10 Abril 2020
Sendo a música um instrumento que nos foi dado por Nosso Senhor para louvá-lo com hinos e cânticos espirituais, não devemos esquecer a sua força emotiva para nos ajudar a compreender plenamente o mistério da Paixão de Cristo.
A opinião é do pianista e organista italiano Giovanni Michelini, que frequentou os conservatórios de Bolonha e Pádua e atualmente estuda na Hochschule für Musik und Theater, em Munique, Alemanha.
O artigo foi publicado em Settimana News, 09-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A música desempenha um papel fundamental para a meditação individual no caminho para a Páscoa da ressurreição. De fato, justamente à cruz e ao sofrimento de Nosso Senhor são dedicadas as páginas mais monumentais e íntimas, ao mesmo tempo, da maior literatura musical.
Basta pensar apenas na “Matthäus-Passion” e “Johannes-Passion”, de Johann Sebastian Bach (1685-1750), “Die sieben letzten Worte unseres Erlösers am Kreuze” [As sete últimas palavras do nosso Redentor na cruz, de Joseph Haydn], até chegar a composições contemporâneas de grande profundidade, como, por exemplo, “Passio et mors Domini nostri Jesu Christi secundum Lucam” [Paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo Lucas], de Krzysztof Penderecki, de 1966, e a “Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem”, de Arvo Pärt, de 1982.
Sem falar das inumeráveis “Stabat Mater”, como os de Pergolesi e Alessandro Scarlatti, até os mais recentes de Rossini, Verdi e Poulenc.
A Capela Musical Pontifícia Sistina, um coro polifônico com sede na Cidade do Vaticano e renomado mundialmente pelas suas interpretações do repertório renascimental europeu, publicou, sob a direção do Mons. Massimo Palombella, o seu sexto CD pelo selo alemão Deutsche Grammophone. Nesse caso, dedicado à cruz bendita, com a intenção de criar uma coleção fundamentada de motetos do século XVI a serviço da liturgia e como expressão do mistério da Paixão.
Entre os vários, “Vexilla regis prodeunt” e “Terra tremuit et quievit”, de Palestrina, “Adoramus te, Christe”, escrito por Orlando di Lasso, e o trecho que designa o nome da coleção, “O crux Benedicta”, de Cipriano de Rore.
Essa interessante antologia propõe um caminho litúrgico-musical que inicia com o introito gregoriano “Miseréris ómnium, Domine”, precisamente da Quarta-Feira de Cinzas, até o “Regina cœli laetare”, de Tomás Luis de Victoria [escute abaixo], uma das quatro antífonas marianas, que é cantada a partir do domingo de Páscoa até o dia de Pentecostes.
Ao tempo da Quaresma, são dedicadas principalmente breves composições, de modo a focar a atenção nos últimos três dias da Semana Santa.
Com “O sacrum convivium”, de Palestrina [escute abaixo], preparamo-nos para o primeiro dia do Tríduo Pascal, a Quinta-Feira Santa. Esse trecho é caracterizado por um tipo de música convivial, de íntimo recolhimento, que serve de presságio para o momento em que Cristo já está consciente de ter que carregar sobre si os nossos sofrimentos, assumindo as nossas dores para poderem ser curadas pelas suas mãos.
Assim recita “Vere languores nostros”, nessa antologia, com a música de Tomás Luis de Victoria [escute abaixo].
Agora, dirigimo-nos para a Sexta-Feira Santa, momento central de todo o ano litúrgico, em que toda a humanidade arrependida se prepara para venerar o mistério da cruz. “Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua misericórdia; na tua grande bondade, apaga o meu pecado. Lava-me de todas as minhas culpas, purifica-me do meu pecado”, cita o “Misérere mei, Deus”, musicado aqui por Costanzo Festa sobre o Salmo 51 [escute abaixo].
Após uma reflexão sobre os próprios pecados, a humanidade se aproxima do momento da exaltação da cruz, que é aqui representada pelo madrigal “O crux benedicta”, de Cipriano de Rore; miniatura musical de grande refino, caracterizada por sons sepulcrais lúcidos, digna da “Crucificação” de Mantegna: “In qua vita mundi pependit, in qua Christus triumphavit, et mors mortem superavit in aeternum”.
Como é possível transmitir através da música “os duros e ásperos tormentos da paixão”?
Não existe, a esse respeito, um modo “certo” ou “errado”. Por isso, é bom escutar e se deixar transportar pelos vários métodos empregados pelos próprios compositores, que eles utilizam para tornar “lacrimosa la compositione”.
Em primeiro lugar, a escolha do modo eclesiástico mais adequado, ou seja, a escolha de uma escala entre as várias, de forma a poder criar os afetos necessários para representar a imagem que o texto indica.
Normalmente, trata-se do quarto tom, cuja harmonia é “lamentável, triste e dolorosa”. Isso também é confirmado por Athanasius Kircher, que afirma “affectus, planctus, sollicitudinis, calamitatis, omnis generis ad miserias exprimendas apta pathemata excitat”.
Em seguida, um papel de importância fundamental é assumido pelas dissonâncias, ou seja, pela capacidade que alguns intervalos e acordes musicais possuem de produzir um efeito desagradável. Luzzasco Luzzaschi, renomado organista e compositor do século XVI, indica-nos claramente a sua função e a importância essencial do texto sagrado: “[...] também às vezes uma dissonância, embora artificiosa, contanto que represente o que as palavras significam [...]”.
A dissonância tem a tarefa de “perturbar” a nós, ouvintes, sendo posta entre duas consoantes, induzindo-nos a prestar uma atenção particular.
A utilização da dissonância para traduzir musicalmente “os duros e ásperos tormentos” é incrementado na geração de madrigalistas posterior àquela apresentada nesta coleção, incluindo o príncipe Carlo Gesualdo da Venosa, mestre das dissonâncias e da imprevisibilidade do decurso harmônico.
Em conclusão, sendo a música um instrumento que nos foi dado por Nosso Senhor para louvá-lo com hinos e cânticos espirituais, não devemos esquecer a sua força emotiva para nos ajudar a compreender plenamente o mistério da Paixão de Cristo e compreender que, nas palavras de Paul Claudel: “Le Fils de Dieu n’est pas venu pour détruire la souffrance, mais pour souffrir avec nous. Il n’est pas venu pour détruire la croix, mais pour s’étendre dessus” [O Filho de Deus não veio para destruir o sofrimento, mas para sofrer conosco. Ele não veio para destruir a cruz, mas para nela jazer].
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“O crux Benedicta.” A Paixão e a música. Artigo de Giovanni Michelini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU