29 Outubro 2019
Privatização da estatal, que gera bilhões aos cofres públicos, não gerará só elevação nas contas de luz: também colocará na lógica do mercado o controle de estratégicos reservatórios, cruciais à navegação e abastecimento em tempos de estiagem.
O artigo é de Cássio Cardoso Carvalho, engenheiro eletricista e mestrando em energia pela UFABC, publicado por Outras Palavras, 24-10-2019.
Nos últimos anos a privatização da principal empresa de energia elétrica do Brasil vem sendo colocado como necessária e sendo concretizada gradualmente, pelos governos de Temer e agora por Bolsonaro. O entendimento de que a empresa não gera lucro satisfatório e que o país precisa de verba para pagar suas dívidas e ter dinheiro em caixa, são os principais argumentos para a decisão que poderá afetar milhões de brasileiros, principalmente os que vivem nas periferias dos grandes centros ou em regiões mais afastadas, onde o serviço de energia elétrica, essencial para o desenvolvimento de qualquer sociedade, pode não ser atrativo para as empresas que virão a adquirir a gestão da Eletrobras.
A criação da Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras) foi proposta em 1954 pelo presidente Getúlio Vargas, já naquele momento enfrentando severa oposição das corporações privadas do setor, em especial da Light. Somente no governo de Jânio Quadros, em 1961, foi decretado a Lei 3.860-A, autorizando a União a constituir a Eletrobras, com a atribuição de promover estudos, projetos de construção e operação de usinas geradoras, linhas de transmissão e subestações destinadas ao suprimento de energia elétrica do país. A nova empresa passou a contribuir decisivamente para a expansão da oferta de energia elétrica e o desenvolvimento do país.
As reformas institucionais e as privatizações das empresas estatais na década de 1990, sob os governos de Collor e FHC, atingiram o setor de energia elétrica, acarretando na perda de algumas funções da estatal e mudanças no perfil da Eletrobras. Sob o objetivo de privatizar o setor, manutenções, melhorias e aumento da capacidade de geração e transmissão, deixaram de serem feitas, ocasionando na crise do setor em 2001. Programas locais eram elaborados para buscar melhorar a cobertura elétrica à população que mais carecia do serviço, principalmente no Norte e Nordeste, onde os níveis eram similares aos países mais pobres do mundo, mas nunca alcançando resultados satisfatórios.
Em 2004, sob o governo Lula, a nova regulamentação do setor excluiu a Eletrobras do Programa Nacional de Desestatização (PND). Atualmente, a companhia controla subsidiárias, que atuam nas áreas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, uma empresa de participações (Eletrobras Eletropar), o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica, detém metade do capital da Itaipu Binacional, em nome do governo brasileiro e ainda responde pela Eletronuclear, que opera e constrói usinas termonucleares no país. Criou-se um programa federal – Luz Para Todos – de universalização de energia elétrica, levando eletricidade a quase três milhões de pessoas.
A partir do ano de 2016, no curto tempo em que Temer esteve na Presidência da República, a onda privatizante, já conhecida da década de 90, volta ao cenário, com a privatização das concessionárias da Eletronorte, responsáveis pela distribuição de energia elétrica no Norte e Nordeste do Brasil, fato perceptível no aumento da tarifa de eletricidade e o que somado à crise econômica em que o país vive, culmina na inadimplência das famílias que não conseguem encaixar o aumento da tarifa dentro do seu orçamento. Após a venda das concessionárias, as tarifas aumentaram em todos os estados onde ocorreu essa privatização, em Alagoas, o aumento foi de 6,68%, no Piauí, de 1,4%, em Rondônia de 25,3%, Amazonas foi de 14,9%, Roraima, contou com um aumento de 38,5% e no Acre o acréscimo foi de 21,3%.
Para se ter clareza da importância e do que representa o tamanho da Eletrobras, mesmo após a abertura ao mercado financeiro nos últimos anos, ela detém 49.801 MW de potência instalados, 30,5% da capacidade brasileira, mais de 71 mil quilômetros de linhas de transmissão, sendo que as linhas acima de 230 kV, metade pertencem a estatal, não bastante, ainda configura como a maior empresa distribuidora de energia elétrica na América Latina.
Como já dito acima, o principal argumento para a privatização da empresa, vem sendo o que eles chamam de “busca pela disciplina financeira, essencial para a perenidade do negócio”, na verdade não se sustenta quando olhamos os dividendos e lucros da Eletrobras nos últimos anos, mesmo em recessão econômica no país, o que tende para a diminuição da demanda por energia elétrica, tanto na indústria, no comércio e nos domicílios, no primeiro trimestre de 2019, o lucro líquido da empresa foi de R$ 5,5 bilhões, espantosos 305% acima do resultado atingido no mesmo período no ano anterior, ou seja, a tese de que os serviços entregues pela Eletrobras não dão lucro ao Estado, cai por água abaixo.
Em algumas entrevistas, o Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afirma que o governo enviará ao Congresso uma proposta de privatização da Eletrobras, e ao que indica será para diluir o capital social da União, ficando com um montante entre 30% a 40% das ações. Com essa operação, espera-se arrecadar R$ 16,2 bilhões, capital possivelmente levantado em poucos anos, sem a necessidade de abertura ao mercado privado.
No entanto, o que interessa não é o fato da arrecadação ser superavitária, mas sim, a ideia de que o Estado tem de ser mínimo, algo muito ideológico, para um governo que tem como seu principal mote a falácia de que quer acabar com a ideologia dentro do Estado.
Agora, caso esses projetos de privatização do setor se concretize ainda mais, é preciso ter em mente que a Eletrobras não garante apenas a energia elétrica no Brasil, ela é responsável por uma série de outros fatores sociais, como o uso das águas, já que as usinas hidrelétricas não são meramente geradoras de eletricidade, servem para armazenar água em seus reservatórios e manter o nível dos rios em épocas de seca, para o consumo de água nas cidades, irrigação, pesca, turismo e transporte fluvial.
O Operador Nacional do Sistema (NOS), hoje é quem controla a vazão das bacias e rios, através da demanda de energia elétrica e da necessidade de cada reservatório de usinas hidrelétricas, logo, pelo Brasil ser um país tropical com diferentes regimes hidrológicos, foi construído um sistema capaz de transportar grandes blocos de energia de uma ponta a outra do país, otimizando o uso dos diversos reservatórios de acordo com as diferentes condições hidrológicas.
Agora, em uma lógica em que uma empresa que tenha comprado uma hidroelétrica, a qual gera uma energia firme de 100 MW, e que tenha que abrir seu reservatório, para garantir que rio abaixo outro reservatório possa garantir a uma determinada comunidade o uso d’água para qualquer que seja a finalidade ou que um rio tenha vazão suficiente para garantir seu transporte fluvial, não irá acontecer pela lógica do mercado.
Fatos assim já ocorrem em disputas pela água, um exemplo é o caso de UHE Furnas, uma estatal, que teve de abrir suas comportas e ceder água para a UHE de Ilha Solteira, de propriedade chinesa, com a justificativa de que a hidrovia entre as duas usinas continuasse em funcionamento, no entanto esse volume foi bem maior do que o necessário, o que possibilitou o aumento na produção de energia na hidroelétrica privada, enquanto a estatal deixava de ter em seu reservatório água em tempos de estiagem, comum na região.
Os fatos também demonstram que uma agência reguladora não consegue controlar as empresas privadas de ações fora dos ritos da lei. A ANTT não consegue conter os aumentos exorbitantes, às vezes acima da inflação, que as concessionárias de rodovias impõem em seus pedágios. A ANAC não conteve os preços por excesso de bagagem que as companhias aéreas implementaram nos últimos anos. A ANATEL não deteve os preços surreais que eram cobrados pelas companhias para se obter linhas telefônicas na década de 1990. Diante desse histórico, não se poderá garantir que a ANEEL, a ANA e o ONS, garantam soberania e os direitos fundamentais no que pode vir a acontecer com a privatização da Eletrobras.
É necessário que a sociedade entenda o papel social da Eletrobras como estatal, que deixar esses interesses estratégicos para qualquer nação, nas mãos de empresas privadas, com capital externo, é saber que alem das tarifas exorbitantes, o comprometimento de serviços essenciais, estará condicionado não as necessidades da sociedade brasileira, mas sim do lucro de poucos que poderão controlar a Eletrobras.
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Eletrobras: a água também está em disputa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU