Rio Opará: um rio marcado para morrer?

Rio São Francisco. | Foto: Cleferson Comarela/Wikipédia

18 Dezembro 2019

"O jogo do poder político é avassalador e passa como uma máquina demolidora pelo São Francisco. Interesses políticos e comerciais promovem um possível desastre com a ameaça de definhamento do Velho Chico e a consequente perda de recursos para a sobrevivência para milhões de pessoas. O São Francisco clama por atenção há décadas e tudo que recebe é mais exploração", escreve Flávio José Rocha, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e pós doutor pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente da USP, em artigo publicado por EcoDebate, 17-12-2019.

Eis o artigo.

Está secando o velho Chico.
Está mirrando, está morrendo.
Já não quer saber de lanchas-ônibus
nem de chatas e seus empurradores.
Cansou-se de gaiolas e literatura encomiástica e mostra o leito pobre,
as pedras, as areias desoladas
onde nenhum minhocão
ou cachorrinha-d’água,
cativados a nacos de fumo forte,
restam para semente
de contos fabulosos e assustados.

O trecho acima, retirado do poema Águas e Mágoas do Rio São Francisco e escrito há quase quarenta anos por Carlos Drummond de Andrade (o mais mineiro dos poetas) não deixa dúvidas: há décadas o Rio São Francisco sofre com ações antrópicas tais como barramento para a produção de hidroeletricidade, devastação das suas matas ciliares, a retirada exagerada de suas águas para a irrigação e a morte dos seus afluentes. Na verdade, esta história de desrespeito com aquele rio começou há séculos. Primeiro foi o seu nome, porque há que nominar o que se deseja dominar, como se o objeto apropriado passasse a existir apenas após a nova nomenclatura. Assim deu-se quando os invasores europeus chegaram ao Rio São Francisco e este era chamado pelos povos indígenas de Opará, que significa Rio-Mar, dada a admiração que aqueles povos tinham pela sua dimensão[1].

Por um tempo ele chegou a ser chamado de Rio dos Currais devido ao número destes em suas margens no processo de povoamento do Semiárido pelos não indígenas no período áureo da pecuária sertaneja. Ficou conhecido como o Rio da Unidade Nacional (outro de seus batismos) por sua importância econômica e social unindo vários estados brasileiros. É também chamado carinhosamente pelos povos que lá habitam de Velho Chico. Este carinho se dá porque a grande maioria dos ribeirinhos é composta de pessoas menos favorecidas economicamente que encontram em suas águas alguma forma para o sustento econômico. Depois recebeu o epíteto de Rio da Integração Nacional, mesmo quando continuou sendo cenário para a expulsão de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e vazanteiros de suas ilhas e margens e foi tomado pelos projetos de desenvolvimento do Vale do São Francisco, causando a desintegração de povos, culturas e famílias que lá habitavam.

Em dias atuais, a vazão do São Francisco representa mais 60% das águas do Nordeste[2] e em sua bacia habitam mais de 14 milhões de pessoas. É uma população maior do que a de muitos países como a Bolívia ou o Equador, por exemplo. Imaginar a vida de milhões de pessoas que há gerações lá vivem sem a abundância generosa daquele manancial é quase impossível.

O Velho Chico é facilitador do comércio entre as regiões que formam a sua bacia hidrográfica através da navegação e é disseminador de cultura através de um diálogo alinhavado pelo comércio, pelas artes e pelas espiritualidades entre os ribeirinhos que com ele desenvolveram uma relação enraizada no sustento econômico e no respeito para com a dinâmica do seu caudaloso e constante percorrer do caminho que o leva ao Oceano Atlântico. Além disso, acolheu milhares de escravizados e escravizadas que escaparam das torturas da escravidão brasileira e viveram em comunidades quilombolas. Por tudo isso, ele é motivo de inspiração para muitos cineastas, poetas, cantores, cantadores/repentistas, cordelistas e contadores de histórias. Recentemente, tem servido como cenário para o cinema e a televisão na produção de suas expressões artísticas.[3] Mas mesmo com toda a sua importância para o Brasil

“Está secando o Velho Chico”

O menino e Velho Chico viagens
Mergulham em meus olhos
Barrancos, carrancas, paisagens
Francisco, Francisco
Tantas águas corridas
Lágrimas escorridas, despedidas
saudades
Francisco meu santo, a velha canoa
Gaiolas são pássaros
Flutuantes imagens deságuam os
Instantes
O vento e a vela
Me levam distante
Adeus velho Chico
Diz o povo nas margens

A canção Francisco, Francisco composta por Capinam e Roberto Mendes e que ganhou vida na voz da cantora Maria Bethânia bem traduz o fascínio que a população são franciscana sente por aquele rio. No entanto, apesar de todo o encanto que exerce o Velho Chico está ofertando mais água do que pode e sofre com o desmatamento para fornecer madeira para as carvoarias, com a poluição dos esgotos e os grandes projetos de fruticultura irrigada. As consequências de tantas intervenções humanas já são visíveis e sentidas como: 1. Queda de barreiras aterram o rio e dificultam a navegação nos trechos onde esta ainda ocorre; 2. As barragens represam a água para a produção de eletricidade modificando a vida natural do rio e prejudicando a migração dos peixes; 3. A cunha salina adentra o rio por mais de cinquenta quilômetros em certas épocas do ano, desacreditando a famosa canção O Riacho do navio cantada por Luiz Gonzaga que dizia: “O rio São Francisco vai bater no mei do mar.”

A mineração foi sempre um grande atrativo para a sua exploração, especialmente no trecho que corta os estados de Minas Gerais e Bahia[4]. Suas águas também são destinadas atualmente para a irrigação de cana-de-açúcar, monocultura do eucalipto e fruticultura, indústrias, carvoaria, lazer e pesca. São inúmeros os grandes projetos de irrigação que passaram a compor a paisagem de suas margens nas últimas décadas, explorando as suas águas. Some-se a todas estas atividades o fato de que nos últimos setenta anos foram construídas barragens para a produção de energia elétrica, responsáveis por um violento processo de expulsão dos moradores locais de suas terras, incluindo-se aí vários povos indígenas, sendo esta a intervenção humana que mais impactou a bacia do Rio São Francisco (SIQUEIRA; ZELLHUBER, 2007).

O Rio São Francisco sobreviverá a tantos e múltiplos usos de suas águas para fins econômicos como a navegação, indústria, irrigação, abastecimento humano, esgotos, pesca, lazer e produção de energia elétrica? Não bastasse todas estas atividades de exploração socioeconômicas em sua bacia, o Velho Chico foi convocado a partilhar as suas águas para suprir necessidades distantes[5].

A Transposição do Velho Chico[6]

A água sai de Cabrobró
Parnamirim, Salgueiro,
Até Jati.
Deixe o rio desaguar doutor.
O São Francisco, com sua transposição
No meu nordeste
O progresso vai chegar
Se é que o Brasil
Agora está na mão certa
Na contramão
O meu sertão não vai ficar.
Priorize esse projeto, seu doutor
E deixe o rio desaguar.

Esse projeto
Centenário vai vingar
E com certeza
Será nossa redenção
Vamos ter muitos
Hectares de terra, tudo irrigados
É água pra mais de um milhão.
O Jaguaribe tá sequinho, seu doutor
Rio Piranhas,
Apodi e Castanhão.

A canção Deixe o rio desaguar de Aracílio Araújo, que ganhou a voz do cantor paraibano Flávio José, não deixa dúvidas de que existe uma crença de que as águas transpostas do Velho Chico para algumas áreas dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará é promessa de progresso para o Nordeste. Uma reflexão um pouco mais aprofundada sobre o fato de que somente a chegada da água sem uma mudança nas estruturas socioeconômicas talvez coloque em suspeita esta certeza ao se analisar que as capitais litorâneas nordestinas com os seus rios e estuários estão cercadas pela desigualdade social.

Embora esteja em curso um projeto de revitalização do Velho Chico, fruto das reivindicações dos movimentos socioambientais, NGOs e Pastorais Sociais ligados à questão da preservação do rio São Francisco, percebe-se que falta uma política pública que concretize o que é realmente necessário para atender as reais necessidades de preservação daquele manancial.

Um dos grandes benefícios da polêmica sobre a transposição foi o de alertar a população brasileira para a lenta morte dos rios brasileiros e, em especial, a do Velho Chico. O Brasil não tem uma política pública para a revitalização de seus rios[7]. Para piorar, o cerco fecha-se cada vez mais para os rios brasileiros com as leis ambientais sendo desrespeitadas pelo atual governo.

Conclusão

Corre um boato na beira do rio
Que o velho Chico pode morrer
Virar riacho e correr Pro nada
Viajando por temporada
Quando a chuva do meu Deus
Dará chegar, dará chegar
Já dizia Frei Luiz de Xiquexique
Quão chique é ter
Um rio pra nadar a correr
Quão chique é ter
Um rio pra pescar e pra beber
Não deixe morrer
Não deixe o rio morrer
Se não que será de mim
Que só tenho esse rio pra viver
Que será
Que será de mim
Que será de José serafim
Qual será o destino do menino
Que nasceu e cresceu aprendendo a pescar surubim
Não deixe morrer
Não deixe o rio morrer
Se não morre o ribeirinho
De fome, de sede, de sei lá o quê
Se não morre o ribeirinho
De fome, de sede, de sei lá o quê.”

Os bons artistas, visionários que são, anteveem a tragédia que se anuncia se nada for feito. A canção Boato ribeirinho, uma composição de Wilson Duarte, Wilson Freitas e Nilton Freitas, poderia ser o resumo de todo este artigo, pois a arte é a suprema professora no ensino das coisas que devem ser expressas clara e resumidamente.

Como viverão milhões de pessoas que dependem daquele rio para a sobrevivência. Muitas destas pessoas já foram afetadas pelas hidrelétricas, pela morte das lagoas sazonais e pelo desaparecimento de espécies aquáticas. A lista poderia continuar, mas os tomadores e tomadoras de decisões parecem desejar aumentá-la ainda mais. Afinal, a quem pertencem as águas do São Francisco? E o direito à vida das espécies não humanas que tem aquele manancial como seu habitat? O Rio São Francisco sobreviverá à demanda do agronegócio industrial de fruticultura irrigada? Deve o seu curso natural ser desviado e suas águas levadas para tão distante para alimentar esta indústria? São perguntas que não podem esperar para serem respondidas por muito mais tempo, pois isso significa a sua privatização. Privatizar é privar. Já não é isso que está acontecendo para algumas populações ribeirinhas privadas cada vez mais do curso natural do rio?

Quanto ao Rio São Francisco, seus problemas já foram cantados em canções, declamados em versos, capturados em imagens fotográficas[8], dissecados em teses e dissertações acadêmicas e denunciados de várias outras maneiras no Brasil e no exterior. No entanto, os sucessivos governos, independentes de suas inclinações ideológicas, insistem em continuar com a sua exploração[9] de forma desordenada e colocando em risco as vidas de milhões de humanos e não humanos em nome de um modelo de desenvolvimento que até agora só causou prejuízo ao Velho chico.

O jogo do poder político é avassalador e passa como uma máquina demolidora pelo São Francisco. Interesses políticos e comerciais promovem um possível desastre com a ameaça de definhamento do Velho Chico e a consequente perda de recursos para a sobrevivência para milhões de pessoas. O São Francisco clama por atenção há décadas e tudo que recebe é mais exploração.

Referências:

ANDRADE. Carlos Drummond de. Discurso de Primavera e Algumas Sombras. Rio de Janeiro: Record, 1977.

BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro ao Morro Velho. Brasília: Senado Federal. 2001.

COELHO, Marco Antônio T. Os descaminhos do São Francisco. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

LACERDA, Carlos. Desafio e Promessa: o Rio São Francisco. Rio de Janeiro: Distribuidora Record. 1964.

NEVES, Zanoni. Navegantes do São Francisco; os remeiros do Rio São Francisco. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

ROCHA, Geraldo. O rio São Francisco: fator precípuo da existência do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1983.

SILVA, Flávio José Rocha da. Grandes Obras no Nordeste: o caso do Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco. In Contemporânea Revista de Sociologia da UFSCar. V.8 Nº 2. 2018. p. 607-634.

SIQUEIRA, Ruben; ZELLHUBER, Andrea. Rio São Francisco em descaminho; degradação e revitalização. In: Cadernos CEAS. Salvador: Loyola, 2007, p. 7-32.

SIQUEIRA, Ruben. De Sobradinho à transposição: para onde corre o São Francisco. In: MOREIRA, Gilvander Luís (Org.). Dom Cappio: rio e povo: Frei Luiz, um profeta na luta em defesa da vida do rio São Francisco e do seu povo. Transposição, não! São Leopoldo, CPT/CEBI, 2008, pp. 191-202.

Notas:

[1] Há uma outra definição para a palavra tupi Opará. Segundo Siqueira (2008, p. 193), um dicionário jesuíta de Tupi de posse do bispo católico emérito de Juazeiro/BA, dom José Rodrigues de Souza “[…] dizia que Opará é rio “sem rumo definido, de limite incerto, errático.” Sem entrarmos no mérito do real significado desta palavra, o certo é que os invasores liderados por Américo Vespúcio rebatizaram o rio com o nome do santo italiano Francisco de Assis em 4 de outubro de 1501, data de aniversário de nascimento do referido santo, marcando o primeiro desrespeito com a cultura dos povos que habitavam aquela região.

[2] Segundo Coelho (2005, p. 13), “A área de sua bacia é de quase 640 mil quilômetros quadrados, que correspondem a cerca de 7,5% do território. Atravessa mais de quinhentos municípios, em 5 Estados e sua bacia alcança também Goiás e o Distrito Federal.”

[3] No campo da música, um exemplo é o CD Salve São Francisco (2011), do cantor Geraldo Azevedo. A Revista Globo Rural selecionou mais de trinta canções tendo o Velho Chico como tema que podem ser conferidas aqui. No entanto, o número é muito maior. No cinema, ver, por exemplo, Espelho D’água – uma viagem no Rio São Francisco (CESAR, 2004). Na televisão, além da minissérie Amores Roubados (2014) há a novela Velho Chico (2016), ambas veiculadas pela Rede Globo, somente para citar alguns exemplos.

[4] De acordo com Siqueira e Zellhuber (2007), 20% da atividade atual de exploração mineral oficial no Brasil acontecem no Rio São Francisco.

[5] Em 2017 o Velho chico teve a menor vazão em 38 anos. Confira matéria do Jornal Nacional da Rede Globo aqui. A crise fez surgir a Sala de Crise do Rio São Francisco que atualmente foi substituída pela Agência Nacional de Águas – ANA – pela Sala de Acompanhamento da Operação do Sistema Hídrico do Rio São Francisco. Confira aqui.

[6] Confira o artigo Grandes Obras no Nordeste: o caso do Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco (SILVA, 2018).

[7] Segundo matéria do Jornal O Estadão de 9 de outubro de 2019, o Brasil tem mais de 83 mil km de rios poluídos. Confira aqui.

[8] Sua paisagem foi capturada por inúmeros fotógrafos. Ver, por exemplo, o excelente livro de fotografias O Rio São Francisco e as águas no sertão (ZINCLAR, 2010). Há, também, uma espécie de fascínio em excursionar pelo Velho Chico. Foram muitos os registros destas excursões para o conhecimento da área. Podemos citar, por exemplo, Viagem do Rio de Janeiro ao Morro Velho (2001), escrito pelo diplomata inglês Richard Burton sobre sua viagem em 1867; e Desafio e promessa: o rio São Francisco, de autoria do famoso político brasileiro Carlos Lacerda (1964).

[9] Não bastassem todas as formas econômicas de exploração vigentes na bacia do Rio São Francisco, os últimos governos vêm desenvolvendo estudos para a instalação de usinas nucleares em seu leito. Confira aqui.

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