31 Outubro 2019
“Uma das piores manifestações da melancolia é a nostalgia. Porque a nostalgia significa sentir dor por uma pátria que não existe. E esta dor reivindica um retrocesso no tempo que pode ser a gênese do fanatismo”, avalia a filósofa holandesa Joke J. Hermsen.
“Algo semelhante está acontecendo nos Estados Unidos. Segundo Hannah Arendt, é preciso ter cuidado quando um líder político desperta a nostalgia em vez de falar do futuro, em vez de oferecer esperança. Falar sobre volta às origens sempre pode acabar em fanatismo e totalitarismo”, adverte a filósofa holandesa.
A reportagem-entrevista é de Francesc Miró, publicada por El Diario, 29-10-2019. A tradução é do Cepat.
Em 1650, Jan Asselijn pintou um cisne em um lago sem saber que a obra se tornaria uma das pinturas mais famosas da história do barroco holandês. Nele, vemos a ave em uma posição ameaçadora, diante de um cachorro que nada precariamente em águas turvas. Não se nota intenção agressiva no cão, mas o cisne parece reagir para proteger alguns ovos atrás dele.
LangSwitch (Jan Asselijn - 1650). "O cisne ameaçado". Na tela um cisne protege seu ninho contra um cachorro. Mais tarde, a cena se transformou em uma alegoria política, referindo-se ao cisne como o Grande Pensionista Johan de Witt, protegendo a Holanda contra o Inimigo. (Foto: Rijksmuseum / Wikipédia)
Ocorre que o ninho simboliza a Holanda do século XVII. A ave representa Johan de Witt, um grande pensionário da região mais poderosa dos Países Baixos e um dos políticos mais influentes do país. E o cachorro, descrito no quadro como inimigo do Estado, não é outro senão Guilherme III de Orange.
Em 1672, a Holanda foi invadida pela França com a aprovação e apoio deste último, rei da Inglaterra e Irlanda. Guilherme III, então, acusou Johan de Witt de alta traição, sendo linchado junto com seu irmão por uma multidão enfurecida em Haia, onde agora se encontra o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas.
No entanto, O cisne ameaçado, como é chamada a obra de Asselijn, tem outro significado aplicável na atualidade. Conforme explica a filósofa Joke J. Hermsen, “essa tela mostra maravilhosamente como a melancolia pode se transformar em medo e fúria”. Por isso, ela a utiliza como ponto de partida e a escolheu como capa de seu último ensaio: La melancolía en tiempos de incertidumbre [A melancolia em tempos de incerteza].
“A melancolia pode ser inspiradora, mas também perigosa. Hoje, muitas pessoas se sentem ameaçadas e reagem com raiva se consideram que alguém ofende suas tradições, sua cultura e seu país”, argumenta Joke J. Hermsen. Esta doutorada em filosofia foi premiado em seu país por seus ensaios sobre arte contemporânea e literatura. O que nos ocupa é seu primeiro livro em espanhol, traduzido por Gonzalo Fernández Gómez e publicado por Ediciones Siruela.
“Este ensaio nasce por duas grandes razões”, conta a filósofa holandesa a este jornal. “Uma parte de uma modesta análise social: em nossa moderna sociedade ocidental não existe, hoje, muito espaço para lidar com a tristeza, as notícias ruins, a decepção e a dor. Cada vez mais, escondemos tais dimensões. Dizemos que estamos bem e que tudo caminha bem porque não temos tempo para pensar se está indo mal”.
“Mas, a segunda razão, ainda mais importante, foi um livro escrito por Trudy Dehue [professora de Psicologia e Filosofia da Ciência da Universidade de Groningen], chamado De Depressie-epidemie [A epidemia da depressão], que fez uma longa pesquisa, cujas conclusões não foram nada animadoras e me fizeram pensar”, reflete a autora.
“Minha hipótese é que a melancolia, conforme defendiam alguns filósofos gregos, é constitutiva do humano”, explica. “É um sentimento que nasce, por assim dizer, da consciência da passagem do tempo e da constatação de que tudo, absolutamente tudo, perece ou perecerá diante de nossos olhos”, argumenta. “Está em nossa natureza refletir sobre a passagem do tempo e, em certas ocasiões, desejar algo que não temos mais”, chame isso de juventude, passado, infância, pátria ou seja lá o que for.
Acontece que, de acordo com Aristóteles, a melancolia pode se tornar outra coisa quando se carece da ataraxia. Entende-se por este termo o estado que produz a paz de espírito, a falta de preocupação e a serenidade. Algo que claramente está faltando em nossa sociedade.
Imaginemos por um momento que o ninho da pintura de Asselijn, com o qual iniciamos, fosse uma ideia de país, raça ou tradição. Imaginemos que o cachorro possa ser um apátrida, uma pessoa migrante ou um refugiado. Quem seria, então, esse cisne iracundo?
“Somos seres melancólicos por natureza, mas em tempos de falta da ataraxia, ou seja, em tempos de inquietação, esse caráter melancólico se acentua e fica à mercê de ser manipulado”, explica.
É inevitável pensar na nostalgia inerente a uma proclamação como Make America Great Again. Ronald Reagan a utilizou em sua campanha presidencial de 1980, e Donald Trump, em 2016.
“Uma das piores manifestações da melancolia é a nostalgia. Porque a nostalgia significa sentir dor por uma pátria que não existe. E esta dor reivindica um retrocesso no tempo que pode ser a gênese do fanatismo”, reflete. “Algo semelhante está acontecendo nos Estados Unidos. Segundo Hannah Arendt, é preciso ter cuidado quando um líder político desperta a nostalgia em vez de falar do futuro, em vez de oferecer esperança. Falar sobre ‘volta às origens’ sempre pode acabar em fanatismo e totalitarismo”.
Hermsen, especialista na obra da filósofa e teórica política alemã Hannah Arendt, estabelece certos paralelos entre a época atual e a obra Origens do totalitarismo.
“Arendt falava de uma enorme melancolia presente na Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial”, explica. “Os cidadãos sofreram perdas terríveis: um milhão e meio de alemães morreram na guerra. As pessoas se sentiam realmente desamparadas”. E foi então que começaram a surgir correntes de pensamento que reivindicavam um retorno, um renascer da glória nacional. “Ela nos avisou há décadas! Temos que estar atentos para observar os primeiros sinais do que nos pode levar a desvios totalitários”.
Hermsen, no entanto, não para em Trump. Em seu ensaio, fala sobre um problema de caráter internacional e apresenta como exemplo as políticas de Orbán, na Hungria, e Kaczyński, na Polônia. Mas, também em países que não respondem ao antigo Bloco do Leste. Segundo ela, “na Europa Ocidental também ganham espaço o medo e a xenofobia como estratégia para obter votos. Envolve a nós todos. Veja Le Pen, na França, Hofer, na Áustria, Geert Wilders, no meu país, Holanda, e Santiago Abascal, aqui, na Espanha”.
“A cada dia que passa, ganha força a nostalgia de um passado glorioso que nunca realmente existiu, mas que, juntamente com o medo do futuro, se torna uma forma atraente de fé”, comenta a escritora. “Temos que lutar contra isso com as ferramentas que pudermos”, acrescenta.
“Estamos em uma situação complicada”, porque, conforme argumenta Hermsen, “parece que não temos tempo para enfrentar a melancolia, para extrair algo positivo dela. Porque para isso precisamos de uma análise pausada de nossa situação, e o pensamento neoliberal impôs em nós uma cultura do desempenho perpétuo que bane o tempo dessa análise”.
Por esse motivo, “deveríamos levar muito a sério a arte, a música, o cinema, a leitura ... a cultura em geral. Porque são ferramentas com as quais os seres humanos se narram e, através delas, enfrentamos diferentes visões de nossa realidade”. Por meio delas abraçamos a pluralidade e o multiculturalismo como os próprios genes de uma sociedade democrática.
“Arendt já nos disse que o totalitarismo é a certidão de óbito da pluralidade”. Nesses regimes, não há divergências, ou se paga caro. “Assim, quando vemos um político atacar essa pluralidade ou a substituir por nacionalismo ou outra forma de superioridade étnica ou identidade política, devemos estar preparados para contestar isso”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A melancolia em tempos de incerteza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU