13 Junho 2020
"Em nome do negócio político, os olhos dos religiosos se fecham às injustiças do governo" escreve Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP, coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom, também integra a Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura (International Association Media Religion and Culture) e a Associação Mundial de Comunicação Cristã (World Association for Christian Communication, WACC), em artigo publicado por CartaCapital, 10-06-2020.
Nas últimas semanas, recebemos notícias de reuniões do Presidente Jair Bolsonaro com lideranças cristãs. A primeira, com católicos, em 21 de maio, foi mais transparente: transmissão aberta, online, com pouco mais uma hora de duração, oito deputados da Frente Parlamentar Católica Romana (uma mulher), três padres que dirigem mídias religiosas, um padre de movimento eclesial e dois empresários de mídias católicas (um deles, um político de Goiás).
Duas semanas depois (5 de junho), ocorreu o encontro com onze pastores evangélicos, todos homens, de igrejas do segmento pentecostal, articulado pelo Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil (CIMEB), presidido pelo Pastor Silas Malafaia, da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo. A ocasião teve dois momentos: um aberto, divulgado amplamente e replicado a partir das mídias sociais do Pastor Malafaia, como “Oração em favor do Brasil com a presença do presidente Bolsonaro e líderes evangélicos”. A outra reunião, com os mesmos participantes, antecedeu a oração pública, foi fechada e não foi divulgada, apesar de estar na agenda do Presidente, e durou uma hora.
Já houve outras reuniões protocolares de Jair Bolsonaro com evangélicos no Planalto, todas para tratar da redução de cobranças de impostos sobre igrejas e perdão de dívidas tributárias. Uma envolveu integrantes da Frente Parlamentar Evangélica, em maio de 2019; outra foi com o líder da Igreja Internacional da Graça de Deus Missionário R. R. Soares. Uma terceira reunião foi com o filho de R. R. Soares, o deputado federal David Soares (DEM-SP), na presença do secretário da Receita Federal José Barroso Tostes Neto.
O apoio irrestrito de lideranças evangélicas, desde a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018, revela ter um preço que não passa, apenas, por identidade ideológica. Já há uma expressiva quantidade de cargos ocupados por líderes evangélicos no primeiro e no segundo escalões do governo. E há interesses de ordem econômica.
Um levantamento realizado pela Agência Pública, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), em dezembro de 2019, revelou que 1.283 organizações religiosas devem R$ 460 milhões ao Governo. Desse total, 23 igrejas têm dívidas de mais de R$ 1 milhão cada uma. A campeã é a Igreja Internacional da Graça que deve R$ 145 milhões à União. A Igreja Renascer em Cristo, do Apóstolo Estevam Hernandes, deve R$ 33 milhões à União. A Assembleia de Deus Vitória em Cristo, de Silas Malafaia, e sua empresa Central Gospel, devem mais de 2 milhões. Os três líderes maiores destas igrejas participaram dos eventos de 5 de junho.
Técnicos da Receita Federal manifestaram incômodo com as pressões do Presidente da República sobre a equipe econômica, com ordens para “resolver o assunto”. Existem, ainda, pelo menos 12 processos em âmbito administrativo na Receita envolvendo impasses com igrejas. A Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, dona da Rede Record de TV, que tem sido destacada porta-voz do governo Bolsonaro, tem seis processos em andamento.
Além de endividados, entre os onze pastores reunidos com Bolsonaro, em 5 de junho, havia donos de concessões de TV e rádios e, também, de centenas de empresas, inclusive de marketing multinível (pirâmide financeira). São tantos os interesses envolvidos na reunião fechada, que o ato de oração, público, torna-se algo pro forma.
Não foi à toa que o presidente da Frente Parlamentar Católica Deputado Federal Francisco Jr. (PSD/GO), disse a Jair Bolsonaro, na reunião de 21 de maio: “Nós, católicos, somos a maioria e a maioria é que ganha eleição sempre. Quero dizer pro senhor que a gente começa esta reunião muito felizes e que estamos um pouco enciumados”.
A reunião dos católicos enfatizou identidade de valores – “Nós temos muito em comum” – mas deixou claro o pedido de apoio ao governo na facilitação de acesso à Secretaria de Comunicação e à ANATEL. Ressaltou-se a necessidade de agilização de transferências de outorga de rádios e TVs e de realização de investimentos (leia-se, publicidade), em troca de pauta positiva de ações do governo e de espaço para o Presidente veicular nelas seus conteúdos.
Tanto a barganha católica quanto a evangélica acontecem num momento em que o governo Bolsonaro, que está enfraquecido, busca aproximação com o Centrão, bloco fisiológico de partidos que reúne, entre suas lideranças, parlamentares ligados às frentes religiosas cristãs. O Presidente da República tenta, com este apoio, aprovar suas pautas e, também, se livrar de um processo de impeachment, diante dos tantos crimes de responsabilidade cometidos um ano e meio de governo.
Ademais, o apoio de igrejas torna-se fundamental para uma base social que tem minguado a cada pesquisa de opinião, tamanho o fracasso do governo em tratar questões fundamentais para o país, em especial a pandemia de coronavírus. “Não falo só em meu nome, nós somos uma potência, nós queremos estar nos lares, nós queremos ajudar a construir esse Brasil, e mais do que nunca, o senhor sabe o peso que isso tem quando se tem uma mídia negativa. Nós queremos estar juntos” (Padre Reginaldo Manzotti, TV Evangelizar, na reunião de 21 de maio).
Em nome do negócio político, os olhos dos religiosos se fecham às injustiças do governo e às necessidades da população enquanto os valores da tradição cristã são relativizados. Jesus, o Bom Pastor, é trocado por outro: “… o senhor colocou o presidente Bolsonaro para ser o nosso pastor… aqueles que são contra o país, oh, deus, que respeitem a decisão do povo…” (Missionário R. R. Soares, no evento público de 5 de junho).
Trechos das Escrituras Sagradas são usados para justificar a afinidade ideológica: “Eu estava em oração pelo presidente da nossa nação e deus me deu um texto, Isaías 45. O senhor me deu esta palavra e disse que o senhor recebeu a unção de Ciro, para que o senhor pudesse trazer novamente os valores da palavra de deus, que são os valores conservadores, que possam nortear o futuro da nossa nação” (Pastor César Augusto, Igreja Fonte da Vida, no evento público de 5 de junho).
Laços de lideranças religiosas com chefes de governo que envolvem participação no poder, bonança política e interesses econômicos, são coisa antiga. Em nosso país, passam por séculos de Catolicismo, desde o Brasil Colônia e, também, ao recente lugar ocupado por evangélicos. Este se dá na aliança com a ditadura militar, ao papel do Centrão no Congresso Constituinte de 1987, com a farta distribuição de emissoras de rádio e TV, à ocupação de espaços no executivo durante os governos Lula e Dilma e, agora, ao protagonismo no governo Bolsonaro, que tem deixado setores católicos enciumados.
Para discernir isto, vale evocar um passado distante, mas bem vivo: o apoio de alguns grupos de cristãos ao Império Romano opressor, para escapar de perseguição e participar do sistema econômico. As palavras da carta do Apocalipse, capítulo 3, dirigidas por Jesus a eles, ecoam no Brasil 2020:
Eu sei o que vocês estão fazendo. Vocês dizem que estão vivos, mas, de fato, estão mortos. Acordem e fortaleçam aquilo que ainda está vivo, antes que morra completamente; pois sei que o que vocês fizeram não está ainda de acordo com aquilo que o meu Deus exige. Portanto, lembrem do que aprenderam e ouviram. Obedeçam e se arrependam. Se não acordarem, eu os atacarei de surpresa, como um ladrão, e vocês não ficarão sabendo nem mesmo a hora da minha vinda.
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Quando líderes religiosos barganham no mercado político - Instituto Humanitas Unisinos - IHU