complexa. Não se opõem à transferência de renda aos mais pobres. Mas resistem a criar dinheiro novo. Em seus planos, o Auxílio Emergencial converte-se na Renda Brasil, com mudanças essenciais. O valor cai drasticamente, para algo como R$ 300. E a contrapartida é um aprofundamento extremo do programa neoliberal, expresso em cinco pontos: a) retomada das privatizações – incluindo, além do Saneamento (já aprovado no Congresso), a Eletrobrás, os Correios e a hiper-estratégica PPSA, responsável pela gestão de toda a riqueza do Pré-Sal; b) retirada de mais direitos trabalhistas, com imposição da Carteira Verde e Amarela; c) desmonte da Previdência Pública, inviabilizada pela eliminação – ou redução radical – das contribuições previdenciárias dos empregadores; d) aumento de impostos sem Reforma Tributária, com a reintrodução da CPMF; e) manutenção do “teto de gastos” e corte dos investimentos em Saúde, Educação e outras áreas sociais, já ensaiado pelo governo para o Orçamento de 2021.
Medíocre enquanto economista, precaríssimo como gestor público, Guedes está no governo como fiador político. Enquanto ele permanecer, a oligarquia financeira entenderá que seus interesses estão preservados. O peso extraordinário desta classe diminuta – junto à mídia, ao Congresso, ao Judiciário – assegurou, até agora, a sobrevivência de Bolsonaro, apesar dos múltiplos crimes cometidos. É por isso que, menos vinte e quatro horas após a ameaça de Guedes, o ex-capitão sugeriu que pode recuar. No fim da manhã de quarta-feira, em live, ele voltou a se comprometer com as privatizações. Não pareceu suficiente: por isso, à tarde, ele chamou Rodrigo Maia e David Alcolumbre ao Palácio do Planalto e prometeu, já encabrestado, diante deles: “Nós respeitamos o teto dos gastos. Queremos a responsabilidade fiscal”…
A vitória parcial de Guedes não elimina, porém, as tensões. O cobertor é curto. Para manter o auxílio emergencial de R$ 600 – em especial no período decisivo que antecede as eleições municipais, Bolsonaro proporá as novas privatizações e a CPMF? Se não o fizer, ousará contrariar o ministro poderoso? Dará trela ao general Braga Netto? Tentará empurrar tudo com a barriga até 2021, quando faltará apenas um ano e meio para o início da campanha presidencial? Comprometido com a disciplina fiscal, como lidará com o aumento explosivo do déficit e da dívida pública?
Deste conjunto de incertezas e interrogações emerge uma questão ainda mais decisiva. Como interpretar a enorme incapacidade da oposição – e em especial dos partidos de esquerda – para agir, diante de mais um episódio de desgaste do governo e da ultradireita?
A queda de um dos sustentáculos do projeto neoliberal abre um mundo de possibilidades políticas – baseadas, inclusive, nos exemplos internacionais que começam a emergir. Seria possível, por exemplo (como está fazendo o Partido Democrata, nos EUA), colocar o governo contra a parede, apontando a timidez de suas respostas para a crise e lançando alternativas muito mais robustas. Ou, muito além, defender a conversão do Auxílio Emergencial numa Renda Básica digna do nome, capaz de promover redistribuição real de riqueza e provocar o aumento real dos salários. Apontar a viabilidade da Garantia de Emprego Digno, agora que as restrições à emissão de moeda pelos Estados foram substancialmente reduzidas. Propor, com base na relevância redescoberta do SUS, um vasto investimento em Saúde pública e Educação integral de excelência. Lançar um grande programa de obras públicas, voltado para o saneamento, a despoluição dos rios, a transformação urbanística das periferias, a reconstrução de uma rede de ferrovias, a ampliação substancial dos metrôs ou tantos outros objetivos adiados.
Um programa assim apresentaria, a uma sociedade submetida a retrocessos em série, um horizonte novo. Mas o vazio que se abre, na ausência deste horizonte, reduz a esquerda a uma escolha medíocre. Esperar que, no conflito entre o protofascismo e o ultracapitalismo, um deles prevaleça? Ou aguardar passivamente até que, livre de pressões, o conflito se dissipe por algum tipo de recomposição entre as partes?
Perdida em pequenos cálculos eleitorais, a esquerda institucional mantém-se inerte. Talvez seja o caso de perceber que sua tarefa precisa ser iniciada por outras mãos. Por exemplo, o conjunto de organizações da sociedade civil que, embora sem poder de representação e com recuros políticos e materiais muito menores, insiste em buscar alternativas.
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